Índice de Capítulo

    Clara olhou para o garoto seriamente. Os primeiros raios de sol iluminavam os túmulos do cemitério. Era como se a aurora abraçasse o gótico.

    No entanto, o guardião dos mortos já tinha partido.

    — Eu não sei qual o seu plano, Renato — disse a súcubo —, mas você precisa saber de uma coisa. Exu Caveira não é a única criatura no universo que sabe quando os outros estão mentindo. Na verdade, algumas outras criaturas compartilham poder semelhante.

    — Está falando do…

    — Sim. Raziel.

    — Entendo.

    — Renato! — Jéssica o puxou pelo ombro. — Por favor, tome cuidado! Se mantenha firme! Não sucumba a…

    — A meus próprios sentimentos? A essa raiva que tenta me devorar de dentro pra fora?

    Jéssica mordiscou o lábio, hesitante.

    — É… — finalmente respondeu, com a voz trêmula de dúvidas.

    Ele mostrou a ela um sorriso terno.

    — Não vou. Pode confiar em mim.

    —  Eu confio!

    — Aqueles dois… — disse Lírica. — Eles são traiçoeiros. Não importa se são inimigos. Eles são iguais. Igualmente trapaceiros e cruéis! Não confie neles.

    — Não confio. Confio apenas em vocês.

    Ao ouvir essas palavras, a demi-humana emitiu um som semelhante a um ronronar, como o de um gato recebendo carinho.

    Renato não resistiu e realmente fez cafuné nela, na cabeça, perto das orelhinhas.

    — Eu quero ir com você! — falou Irina, incisiva, enquanto o abraçava forte, quase como se o estivesse guardando-o apenas para si.

    — Eu sei. Mas não pode. Precisa me deixar ir sozinho.

    — Eu não quero deixar!

    — Eu sei.

    — E se você precisar de ajuda?

    — Eu dou um jeito de te chamar.

    — Humpf! Fala como se fosse muito fácil!

    — Pra você, eu sei que é. Se eu te chamar, tenho certeza que você cruza meio planeta pra ir me ajudar.

    — Meio planeta não! Planeta inteiro! É bom mesmo que saiba disso! — retrucou ela, rabugenta.

    — Renato — disse Mical. — Estou rezando por você! Acredito que vai dar tudo certo!

    Logo em seguida, ele pegou um punhado de terra de cemitério com a mão. Colocou o dedo da outra mão na boca e o mordeu. Pressionou a pele entre os dentes até sentir o gosto de sangue. Depois deixou pingar uma gota vermelha no punhado de terra em sua mão.

    Fechou os olhos.

    Visualizou em sua mente o símbolo que Clara tinha lhe mostrado mais cedo, proveniente do grimório As Clavículas de Salomão: um tipo de círculo mágico, com algumas letras em volta, e um tipo de selo no centro, que lembrava uma runa distorcida.

    — Belfegor…! — murmurou.

    — Me chamou? — Ouviu a voz do demônio sussurrando em seu ouvido.

    Abriu os olhos e lá estava Belfegor, diante dele, o encarando com um sorriso zombeteiro, do tipo que se diverte com a confusão alheia.

    — Mestre Renato… quer falar comigo?

    — Quero sim.

    Ele olhou em volta. Não estava mais no cemitério.

    O local era bem iluminado. As paredes, o teto e o chão eram totalmente esculpidos em pedra. Tinha um certo ar de nobreza.

    Nenhuma mobília.

    Apenas um túnel que mergulhava numa das paredes.

    — Que bom que precisa de mim! Por acaso seu estoque de vinho acabou? Eu posso conseguir mais.

    — Não. Não é isso.

    — Então ilumine-me.

    — O anjo. Quero falar com ele.

    — Anjo? Seria Raziel?

    — E quem mais poderia ser?

    Belfegor deu de ombros.

    — Vai saber. — Ele parecia esconder mais do que revelava.

