Capítulo 00 - Prólogo: Luta no beco
— Parecem formiguinhas. Formiguinhas fugindo da chuva.
Os ventos, que aos poucos ganham força, fizeram seus cabelos longos e pretos se esvoaçarem. Seus olhos castanho-avermelhados brilharam.
Ela tinha perfeita visão da cidade do alto daquele prédio de três andares. Os prédios cinzentos e casas quase caindo aos pedaços, os carros no engarrafamento esbravejando suas buzinas, pedestres fugindo da chuva em formação.
— É uma noite linda. — A bela dama dos cabelos pretos disse, olhando o horizonte noturno, com uma linda lua enfeitando o céu.
Então ela, percebendo uma movimentação diferente vinda de um beco, olhou com curiosidade e viu duas garotas agitadas caminhando no escuro. As garotas estavam bem próximas e andavam segurando a mão uma da outra, e suas roupas eram parecidas. Saias longas e blusas de mangas compridas até os pulsos. Uma delas tinha, sobre a camisa, uma jaqueta negra desabotoada. Sobre a parte da jaqueta que cobria os ombros, a mulher pôde ver um símbolo conhecido. Uma espada enterrada no peito de um homem morto, formando uma cruz.
— A Cruz do Atalaia? — A mulher de cabelos pretos disse, franzindo o cenho, após reconhecer o símbolo.
— Ei, Jes, onde acha que estamos? — A garota menor disse, segurando forte no braço da irmã mais velha, enquanto franzia o cenho, preocupada.
— Não faço ideia, Mica, mas… é liberdade! — disse a outra, inspirando com força o ar com cheiro de terra molhada e sentindo a água da chuva cair sobre seu corpo.
Elas seguiram caminhando lentamente pelos becos, olhando para cada sombra, estacando a cada ruído estranho. Pareciam perdidas e assustadas.
Não notaram o curioso par de olhos castanho-avermelhados que as seguiam.
— Jes, acha que conseguimos despistar eles? — disse a menor, com olhos amedrontados.
— Acho sim. Fica tranquila, minha irmã. Vai dar tudo certo.
Mical assentiu.
— Jes — disse ela com um brilho estranho nos olhos —, qual é a primeira coisa que você quer fazer?
— Eu não sei. Comer doces, eu acho. Eu sempre quis comer daqueles doces que eu vi na revista. E você, Mica?
Os olhos verdes de Mical brilharam mais estranhos ainda.
— Eu quero sentir o toque de um homem. Quero saber como é o sexo.
Jéssica encarou a irmã sem acreditar em seus ouvidos. Essa pirralha!
Antes, porém, que Jéssica pudesse dar um cascudo e um sermão em sua irmã mais nova, as duas foram interrompidas.
Olharam em volta. As sombras do beco tornavam impossível dizer quantos homens eram, mas elas podiam ver que estavam cercadas.
Todos usavam jaquetas negras semelhantes à de Mical, com o mesmo símbolo da Cruz do Atalaia.
— Jéssica e Mical. Vocês deveriam ter vergonha de correr dessa forma para os braços de um mundo profano. Pecadores devem morrer. Vocês têm sorte de serem filhas de quem são, senão serviriam de exemplo. Agora, sejam boas garotas de Deus e não reajam! — Uma voz grave e baixa soou entre as sombras do beco. — Peguem-nas!
— General Kézar!
— Corre! — Jéssica gritou e, antes que sua irmã pudesse reagir, ela a puxou pelo braço e tentou correr pelo beco, mas as duas estavam cercadas.
Não puderam correr. Os homens formaram um círculo em volta das garotas, para impedi-las de fugir, e foram se aproximando lentamente. Eram assustadores.
— Você vem comigo, garotinha! — Um deles agarrou Mical.
Mical se debateu, tentando se soltar. Sua irmã veio em socorro, mas outro homem a agarrou também. Elas se debatiam, tentando se libertar, mas era em vão.
— Levem-nas até o carro! — ordenou Kézar.
Um dos homens puxou Jéssica, mas o que segurava Mical permaneceu parado. Seus olhos estavam paralisados como se estivessem sem vida, sua boca aberta deixava um fio de baba escorrer pelo canto.
Porém o mais intrigante era o volume na calça do homem, como se ele tivesse posto uma berinjela grande dentro da cueca, e foi ficando cada vez maior.
