Índice de Capítulo

    Renato pegou o copinho na mão e olhou, com curiosidade, para aquele líquido escuro em seu interior.

    Pôs o líquido na boca. O sabor não era muito agradável. Um amargor que lembrava remédio. Não seria problema, é claro. Para alguém que bebia pinga pura, não seria um gosto desses que o assustaria.

    Ele deixou o chá descer pela garganta.

    Devolveu o copinho para o pajé e voltou para seu lugar ao lado de Clara.

    — Como se sente, Renato?

    — Normal.

    A súcubo riu.

    — Por enquanto — disse, num tom levemente ameaçador.

    Ela, graciosa, também se levantou e foi pegar sua dose de Vinho dos Mortos.

    Renato ficou um tempo apenas fitando a fogueira e ouvindo a melodia suave que vinha do violão de Ubiratan. Renato ouvira alguém chamando-o pelo nome mais cedo.

    A melodia doce que tocava tinha afastado completamente aquele ar ameaçador de antes.

    A madeira estalava, queimando. Um cheiro agradável, adocicado, meio defumado, se esgueirava pelo ar.

    As chamas eram, junto da lua e das estrelas, a única fonte de iluminação. Em volta, havia apenas a escuridão da floresta que os cercava, procurando uma brecha para engolir tudo.

    Sem postes e nem buzinas, sem barulhos de trânsito e sirenes de polícia. Sem lutas e lágrimas. Apenas a música suave e a fogueira; e o canto de uma coruja camuflada na noite. Um ambiente realmente aconchegante. Talvez, até ancestral.

    Renato tinha gostado do lugar.

    O vento soprou, trazendo um ar fresco e úmido. Gelou sua pele suada.

    Clara retornou para sua cadeira.

    Aproximou os lábios do ouvido de Renato e cochichou:

    — Espero que toquem música eletrônica.

    Renato não respondeu. Estava muito ocupado admirando o ambiente em que se encontrava.

    Sentiu um peso na cabeça, como se alguém a apertasse.

    Por um segundo, ficou alerta. Achou que alguém estava mesmo o atacando, mas relaxou ao ver que não tinha ninguém.

    A boca ficou seca e ele sentiu sede.

    Sucumbiu ao cansaço e deitou sobre o chão de terra batida. A grama fazia cócegas em seu pescoço e orelhas.

    Engoliu em seco.

    Se perguntou quanto tempo levaria para a ayahuasca fazer efeito. Estava ansioso por respostas.

    Apenas quando olhou para as árvores em volta, e as viu se movimentando, aumentando de tamanho, criando galhos e folhas, foi que ele percebeu que já estava sob efeito.

    A cor do céu oscilava do azul para o vermelho, e as estrelas pareciam mover-se, reorganizando suas posições na abóbada celeste. Algumas se apagavam e voltavam a brilhar, quase como se tentassem brincar com a consciência de Renato.

    A música pareceu mais intensa. E as cores em volta acompanharam a melodia.

    Sua barriga reclamou num grunhido.

    Finalmente o comentário do pajé, sobre o banheiro, fez sentido.

    Ele sentou-se e olhou na direção do banheiro.

    A terra se movimentava, fazendo o caminho dançar em zigue e zague. E as pedras brilhavam coloridas.

    O garoto achou melhor não ir ao banheiro nesse momento. Voltou a recostar a cabeça no chão.

    Não sabe quanto tempo ficou ali, recostado, quando a voz do pajé cortou seus pensamentos de forma abrupta:

    — Se alguém desejar a segunda dose, já a estamos servindo.

    Renato fez um esforço tremendo para se levantar.

    Ainda não tinha obtido as respostas que queria. Talvez devesse cavar mais fundo.

    Foi até o pajé. Quando passou perto da fogueira, a viu brilhando com cores diferentes: tons de azul, verde e vermelho estavam dissolvidos no laranja das chamas.

    Ele tomou a segunda dose e retornou para seu lugar.

    A música tinha mudado. Um chocalho parecia acompanhar o violão, e um baque surdo, compassado, dava ainda mais ritmo. Era como se a música puxasse sua consciência, guiando-a através das melodias e batidas, e ele a sentia na pele, junto do calor que aumentava cada vez mais.

    Assim que se sentou, seu estômago se embrulhou e ele teve que segurar a ânsia de vômito.

    — Não se esqueçam — disse o pajé —, vocês não estão passando mal. É o mal que está passando.

    O garoto respirou fundo várias vezes até retomar o controle de seu estômago.

    Olhou na direção da floresta e viu vários pontos de luz se movendo feito vagalumes. Mas não eram insetos. Pareciam pessoas minúsculas, recobertas de luz, voando de uma folha a outra com suas asas coloridas.

    A terra e o céu estavam se fundindo, se tornado uma coisa só. A linha do horizonte ficava cada vez mais difusa.

    Havia chão em cima e estrelas embaixo.

    E de repente não ouve mais nada além das formas básicas: as pedras não eram mais pedras, mas apenas os formatos desprovidos de conteúdo interior. Apenas as silhuetas, círculos imperfeitos, losangos, e várias outras formas vazias.

    As árvores se tornaram linhas tortas que reluziam coloridas. 

    O mundo se desmanchou completamente.

    Tudo se tornou apenas contorno. Linhas coloridas que se retorciam para dar a forma original dos objetos, e nada mais.