    — Onde ele está?

    — Por ali. Siga-me, por favor.

    Seguiram pelo túnel.

    O som de gotas de água pingando era constante, e o cheiro de mofo e coisa velha incomodava o nariz.

     No caminho, passaram por várias outras passagens na terra, que Renato começou a se perguntar se era normal demônios gostarem de viver como formigas.

    Em certo momento, ele ouviu um gemido de agonia, e foi como se algo rastejasse em algum canto distante.

    — Que lugar é esse onde estamos?

    — Ah, se eu te contar, você não vai acreditar!

    — Acho difícil alguma coisa me surpreender hoje em dia!

    — Estamos debaixo do Vaticano.

    Depois de alguns segundos de silêncio constrangedor, Renato finalmente disse:

    — Ok. Isso me surpreendeu. Que diabos você está fazendo no Vaticano?!

    Belfegor deu de ombros.

    — A fé… como eu posso dizer…? É uma excelente bateria para o meu feitiço.

    Renato ergueu uma sobrancelha.

    — Que tipo de feitiço?

    — Do tipo que enfraquece meus convidados e mantém eles sob controle, é claro.

    Chegaram numa sala pequena. A iluminação vinha de cristais mágicos no teto.

    Estava quase vazia, com exceção de uma mesinha onde se encontravam alguns itens peculiares: algumas lâminas e instrumentais com ponta perfurante. Também havia alguns frascos com líquidos desconhecidos.

    O cheiro de álcool perfumava o ar.

    E, numa cadeira, preso por correntes prateadas, estava o arcanjo Raziel.

    Sua boca estava amordaçada.

    Os olhos inexpressivos, sem cor, como água, deslizaram em direção a Renato.

    O garoto se aproximou e tirou a mordaça.

    Os dois apenas ficaram um tempo se olhando em silêncio.

    — A que devo a honra de vossa visita? — disse o anjo.

    — Visita? Você não parece muito confortável.

    — Conforto nem sempre faz parte dos planos de Deus.

    — Sei… Quero te perguntar uma coisa.

    — O que tu queres não importa.

    — Talvez importe. Como sabia que Peste estava em Cuiabá?

    — Por que queres saber? Pensas que eu não sei de vossa reunião com os cavaleiros? Finalmente decidistes unir-se a eles? Os malignos realmente complementam-se!

    — Se quiser, podemos usar tortura para fazê-lo falar, mestre Renato! — disse Belfegor, segurando um bisturi que pegou da mesinha.

    — Não precisa. Pelo menos,  não por enquanto — respondeu. Então voltou-se ao anjo. — Na verdade, eu decidi outra coisa. Decidi que vou matar Peste! Vou acabar com aquele miserável repulsivo!

    O anjo o analisou por um instante, e então respondeu:

    — Sabíamos onde ele estava graças a nossos serviços de inteligência.

    — Em que lugar da cidade ele está?

    — Tal coisa não tem mais importância.

    — O quê? Como assim não tem?! É claro que tem importância! Sabe o que ele tá fazendo na terra agora?

    O anjo deu de ombros.

    — Sei. Mas tu realmente te importas com o que ele está a fazer, ou apenas busca vingança pessoal? Tu realmente te importas com as pessoas, Condutor de Arimã?

    — E você… se importa, anjo?

    — Não. Mas eu não sou humano. Apenas sigo as ordens celestiais.

    — E a ordem não é que matem os cavaleiros? Eu vou matar Peste! Deveria me ajudar!

    — Não importa mais porque já está feito. Peste morrerá de um jeito ou de outro! O destino do cavaleiro já está selado.

    — E quem vai matá-lo? Os anjos? Porque eles não pareciam estar ganhando a batalha no céu!

    — O que viste outro dia era apenas uma missão de reconhecimento. Não era uma batalha real. Agora que sabemos onde ele está, o Ophanim será enviado! Um único disparo eliminará Pestilência.