— Me solta, seu tarado! Socorro! — Mical gritou a plenos pulmões.
— Que merda, George? — Kézar franziu o cenho.
O volume na calça de George não parava de crescer. O rosto do homem se contorceu em dor extrema.
George soltou Mical, que se afastou dele imediatamente. Ele pôs a mão sobre a coisa anormalmente gigante e deixou um gemido de agonia escapar da boca.
O pênis estourou, jogando sangue para todo lado. Aquele líquido vermelho e viscoso não parava de sair do buraco aberto na virilha do homem, manchando, dessa forma, todo o chão do beco. Fluía muito rápido, como se alguém soprasse nas artérias dele para garantir que sairia tudo.
George caiu de joelhos. Gemeu em agonia mais uma vez, antes de cair morto.
Todos olhavam aquela cena totalmente abismados e aterrorizados. Ninguém entendera o que acabara de acontecer.
Kézar enrijeceu os músculos da face, demonstrando confusão e fúria.
— Que mer…
— Desculpe. É culpa da minha influência. Os homens não conseguem manter os genitais seguros perto de mim. — A bela mulher de cabelos pretos veio andando tranquilamente. Os olhos castanho-avermelhados, brilhando no escuro, conferiam a ela um tom sombrio.
Ela surgiu das sombras e era como se as próprias sombras se curvassem para ela, e num misto de sensualidade e terror, mudou o rumo dos acontecimentos.
— Q-quem é você? — Um dos homens disse, claramente assustado.
— Diga seu nome! — ordenou Kézar.
Sem responder, a mulher desapareceu no escuro como névoa e, em fração de segundos, seu vulto enevoado surgiu atrás de um dos homens. Ela tocou-o levemente na região da nuca, antes de desaparecer novamente. Mais uma vez, seu vulto enevoado surgiu atrás de outro homem, tocou-o na região da nuca e desapareceu.
Os homens tentavam segui-la com os olhos, mas seus movimentos eram rápidos demais.
Finalmente a névoa surgiu no centro do beco, diante de todos, e, de dentro dela, surgiu a mulher.
Ela parecia cansada. Pôs as mãos na cintura, respirou ofegante e disse:
— Acho que eu tô meio fora de forma!
Um dos homens, o primeiro que ela havia tocado na nuca, caiu de joelhos. Sangue escorria de sua virilha. Até que, após um grito desesperado, seu pênis explodiu e ele caiu morto.
O segundo homem, vendo o que acabou de acontecer, entrou em desespero e começou a chorar.
— Por favor, salve-me! Imploro!
— Ah, pelo amor de Satã! — disse a mulher, com exasperação.
Antes que voltasse a implorar, seu pênis também explodiu feito um balão cheio d’água.
O corpo caiu imóvel sobre o sangue que escorria do próprio órgão genital.
— Meu nome é Clara Lilithu. — A mulher de olhos castanho-avermelhados disse, com um sorriso exuberante no rosto. — Sou uma súcubo.

— Homens! — exclamou Kézar. — A gente cuida dessas duas pirralhas fujonas depois. A prioridade é matar essa vagabunda espiritual!
Os homens avançaram todos de uma vez sobre Clara, tirando, por um instante, a atenção das garotas.
O primeiro, que havia puxado um cutelo da cintura, moveu a arma horizontalmente, tentando atingir o pescoço da súcubo.
Ela, porém, inclinando o corpo para trás, deixou que a arma passasse direto sem atingir nada. Voltando à postura rapidamente, a mulher atingiu um soco violento no abdome do homem.
A força do impacto criou uma onda de choque no ar, e o corpo de seu adversário foi arremessado com força contra uma parede. Ele caiu inconsciente.
O segundo estava com as mãos limpas. Ele era grande, com braços grossos e musculosos, lembrava algum personagem genérico de jogo de luta.
Ele veio correndo como um trem descarrilado.
Tentou o primeiro soco. Clara desviou sem dificuldades. Ele tentou o segundo soco, mas ela também desviou.
Ele, cheio de fúria, tentou o terceiro soco.
Após desviar pela terceira vez do golpe, a demônio do sexo, num contra-ataque feroz, atingiu um soco de força aterradora no queixo do homem, fazendo dois dentes incisivos rodarem solitários no ar. O trem descarrilado tombou para trás, praticamente morto.
