Índice de Capítulo

    Enquanto descia as escadas, e caminhava lentamente até o térreo daquele prédio de três andares, Renato ouvia alguns sons que, a cada passo, ficavam mais distantes:

    Clara Lilithu xingava e o amaldiçoava, e com a voz trêmula dizia que ele merecia morrer mesmo! Afinal, quem mandou ser tão arrogante assim? Um mero humano pensando que poderia salvar uma súcubo? Idiota! Um idiota colossal! Mas a voz dela falhava, e ela deixava um soluço escapar da garganta, e Renato sabia que aquelas palavras não eram tão sinceras assim. Clara era uma mentirosa.

    Também tinha a voz de Jéssica. Mais silenciosa, é verdade, mas ainda perceptível.

    Ela murmurava palavras de indignação. Estava com raiva, é claro. Mas não escondia a preocupação. 

    Mical chorava baixinho para ninguém ouvir.

    Mas todos ouviram. Porém, fingiam não ouvir, em respeito à companheira. Era a mais sincera de todas.

    Lírica rosnava e dizia palavras desconhecidas de uma língua estranha. A voz dela era pouco amistosa, carregada de um ressentimento feroz.

    Mesmo assim, Renato não desistiu.

    Até houve um momento onde ele parou sua marcha firme. Ficou ali, apenas escutando suas companheiras ao longe. A dúvida lhe corroía o cérebro.

    Sentia-se um traidor.

    Elas tinham o direito de escolher. Ele sabia disso. 

    Mas Renato tinha medo.

    Medo de perdê-las.

    Das pessoas que já foram importantes em sua vida, não restavam muitas.

    Seus pais já tinham morrido; seus irmãos adotivos e as freiras que tinham se tornado sua família também. Hiro morreu. O único amigo que ele conseguiu fazer na escola.

    Todos ao seu redor estavam morrendo. Era desesperador.

    E o pior:

    depois de tudo, uma de suas companheiras também iria…

    A profecia de Hoopoe foi bem clara.

    Renato não poderia aceitar isso!

    Que se dane a profecia!

    Dane-se o destino!

    Renato já tinha entendido uma coisa: ele era um ponto fora da curva. Uma anormalidade; tipo uma interferência num sinal de rádio. Quando se tratava dele, profecias podiam errar e até o destino sentiria dúvidas.

    Ignorou os protestos de suas companheiras e continuou andando.

    Pegou a moto cb 600 e ganhou a estrada.

    A cidade já estava mergulhada em caos havia um tempo, mas naquele momento, parecia ainda pior.

    Havia cadáveres caídos nas calçadas, com marcas na pele e sangue nos olhos.

    Seus sentidos, que estavam mais aguçados do que nunca, até puderam captar o pranto que ecoava das casas.

    As poucas pessoas que se aventuravam nas ruas, passavam por cima dos cadáveres, ignorando-os. Tossiam quase até cuspirem os pulmões e praguejavam.

    Quando chegou no antigo prédio da Secretaria Estadual de Saúde, Renato parou a moto e desceu.

    A Miguel Sutil, uma avenida larga e, outrora, movimentada com um trânsito frenético, estava desértica.

    A lataria incendiada de um carro jazia sobre o asfalto. Apenas poeira e som do vento.

    Era como uma cidade fantasma.

    Olhou para aquele prédio e praguejou, estalando a língua.

    — Uma maldita barreira… — disse, com uma careta amarga.

    O domo translúcido cobria todo o prédio, envolvendo-o e selando qualquer possível entrada.

    Através da fina energia, ele podia ver os incontáveis putrefatos, com pele apodrecida, a carne descolando dos ossos, e segurando suas armas feitas de ossos.

    — Mas é claro que tem uma barreira.

    Renato se virou em direção à origem daquela voz, e viu ao seu lado Belfegor, que recolhia as asas, após pousar.

    — Ou acha que um Cavaleiro do Apocalipse seria tão descuidado? — O demônio completou o raciocínio, com um tempero de deboche na voz.

    Renato deu de ombros.

    — Eu não sei… eu só…

    — Só pensou que chegaria aqui e distribuiria porrada em tudo o que se mexe?

    — É — admitiu Renato, a contragosto, depois de alguns segundos de hesitação.

    Belfegor gargalhou gostosamente

    Um segundo demônio pousou junto deles.

    — Ora, Belfegor, não seja tão crítico. Você, assim como eu, deveria saber que o Renato pode se sentir confiante desse jeito, não é?

    Renato apertou os dentes. Detestava aquela presença.

    — Abigor!

    — Deseja que eu mate este demônio insolente, mestre? — perguntou Belfegor.

    Abigor deu de ombros e sorriu.

    — Se for me matar, aconselho que faça isso depois, afinal, parece que, no momento, o Renato precisam de toda ajuda possível. E eu sou ótimo em ajudar.

    O garoto suspirou e olhou em direção àquela barreira impenetrável.