    — É… e junto de toda a minha cidade.

    — Metade de vosso Estado, em verdade.

    — Eu consigo derrotá-lo!

    — Não importa.

    — Ainda podemos usar a tortura — Belfegor balançava o bisturi entre os dedos. Tinha uma cara de tédio.

    Renato pensou por um momento. Raziel não parecia ser do tipo que sucumbia à tortura. Era obstinado. Mas até ele deve ser racional o bastante para ponderar algumas opções.

    — E se eu te libertar?

    — O quê? — Belfegor arregalou os olhos. Não gostou do que ouviu.

    — Tu serias deveras ingênuo. Eu mataria tu e este demônio ao teu lado.

    — Seria impossível. Não é mesmo, Belfegor?

    O demônio limpou a garganta.

    — Sim. Ele não teria chance. Mesmo que ele cuspa o ouro hiperdecaído de seu estômago, meu feitiço envolve todo este lugar e enfraquece qualquer um que seja uma ameaça para mim.

    — Vê? Você não nos mataria, mesmo se tentasse. E quer saber? Eu aposto que você quer se juntar aos seus irmãos anjos na batalha. Eles lá, guerreando, saboreando a glória, e você aqui servindo de cobaia para um demônio! É isso mesmo que quer? Ser lembrado como o arcanjo que foi capturado um demônio, e que por causa disso ficou de fora da maior batalha de todos tempos?

    Raziel ficou em silêncio. Ponderou por um instante.

    — Se eu vos contar o que queres saber, como saberei se vais cumprir vossa palavra?

    — Porque você sabe que estou falando a verdade, não sabe?

    — Mesmo que estejas falando a verdade agora, tu poderias mudar de ideia.

    — Da mesma forma que você. — Renato deu de ombros. — Eu te dou minha palavra, e você vai precisar acreditar nela. Além do mais, você sabe que eu estou falando a verdade agora. Eu não tenho nem mesmo essa vantagem. Você poderia mentir para mim, e eu não saberia. Vou confiar na sua palavra. Na sua honra. Peço que faça o mesmo por mim.

    — Honra? — Raziel riu, mostrando seus dentes meio ensanguentados, por causa dos lábios e gengivas feridas —  Isso ainda existe? — Deu de ombros. — Te darei uma tentativa. Se falhares, Condutor, usaremos o Ophanim.

    — Fechado.

    — Pestilência tomou para si um prédio do governo. Onde antes funcionava a Secretaria Estadual de Saúde, se transformou em seu antro de doenças. O local está cercado por aqueles que foram Rejeitados pela Sepultura. Os mortos que escaparam do Gehenna.

    — Entendi. Belfegor! Me dê a chave das correntes.

    O demônio hesitou. Ficou um tempo encarando Renato, talvez esperando que ele mudasse de idéia.

    — Senhor Renato… este anjo…

    — Me entregue as chaves! Você não disse que queria me servir? Então obedeça.

    Belfegor suspirou e relaxou os ombros.

    Uma luz brilhou em sua mão, e a chave surgiu.

    Ele a jogou para Renato, que sem perder tempo destrancou as correntes.

    O anjo se levantou. As asas se moveram em suas costas, como os membros de alguém se alongando. Então, Raziel começou a tossir, e finalmente cuspiu a bala de ouro hiperdecaído, que caiu no chão com um tilintar.

    — Gratias ago — agradeceu em latim. — Mais uma coisa que pode interessar-te. Talvez, tu possas evitar o exército dos mortos da mesma forma que os cavaleiros.

    — O que quer dizer?

    — Lembra-te da vossa reunião com eles? Tu estavas numa realidade paralela à nossa, criada por eles. Chama-se O Reflexo da Verdade. Se puderes usar, poderás passar através dos Rejeitados e ferir Pestilência no próprio reino. Lembra-te: tens apenas uma única chance!

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