    — O que está havendo com ele? — disse uma voz distante.

    — Está vendo o outro lado. Talvez até mais do que eu. — A voz do cacique respondeu, tão longe quanto a primeira.

    Suava de calor; era como estar dentro de um forno.

    A sede ficou insuportável. E na hora veio em sua cabeça um acontecimento passado: ele foi pegar água para pôr num copo, enquanto falava com Jéssica sobre planos para o futuro, e quando finalmente foi encher o copo, ele já estava cheio.

    Na época, Renato pensou que simplesmente tinha se esquecido que já enchera o copo, mas agora ele pôde ver sob um novo ângulo.

    As moléculas do próprio ar se reorganizaram. Os átomos de hidrogênio, em dupla, se uniram a átomos de oxigênio, formando água. E tudo porque ele sentiu sede. Sua vontade transmutou o mundo.

    A música mudou. Ele viu como todas as coisas vibravam num ritmo universal.

    Viu memórias que não eram suas.

    Sentiu o vento no corpo. Um zumbido estranho… vinha dele mesmo. Estava voando, procurando por comida.

    Mas alguma coisa firme e elástica o segurou no ar e impediu que continuasse seu trajeto. Era gosmenta e colava na pele.

    Ele se debateu em vão. Não conseguia se soltar.

    Até que uma aranha se aproximou, batendo as quelíceras mortais umas nas outras. Ela iria devorá-lo.

    Mas sua visão mudou.

    A fome também.

    Olhou para seu corpo, e viu suas oito pernas longas e esguias que se projetavam de seu corpo pequeno.

    Adiante, uma mosca o encarava aterrorizada, enquanto tentava se soltar de sua teia mortal. Em vão.

    De certa forma, Renato até sentiu pena da mosca. Foi quase como se ele pudesse entendê-la. Como se já tivesse sido ela e vivido sua vida.

    Mas tinha tanta fome.

    Bateu as quelíceras de sua mandíbula, testando-as, e se aproximou da mosca.

    Sua visão mudou de novo.

    E essa foi a primeira lembrança que reconheceu.

    Ele era apenas um garoto. Uma criança vivendo no orfanato. Quando brincava de esconde-esconde com as outras crianças, pôde ver, de seu esconderijo atrás de uma árvore, uma teia de aranha, onde uma aranha se preparava para comer uma mosca azarada que caíra em sua teia.

    Ele foi os três. Sentiu os três. Vivenciou as três vidas.

    Mais uma vez o mundo mudou.

    O chão se desfez, deixou de existir, e ele apenas flutuou no vácuo profundo e vazio.

    E viu Deus.

    Ele não sabia como poderia ter certeza que era Deus, mas tinha.

    — Quem é você, realmente? — perguntou o garoto.

    — Eu sou você — respondeu Deus.

    — Eu sou Deus?

    — Você sempre foi. Sempre foi o deus de sua própria vida.

    E ele desejou que houvesse chão para pisar novamente, e o chão reapareceu.

    Mas não era o chão de sempre. Era um esboço. Traços mal feitos, sem textura, quase como um jogo bugado que não teve tempo o suficiente para carregar.

    E havia números por toda parte, em casa detalhe. E, conforme ele se movimentava, números surgiam em volta dele, descrevendo a velocidade de seus movimentos, e a intensidade e direção.

    — Apoteose — disse uma voz feminina.

    — O quê? — Sem entender nada, ele só podia perguntar.

    Até que ela surgiu.

    A menina que se tornou adulta, e a adulta que se tornou idosa.

    Olhar para ela era como olhar para as três fases da vida de uma mulher. Ela era tripla, três numa só.

    E veio andando de uma encruzilhada que se abriu no céu. Cães a acompanhavam, uivando e latindo; e uma corte de fantasmas sussurrava em volta dela.

    Trazia, no peito, uma chave como pingente e uma tocha acesa numa das mãos.

    — Eu sou Hécate, a deusa das encruzilhadas. Aquela que é honrada no Olimpo e respeitada nos Hades.

    — Foi você que…

    — Sim. Eu falei com você na biblioteca. Eu te trouxe aqui.

    — Por quê?

    — Porque você estava perdido numa encruzilhada e precisava de um caminho. Eu habito nas encruzilhadas e caminhos. Apoteose é o que está acontecendo com você. Está se tornando um deus.

    — Não me sinto um deus.

    — Porque ainda tem um longo caminho pela frente.

    — O que é o Reflexo da Verdade?

    — É uma mentira. Uma falha. Deuses podem criar suas próprias versões de mundo, e os Cavaleiros do Apocalipse sempre desejaram isso. Mas eles não passaram por uma apoteose. Não aguentariam uma. Por isso, nunca alcançaram a divindade. O que eles chamam de O Reflexo da Verdade é apenas um reflexo espelhado do mundo em que você vive, uma tentativa falha de criar algo novo.

    — Foi nesse reflexo espelhado que aconteceu a reunião que eu tive com eles, não foi?

    — Sim. E você não poderia ferí-los lá, a menos que também consiga fazer seu próprio reflexo.

    Renato assentiu.

    Ele podia perceber a vibração do mundo, e ouvir a música da Equação Primordial tocando em seus ouvidos.

    — Um novo caminho se abriu.

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