Capítulo 184: Via crucis
— Desgraçado! Ele não tinha o direito! — Jéssica socou a mesa, enquanto mordiscava os lábios. Seus olhos estavam cheios de preocupação.
Lírica farejou o ar. Estava trepada no parapeito da janela, com os raios de sol fazendo seus cabelos de cobre brilharem.
— Ele chegou na fortaleza de Peste. Consigo sentir pelo cheiro.
— Vai saber se ele morrer? — inquiriu Jéssica.
A demi-humana demorou um pouco para responder. A simples possibilidade lhe esmagava o coração.
— Vou — respondeu finalmente, com uma sombra nos olhos.
Clara entrou na sala. Trazia uma taça de vinho presa nos dedos.
— Ai, ai, o olfato dos demi-humanos ainda me surpreende!
— Está bebendo vinho? Como se nada demais estivesse acontecendo? — Jéssica cerrou os dentes.
— Então eu tenho que esperar com a boca seca? Não mudaria nada. — Os olhos da súcubo se fixaram em algum ponto da parede, enquanto pensamentos fervilhavam em seu cérebro. — Aquele desgraçado! Quem ele pensa que é? Querendo bancar o herói?! É um tolo suicida! Aposto que ele vai morrer! Aposto que ele vai… Maldit… — Parou de falar. Fungou. Limpou, com o dedo, uma lágrima teimosa que ousou brilhar em seu olho direito. Depois ela riu e bebeu um gole do vinho. — Se ele sobreviver, eu mesmo o matarei! Mas primeiro vou torturar! É isso! Vou fazer ele implorar pelo meu perdão! Como ousa me deixar preocupada desse jeito?! Maldito! Macaco de barro! Australopithecus!
Mical, que estava calada, limpou as lágrimas e se levantou. Em seu rosto, uma expressão determinada.
— Não vou ficar aqui apenas esperando! Vou fazer alguma coisa!
Clara deu de ombros.
— E o que pretende fazer, freirinha? Rezar? Já deveria ter percebido que não funciona, né?
Mical ignorou as palavras da súcubo.
— Jés, não vou pedir sua permissão.
— Minha… permissão para quê?
Mical apenas se virou, sem responder, e caminhou em direção a porta.
Cada passo que deu foi lento, pesado, como se carregasse uma mochila cheia de concreto nas costas.
E, quanto mais se aproximava da porta, era como se a gravidade ficasse mais forte debaixo de seus pés, puxando-a.
É isso era só o começo da trajetória que faria.
— Vou atrás dele — disse, finalmente, com a mão na maçaneta da porta.
Clara gargalhou.
— Deixe de besteiras! É impossível! Eu sei que quer ir… todas nós queremos, mas não dá!
Clara deixou a taça de vinho na mesa, se levantou e se aproximou da garota.
— Seus passos vão ficar cada vez mais pesados. Será como ter toneladas te esmagando contra o chão. Uma dor excruciante se abaterá sobre você. Será como navalhas… como milhares de ferroadas de vespas por toda a sua pele. Como se escorpiões ferroassem sua língua e serpentes picassem seus calcanhares! Seus músculos vão arder como se estivessem em chamas! Sua mente não vai suportar, Mical. E nem o seu corpo. Você morrerá se tentar fazer algo tão tolo quanto desobedecer uma ordem direta sob poder do pacto. Não tem jeito! É a lei cósmica. Um pacto não pode ser desobedecido. Então deixe de bobagem, pegue uma taça de vinho e beba comigo enquanto esperamos o retorno do Renato. Se ele retornar…
— Esse “se ele retornar” me mata! Não vou esperar!
Ela abriu a porta. E, na hora, sangue começou a escorrer de seu nariz.
— Mical! Espere! — gritou Jéssica. — Como sua irmã mais velha, eu te proíbo de ir! Não tem minha permissão.
Mical apenas direcionou um olhar terno e carinhoso para sua irmã.
— Jés… não tô pedindo sua permissão. Espero que me perdoe.
Ela correu por aquele corredor, sem olhar para trás. Não tinha tempo a perder.
— Mical! — Jéssica tentou ir atrás dela, mas uma pontada aguda de dor lhe atravessou o peito, e uma pressão esmagadora a empurrou contra o chão, e Jéssica caiu, com o nariz e olhos sangrando.
— Se você for atrás dela, também vai morrer — disse Clara.