    — Pelo que sei, existem três maneiras de se lidar com aquilo. A primeira é procurar por falhas…

    — Não existem — retrucou Abigor.

    — Ou superar a barreira em poder mágico e arrebentar ela na força bruta.

    — Seria impossível. Nem mesmo um deus conseguiria.

    — E terceiro: dá pra desconectar a bateria. Como qualquer feitiço.

    — É verdade — respondeu Abigor. — Mas também seria impossível. A bateria desse feitiço é o próprio Peste. Ele está drenando seu próprio poder mágico para manter a barreira. A única maneira de “desconectar a bateria” seria chegando até ele. Mas isso implicaria que você já teria atravessado a barreira. O que coloca todo o plano numa lógica circular. Ou seja: impossível

    — Ora, não nos faça de idiota! — rosnou Belfegor. — Se tem alguma ideia, diga logo! Ou eu mesmo esfregarei sua cara feia nesse asfalto!

    Abigor suspirou, como se estivesse cansado, e deu de ombros.

    — Bom, já que é assim, então eu vou embora. Torço muito para que morram chamando por meu nome!

    — O Reflexo da Verdade, não é? — inquiriu Renato.

    Abigor abriu um sorriso satisfeito.

    — Touché! Ora, parece que o primata também sabe usar o cérebro, às vezes.

    — Reflexo… de quê? — Belfegor ergueu uma sobrancelha. — Acho que ouvi aquele anjo falar nisso no outro dia. Do que se trata?

    Abigor se aproximou de Renato.

    — Mas seria perigoso.

    — Quais os riscos?

    Abigor deu de ombros.

    — Ora, Renato, todo feitiço tem uma vibração muito específica. Como tudo no universo, é claro. — Abigor ficou um tempo olhando para o rapaz, como se esperasse que ele complementasse seu raciocínio.

    — Terceira lei hermética: nada está parado e tudo vibra — disse Renato.

    — Bingo! Vejo que está com os estudos ocultos em dia! A vibração de um feitiço é como sua assinatura. É claro que você pode tentar suplantar um feitiço se tiver mais poder, mas se não tiver, é mais provável que você seja estraçalhado inteiro quando tentar. Mas isso só se você  lutar contra o fluxo de energia do feitiço. Se você conseguir vibrar na mesma frequência, as coisas podem ser diferentes. Consegue entender isso com seu ineficiente cérebro de primata, Renato? 

    — Sugiro que module a língua, Abigor! — rosnou Belfegor, com dentes cerrados.

    — Sugiro que você cale a boca enquanto eu ajudo o Condutor de Arimã.

    — Se eu conseguir vibrar na mesma frequência, ao invés de estar lutando contra o feitiço, seria como se… eu apenas surfasse no fluxo dele.

    — Algo assim — assentiu Abigor. — E pra sua sorte, primata, a barreira do feitiço de Peste é muito parecido com o Reflexo da Verdade. A natureza do poder deles é muito semelhante ao seu, aliás. Um deus não conseguiria rompê-lo, mesmo sendo mais forte, porque a magia deles vibra numa frequência muito acima. Os cavaleiros são imperfeitos, assim como você. Somente alguém imperfeito poderia… como é mesmo que você disse?… surfar no fluxo do feitiço.

    — Certo. Entendi.

    — Mas se seu poder falhar enquanto estiver… do outro lado do espelho… a barreira vai te despedaçar.

    Renato sorriu.

    — Tem que ter algum perigo pra ter graça, não é?

    Ele fechou os olhos e se concentrou. Já tinha feito isso antes, então não deveria ter muitas dificuldades.

    Ouviu o sussurrar do vento no ouvido e o murmúrio das árvores próximas.

    O sol lhe tocava a pele com suavidade.

    — O outro lado do espelho… o reflexo do mundo real…

    A mesma coisa que os cavaleiros tinham feito na lanchonete.

    Ele emularia uma realidade paralela.

    — Não é a verdade… a realidade… é apenas o reflexo…

    Os grãos de poeira, carregados pelo vento, bateram em seu rosto.

    Abriu os olhos.

    Não se sentiu diferente.

    Olhou em volta e… a placa com o nome da rua estava diferente. De trás pra frente, invertida… espelhada.

    Encontrou os olhos confusos de Belfegor, e soube na hora que o demônio não o estava vendo.

    Abigor, ao seu lado, sorria aquele sorriso nojento e enigmático, de alguém que esconde alguma coisa.

    Mas o importante era que tinha dado certo!

    Renato se aproximou da barreira.

    Hesitou por um momento.

    Lembrou das garotas.

    “Não quero que aquela seja a última lembrança que elas tenham de mim” pensou.

    Tocou a barreira.

    Algo formigou na palma de sua mão, como um choque elétrico suave. A pele se arrepiou.

    Ele afundou as mãos para dentro da barreira.

    E o que sentiu foi frio.

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