— Vamos aproveitar para fugir! — Jéssica disse para a irmã, puxando-a pelo braço.
— Não. Eu quero ver isso. — Mical recusou-se a sair dali. Ela nem desviava os olhos da luta. Estava impressionada com o poder daquela mulher.
Os homens continuavam atacando e, dessa forma, eram abatidos um a um.
Ela os estava trucidando. Onda de ataque após onda. Todos caíam aos seus pés.
A súcubo era extremamente rápida e quase nenhum ataque conseguiu tocá-la.
Por outro lado, sua força esmagadora garantia que um único golpe era o suficiente para acabar com um oponente.
Não demorou para que todos estivessem mortos, ou quase.
Menos o general Kézar, o líder deles.
Ele espumava de raiva pela boca. Seus olhos exprimiam nada além de ódio e repulsa. Ele mataria esse demônio custe o que custar! Ele não perderia para um ser desprezível desses! Não mesmo!
Então, todo o semblante de raiva desapareceu e deu lugar a um sorriso ameaçador.
A súcubo se preparou para algo ruim. Aquele homem estava calmo demais. Alguém que acabou de ver todos os seus subordinados serem derrubados desse jeito não deveria estar tão calmo.
— Diz a lenda que um cruzado valoroso matou muitos pagãos com ela. — Kézar começou a falar, nostálgico. Um sorriso de orgulho brotou em sua boca. — Todos os inimigos de Deus caíam perante essa lâmina. Ela provou o sangue de mais sarracenos do que o chão do deserto. O cruzado era tão terrível que ficou conhecido como Arcanjo, o general dos céus. Um dia, porém, cansado de matar meros humanos, cansado de ser o exterminador que vai atrás dos ratos, o valoroso cruzado rogou aos céus que lhe permitisse matar os piores dos piores inimigos de Deus, e o Senhor o ouviu.
Clara olhava para Kézar incrédula. Ela conhecia a história.
As duas garotas, que já conheciam o general, previam o pior.
— Uma gota de sangue do próprio Cristo caiu do céu sobre a lâmina da espada. — Kézar esticou o braço direito, que nesse instante foi envolvido numa intensa luz branca. — A espada foi transformada numa perfeita arma para matar criaturas como você, demônio imundo.
Na mão do general, entre a luz, materializou-se uma espada brilhante. Descendo em espiral em volta da lâmina, podia-se ver uma gota de sangue seco.
O general segurou a espada diante de si com as duas mãos.
— Esta é a Joia do Arcanjo. Com esta lâmina matarei quantos espíritos malignos eu puder! Sua cabeça será só mais uma na minha coleção.
— Ora, ora. Um zero à esquerda como você empunhando tamanha preciosidade! Quem diria?! — Clara Lilithu sorriu, desafiadora. — Você fala bem, zero à esquerda, mas sabe lutar?
Kézar disparou em direção à Clara, ficando diante dela em menos de um segundo e, num movimento extremamente rápido, ele golpeou com a espada, movendo-a horizontalmente.
Clara, saltando para trás, evitou ser atingida pelo golpe, mas seu vestido foi cortado na altura do peito. Uma abertura no vestido foi feita e, através da abertura, foi possível ver o sutiã rosado.
— Eu adorava esse vestido. — Clara disse, com dentes cerrados.
— Eu tô adorando seus peitos. — O general respondeu, antes de partir novamente para o ataque.
Ele era muito hábil com a espada. Infinitamente mais ágil que seus subordinados.
Clara conseguia desviar dos ataques, mas não podia bloqueá-los, e dificilmente poderia contra-atacar. Aquela espada era perigosa! Ser ferida por aquela lâmina poderia significar a morte até para uma súcubo.
O general empurrou a ponta da espada, tentando atingir o coração da súcubo, mas ela desviou do ataque agilmente. A ponta da lâmina foi cravada na parede.
O general empurrou a espada para o lado, fazendo um risco na parede, enquanto tentava atingir sua oponente.
Vendo uma oportunidade, Clara se abaixou, e desferiu um soco contra o general. Seu punho enterrou-se no abdome dele.
O corpo do general foi jogado para trás, mas ao contrário de seus subordinados, ele não caiu. Ele conseguiu fixar os pés no chão, evitando uma queda ainda mais dolorosa.