— Mas eu preciso… — Jéssica tentou se arrastar em direção a porta, mas não suportou todo aquele sofrimento que caia sobre ela feito tsunami, e ela desmaiou.
Lírica, que ainda estava na janela, deu de ombros.
— De todas nós, justamente a mais fraca vai atrás dele?
Clara balançou a cabeça.
— Mical não é fraca. Ela nem teria conseguido sair pela porta, se fosse. Sinceramente, eu queria ter a força para segui-la… ir com ela. — Ela direcionou o olhar para Jéssica caída no chão. — Acho que todas nós queríamos. Mical é a mais forte de nós.
Os passos de Mical eram lentos, mas constantes.
Suas pernas tremiam. A visão estava turva. Sangue escorria pelo nariz, olhos e ouvidos.
A dor aumentava a cada passo.
E o peso sobre ela era tão grande, que ela sabia que se caísse no chão, seria esmagada.
Ela não sabia como ainda conseguia permanecer de pé. Ela só evocava de dentro de si toda a energia que podia e continuava. Se recusava a desistir.
Quando chegou na rua, a brisa suave fez cócegas em sua pele e agitou seus cabelos.
Tentou dar mais um passo, mas algo aconteceu.
Uma dor terrível atravessou seu peito, e ela se inclinou, enquanto se contorcia, e vomitou sangue.
E o ar sumiu de vez. E tudo o que sentiu foi um líquido viscoso e quente na garganta.
Seu pulmão tinha sido destruído.
Ela pôs as duas mãos sobre o peito, e a luz verde cintilou em seus dedos, até que conseguiu respirar novamente.
Ela cuspiu o sangue da boca e continuou andando.
Até que, em determinado momento, as pernas não aguentaram, e seu joelho rangeu feito porta enferrujada, e ela ouviu o som de algo se quebrando.
E Mical caiu no chão.
Tentou tocar o joelho para curá-lo também, mas a dor em seu corpo era tamanha que ela não conseguia se mover.
Cada movimento seu lhe castigava com um sofrimento insuportável.
O rosto formigava e pontadas lhe dilaceravam as costelas.
Mesmo com os pulmões restaurados, era difícil respirar.
A cabeça parecia que ia explodir.
— Eu tô… morrendo… — murmurou.
— Ei, é você de novo! — disse uma garotinha abaixada ao lado dela.
Tinha por volta de 5 anos, cabelos longos e pretos com uma franjinha sobre a testa.
Usava roupas leves cor de rosa e uma mochila nas costas.
— Você… — gemeu Mical —, eu já te vi… quando recebi a magia de Azazel.
— Sim! Você se lembra? Já sabe quem sou eu?
— Não… não sei…
— Eu sou você, bobinha! Sou seus sonhos de infância! Sou aquela você que se escondia debaixo do cobertor para não ver nossos pais brigando.
— Eu tô… morrendo… não tô?
— Só se você desistir! — A garotinha lhe direcionou um sorriso acolhedor, com aqueles olhinhos verdes brilhantes.
— Tem… tem razão! Não posso…
Ela puxou de dentro de si toda a força que ainda tinha.
Cerrou os dentes, gemeu de dor, gritou, mas não parou até conseguir curar seu joelho e se levantar.
— Agora… só mais um passo! E depois outro… e depois…
— Mical? O que está acontecendo?
— Hum?
Ela olhou em volta, mas a visão anuviada não lhe permitiu ver com clareza. Entretanto, ela reconheceu a voz.
— Tâmara?
— Euzinha, linda, forte e inteligente, como sempre. O que está acontecendo? Dá pra me explicar? Você está horrível! Tem sangue saindo por todos os seus orifícios.
— O Renato… — Mical falava com dificuldade, com a voz falhando e a língua doendo como se estivesse em brasa —, ele vai enfrentar um Cavaleiro do Apocalipse… sozinho!
Tâmara relaxou os ombros e suspirou.
Ela e Mical nunca foram amigas. Na verdade, era mais provável que elas se matassem em algum momento, em uma luta brutal.
Mas, de uma coisa ela sabia: esta garota amava Renato tanto quanto ela. E é claro que nenhuma das duas deixaria aquele garoto sozinho numa situação de perigo.
Renato era teimoso, com um instinto levemente suicida. Por isso, Tâmara não hesitou em acreditar nas palavras de Mical.
Ela assentiu.
— E é claro que eu vou com você — disse, com um sorriso.

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