Índice de Capítulo

    Depois de ver Hécate, Renato viajou por muitos lugares incognoscíveis feitos de luz e sombra, e suas emoções se misturaram de um jeito maluco.

    O calor cobria seu corpo feito um casulo de fogo.

    O frio o beijava na espinha.

    A música ressoava lenta, porém imparável. Algo como o som de “om” sendo expelido do fundo da garganta, e vinha de todos os lugares e coisas. Era a vibração natural dos átomos que a produzia… ou talvez fosse a música que os fizesse vibrar. Era difícil ter certeza.

    Renato finalmente abriu os olhos, e a primeira coisa que viu foi o céu escuro, porém com uma tonalidade alaranjada que emergia do horizonte.

    Algumas estrelas ainda brilhavam.

    Se sentou na grama e olhou em volta, procurando Clara. Não a viu.

    A fogueira ainda ardia, porém com menos intensidade. A maior parte da lenha tinha se transformado em carvão e cinzas.

    Alguns indígenas dormiam em redes presas às árvores próximas; mas a maioria estava acordada. Tinham se aglomerado perto do rapaz com o violão e, juntos, cantavam canções alegres que falavam sobre a natureza e a força que vem dela.

    — Você acordou! — o cacique Ysani se aproximou do garoto. Tinha um sorriso amigável no rosto.

    — É…

    — Aposto que teve uma experiência intensa! — Ele tinha certo orgulho.

    — Bastante! — admitiu Renato. — Pra falar a verdade, acho que nem sei explicar direito o que aconteceu.

    Ysani riu.

    — Isso é bastante comum. Daqui a pouco vamos consagrar o rapé. Tem interesse?

    O garoto pensou por um momento.

    — Tenho sim.

    — Renato! Você finalmente… — Clara interrompeu a fala subitamente por causa da ânsia de vômito que subiu por sua garganta. — Droga! 

    Ela bateu as asas e deu meia volta em direção à floresta.

    Depois de um tempo ela voltou.

    — Isso é humilhante — disse, de mau humor. — Eu, uma súcubo, derrotada por um simples chá… onde é que já se viu?!

    Renato riu.

    — Bateu forte em você também, né?

    — Forte? — Ela revirou os olhos. — Nada que eu já não tenha suportado antes. Nem foi tão… ah, deixa pra lá. E você… conseguiu as respostas que queria?

    — Acho que sim. Na biblioteca… quem falou comigo foi Hécate.

    — Hécate?! — Clara exclamou, francamente impressionada. — Aquela Hécate? A deusa?

    — Sim. A deusa.

    — Sabe do que ela é deusa, né?

    — Das encruzilhadas e dos caminhos, segundo ela mesma.

    — E da feitiçaria, da magia, da necromancia, dos cães, dos fantasmas, das tochas… Uma deusa assustadora!

    — Teve uma coisa que eu entendi também. Há um tempo atrás, eu li num livro sobre a Equação Primordial, e sobre como ela produz a música que dá origem a tudo.

    Clara pôs a mão no queixo.

    — Foi naquela época que você estava treinando pra lutar na tercina, não foi?

    — Sim. — O garoto pegou uma pedrinha na mão e começou a observá-la. — Na época, eu não consegui entender nada. Mas agora eu acho que entendo… pelo menos um pouco. Eu vi a Equação, Clara. Vi os números, ouvi a música. Mas não sei se consigo alterá-la. Não sei se consigo mexer na realidade… pelo menos não ainda. Mas eu preciso. Foi esse o caminho que eu descobri. Se eu não aprender a manipular a Equação Primordial, não tem como vencer um Cavaleiro do Apocalipse. Eles são fortes demais.

    Clara olhou em direção à floresta. Os primeiros raios de sol caiam sobre ela feito uma chuva de luz.

    — Acha mesmo que eles são tão invencíveis assim?

    — Você não viu o que aconteceu no Inferno? Não viu o poder de Guerra?

    — Vi. Mas sabe… a gente só perdeu porque subestimamos ele, não foi? Só porque Baalat subestimou, na verdade. Ela tinha um exército a poucos quilômetros dali. Mesmo em desvantagem, conseguimos lutar. Se o exército  estivesse lá, o final poderia ter sido diferente.

    Renato olhou para ela em silêncio.

    Clara continuou.

    — Talvez a gente não precise enfrentar essa luta sozinhos, Renato. Talvez a gente possa contar com a ajuda do Inferno. Eles também querem pegar os cavaleiros, não querem? Talvez… se a gente unir forças…

    Renato suspirou e relaxou os ombros.

    — Não daria certo.

    — Por que acha isso? Só porque eles matariam algumas pessoas no processo? Só porque alguns deles comeriam algumas pessoas? Soldados precisam se alimentar, não é? Isso é algo tão ruim assim, se comparado ao que os cavaleiros vão fazer? Talvez devêssemos deixar que algumas pessoas sejam sacrificadas pelo bem maior do mundo.