Clara estava ofegante. Lutar à noite não era problema, já que ela podia enxergar sem dificuldades mesmo no escuro. O problema maior era que ela estava desarmada, aquela espada era perigosa, e, pra variar, o zero à esquerda não era tão inútil assim.
Kézar abriu um sorriso de vitória.
— Você não é uma guerreira, não é? É só uma prostituta de luxo dos diabos! —O general apontou a lâmina para Clara. Um olhar sádico surgiu em seu rosto. — Hora de juntar sua cabeça à minha coleção.
Mical, porém, que assistia a luta dos dois a curta distância, correu até onde o cutelo que estava caído no chão, aquele do primeiro homem a tombar, pegou-o e jogou para Clara.
— Pegue! — gritou.
O cutelo veio rodando pelo ar e foi parar na mão de Clara, quem aparou-o pelo cabo, e o posicionou diante de si, esperando o ataque.
Kézar avançou.
Golpeou com a espada, mas o golpe foi bloqueado pelo cutelo.
Surpreso, ele vacilou por um momento. A súcubo aproveitou para atacar.
Dessa vez era o general que lutava para não ter o corpo perfurado, enquanto Clara atacava cada vez mais feroz.
Num movimento rápido, ela passou pelo general e tentou tocar com os dedos a nuca dele, mas ele, prevendo o ataque, girou rapidamente sobre seu próprio corpo e conseguiu se defender.
Não. Não era ele que era tão rápido assim. Ela é quem estava sem forças para usar esse golpe mais uma vez.
Não tinha jeito. A luta iria ser decidida nas lâminas mesmo!
O general Kézar, sedento por sangue, empreendeu mais um ataque com a espada.
Clara, no entanto, num movimento digno de um espadachim experiente, decidiu por não bloquear o ataque, mas desviar-se dele.
A espada passou direto ao seu lado.
O coração da súcubo bateu mais rápido. Era como se ela estivesse vendo tudo em câmera lenta.
A espada se moveu próxima ao seu rosto, e aquela mão veio logo atrás, segurando o cabo.
Clara não teve dúvidas!
Ela moveu o cutelo de baixo para cima.
A lâmina do cutelo achou o pulso do general e o atravessou. A mão girou no ar, ainda segurando a espada. Sangue escorreu.
O general caiu no chão, gritando de dor.
As duas garotas pareciam horrorizadas com o que acabaram de ver.
A espada, ainda com a mão presa em volta de seu cabo, caiu a meio metro do general.
Clara sorriu, vitoriosa.
Ela se aproximou da espada. Era a joia que queria. Aquela lâmina poderia dar-lhe vantagem em confrontos futuros, afinal, a vida de súcubo não era tão fácil assim.
Antes, porém, que Clara pudesse pegar a espada, o general se rastejou no chão e se jogou sobre a arma, segurando-a com a mão que ainda lhe restava.
A espada foi envolta em inúmeras partículas de luz até desaparecer por completo num intenso brilho branco.
— Um demônio como você nunca a terá — disse Kézar, tossindo.
— Ora. Parece que vou ter que me contentar com uma cabeça para a minha coleção particular. Que foi? Acha que é só você que tem uma? — Clara disse, rodando o cutelo.
— Não! Não mata ele!
— Não o mate! Por favor! Agradecemos por nos ajudar, mas não precisa matá-lo.
Mical veio correndo, chorando. Jéssica veio logo atrás.
— Chega de sangue! — enfatizou Jéssica com olhos lacrimejados.
Clara sorriu, resignada.
Ela se virou para Kézar caído no chão.
— Saiba, zero à esquerda, que você só está vivo porque elas pediram por sua vida e porque eu deixei. — Ela se levantou e encarou as duas garotas. Inspirou o ar úmido. Sentiu o cheiro de mais problemas. Sabia que havia mais Atalaias por ali. Pensou no que faria com as duas garotas, então estalou a língua, com raiva. — Que se dane! Eu já fiz demais!
Se virou e respirou fundo. Estava cansada.
— Nós vamos te achar, Súcubo — A voz de Kézar saiu estridente. Foi quando um clarão explodiu por todo o beco. Quando a luz se dissipou, Kézar e as duas garotas haviam sumido.
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