    — Não daria certo porque um exército nem teria a chance de lutar, Clara. No Inferno, nós não perdemos só porque Baalat subestimou o Guerra. Mesmo se tivéssemos um exército na hora, o que acha que aconteceria? O mesmo que aconteceu quando Guerra chegou, porém com proporções maiores. Ele fez até mesmo Angélica atacar a própria irmã. Imagina os milhares de soldados lutando contra os próprios aliados. Imagina nós tendo que enfrentar o cavaleiro, enquanto nosso próprio exército tenta matar a gente. Seria pior! Mais difícil, não acha? — Renato deu de ombros e riu de um jeito amargo. Seu olhar estava contemplativo, perdido em algum canto do chão. — Ele só lutou com a gente aquele dia porque sabia que venceria. Senão, ele apenas deixaria a gente mesmo se matar entre si. Mesmo se conseguíssemos convencer o exército infernal a lutar do nosso lado contra Peste, isso só chamaria a atenção dos outros cavaleiros e das bestas; e todos aqueles demônios descontrolados, sob o poder mental de Guerra e dos outros… seria derrota na certa. Por isso, Clara, eu digo que não daria certo. Um ataque rápido e certeiro, se aproveitando do elemento surpresa e habilidades de espreita é a melhor opção. 

    Clara sorriu.  Ajeitou o cabelo que, até o momento, estava meio bagunçado.

    — Talvez você tenha razão. Mas ainda assim… não gosto muito da ideia de nós bancarmos os heróis. — Então ela ergueu o olhar, ostentando o orgulho costumeiro. — Que se dane! Não é um mero Cavaleiro do Apocalipse que vai botar medo nessa súcubo! Vamos vencer isso juntos! Todos nós!

    Renato ficou um tempo olhando para ela, em silêncio. “Juntos” foi a palavra que reverberou em sua cabeça, arranhando feito giz seco na lousa. Agoniante. Se lembrou da profecia de Hoopoe: ele venceria o cavaleiro, mas uma de suas companheiras iria morrer no processo.

    Disfarçando os temores, assentiu e esboçou um sorriso tímido no canto da boca.

    — E se não der certo, a gente dobra a aposta.

    — Ei, garoto! Se aproxime! — O pajé Piatã estava chamando Renato.

    Ele estava sentado num banquinho de madeira. Diante dele havia outro banquinho, no qual Renato sentou.

    O pajé tinha um tipo de canudo entalhado em madeira adornado com desenhos e pinturas étnicas. No colo, trazia uma caixinha de madeira cheia com um pó escuro.

    Renato olhou para aquele homem velho com certa curiosidade. Provavelmente ele teria muitas histórias interessantes para contar ao redor de uma fogueira!

    Rugas riscavam sua pele velha. O olho esquerdo era completamente branco, da mesma cor de seus cabelos.

    Mas havia algo diferente nele. Uma serenidade, e talvez até uma sabedoria ancestral.

    — Está pronto?

    Renato olhou para o pó escuro dentro da caixinha.

    — Estou.

    O pajé assentiu.

    — Que o rapé te traga clareza.

    Pegou um pouco do pó e colocou dentro do canudo. Inseriu uma das pontas do canudo na narina de Renato e soprou com força.

    Foi como receber um soco no nariz.

    Os olhos lacrimejaram e a visão ficou turva.

    — Agora do outro lado — disse o pajé.

    Para Renato, foi como receber outro soco. A queimação subiu rapidamente para o fundo do nariz.

    Quando tentou se levantar, quase caiu.

    Sentia na garganta um gosto forte de tabaco.

    Seu corpo formigou.

    O suor escapava de seus poros.

    O sol já podia ser visto ao longe.

    Ele ouviu o som de água corrente, como se estivesse ao lado de um rio.

    Ainda cambaleante, se aproximou das árvores, na margem da floresta.

    Sentiu o cheiro. Terra e mato úmido. Um aroma agradável.

    Ele tocou numa árvore. De alguma forma, conseguiu visualizar a seiva correndo dentro dela, nutrindo-a, tal qual o sangue das pessoas.

    As pedras e a grama faziam cócegas em seus pés.

    O vento soprava.

    Esse era o mundo onde vivia. Tudo aquilo que podia ver era feito da mesma coisa, da mesma matéria. Moléculas, átomos, possibilidades quânticas e vibrações.

    Quando Arimã o possuiu, chamou esta realidade de imperfeita. Ele era incapaz de ver beleza no mundo criado por seu irmão gêmeo.

    Mas através dos olhos de Renato, ele podia ter uma nova percepção.

    — A verdade…. O reflexo dela, então…

    — Renato? Onde você está? Pra onde você foi? — Clara o chamou.

    — Ah, eu tô aq…

    Mas a súcubo passou por dentro dele como se ele fosse um fantasma. Ela não o ouviu e muito menos o enxergou, e quando seus corpos deveriam colidir, foi como se ele não fosse feito de matéria.

    — Pra onde foi? — Ela chamou mais uma vez, enrugando a testa. 

    Renato caminhou para o pátio da aldeia, e ninguém era capaz de vê-lo. Exceto ele.

    Os olhos do cacique brilhavam numa tonalidade acobreada, e suas pupilas tinham o formato fendido, como pupilas de gato.

    E ele estava olhando diretamente para Renato.

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