Capítulo 02: Hades e blablablá
Renato meteu a mão na maçaneta, abriu a porta e pulou para fora do Camaro. Clara, com o corpo coberto de sangue, com os cabelos e roupas colados à pele, era uma visão assustadora e deslumbrante. As duas garotas, abraçadas uma à outra, próximas a ela, pareciam verdadeiramente assustadas.
Renato levou a mão à nuca e franziu o cenho. Suas mãos estavam tremendo.
Em volta deles, a multidão curiosa se tornava cada vez maior. Quase todos filmando com celulares. Cochichavam e apontavam para eles.
O rapaz notou que a chuva nem estava tão forte quanto parecia antes.
Ele olhou para a estrada. O trânsito havia parado. As pessoas, assustadas e curiosas, não paravam de se aglomerar.
A uns 50 metros de distância, um corpo estava numa verdadeira poça de sangue. Mais ao longe, uma viatura policial brilhava num pilar de fogo e fumaça.
— Vamos pro carro — disse Clara, com a voz tranquila, porém firme.
— Ei, você tá com elas? —— disse uma mulher, segurando Renato antes que ele entrasse no Camaro. Ela apontava a câmera do celular para o rosto dele, o que o deixou nervoso. Ele não respondeu, apenas enrugou a testa.
— É que eu sou estudante de jornalismo! Poderia falar comigo por um instante?
— Vamos, Renato! — a voz da súcubo veio do carro, impaciente.
— Com licença! — Ele se desvencilhou do braço da mulher.
— Me liga pra gente conversar! — Ela pôs na mão dele um papelzinho.
Ele pegou o papelzinho e entrou no carro. Clara pisou fundo no acelerador.
Renato desdobrou o papel. Como suspeitava, um número de celular estava escrito. Ele guardou o papel no bolso.
— E então… vocês duas também são… — Renato olhou para o banco de trás, onde as duas meninas estavam. A mais velha tinha dezesseis anos, julgou ele, olhos castanhos claros e longos cabelos pretos que chegavam até os glúteos. A menor, talvez com quatorze, tinha cabelos ruivos, também longos, porém um pouco mais curtos do que os da outra, e carregava no rosto dois olhos verdes brilhantes.
Lindas! Porém estavam apavoradas. Dava pra ver o quanto elas estavam se esforçando para manter as lágrimas guardadas dentro dos olhos. Renato achou que se puxasse assunto, elas acabariam caindo no choro. Preferiu se dirigir à súcubo.
— Elas também são… você sabe… vampiras iguais a você? — cochichou ele, tentando não ser ouvido pelas duas.
— Se me chamar de vampira mais uma vez, eu faço seu pinto estourar como um balão cheio d’água.
Ele engoliu em seco e se calou. Clara caiu na risada.
— Calma! É brincadeira! Eu não vou fazer isso aí não… não se você não merecer.
Renato lançou um sorriso nervoso. Sentia suas partes em perigo.
— Ei, sua casa fica muito longe daqui?
— Na verdade não. Uns quatro quilômetros naquela direção, mais ou menos.
— Vai mostrando o caminho. Precisamos descansar e, pra falar a verdade, minha casa não tá muito segura ultimamente.
Renato assentiu. Ele pensou em protestar pelo fato de ninguém ter perguntado se sua casa estaria disponível, mas novamente sentiu que suas partes estariam em perigo, então preferiu ficar quieto.
— Nós não somos a mesma coisa que ela. — A voz de Jéssica cortou o silêncio.
Ao ver que o rapaz prestava atenção no que ela dizia, decidiu prosseguir:
— Ela é uma coisa estranha… uma coisa sombria. Nós podemos sentir. Somos duas garotas de Deus, eu e minha irmã.
Mical balançou a cabeça para cima e para baixo, afirmativamente.
Esses pensamentos passaram pela cabeça de Renato: “Uma súcubo, duas garotas de Deus e eu, dentro de um Camaro, indo pra minha casa. Isso parece sinopse de filme pornô!”
— Valeu pelo estranha e sombria. Me sinto lisonjeada.
— Desculpe — Jéssica abaixou os olhos —, eu não deveria falar assim de quem nos salvou. Mas… é que… é difícil de entender. Por quê? Por que nos ajudou?
— Eu não sei. Acho que eu estava entediada.
— Entendo. Entediada — Jéssica assentiu.
Mesmo contra sua vontade, um sorriso tímido surgiu no canto da boca de Mical.
— Naquela próxima esquina, você vira à esquerda — disse Renato, tentando participar da conversa.
O carro encostou na frente daquele portão branco, levemente enferrujado. Os muros não eram rebocados. A rua era iluminada, mas a lâmpada do poste bem em frente a casa de Renato havia queimado, então existia ali um ponto de escuridão.
Assim que desceram, o som de latidos, muito agudos e estridentes, tomou toda a noite.
— Desculpem. São os Pinschers da vizinha. Eles latem para tudo aquilo que se mexe, e ela tem onze deles! Às vezes eu acho que se esses bichinhos tivessem chance, me devorariam sem hesitar!
— E devorariam mesmo! — Clara sorriu. — Hades vacilou de ter escolhido o Cérbero para defender o lado dele do portão. Pinschers são bem mais sinistros!
— Peraí! — disse Renato, destrancando o portão. — Hades existe?
— Mas é claro! Os gregos mortos tinham que ir para algum lugar, não?
O cadeado estalou e o portão abriu. O rapaz se virou para a súcubo.
— Tá me dizendo que os deuses gregos existem?
— Tô dizendo que Hades existe. Quanto aos outros, eu não sei porque não os vi.
— Só existe um Deus — respondeu Jéssica. — O resto é tudo demônio disfarçado!
Clara suspirou.
— Acabei de lembrar porque eu odeio crente!
— Mas… e Deus? — Renato ergueu uma sobrancelha. — Deus existe?
— De qual deles você tá falando?
— Deus com letra maiúscula. Deus da bíblia, sabe? Jeová, Emanuel, aquele que abriu o mar vermelho.
— Sério? — Clara bufou. — Você acabou de descobrir que súcubos e Hades existem, e tá preocupado com o cara do “não matarás, nhenhenhém, não comerás carne de porco, blablablá, não darás o cu”? Quer saber? Não vou te dizer! Fica na dúvida aí!
Jéssica se aproximou de Renato, pôs a mão em seu ombro, e disse:
— Deus existe. Deus é amor. Não podemos nos confundir com as mentiras que nos contam.
Clara bufou mais uma vez.
— Parece que a convivência vai ser difícil!
Assim que entraram, Renato apertou o interruptor na parede e a luz iluminou todo o local. Era uma típica casa de bairro, com uma sala, separada da cozinha por uma bancada de mármore, dois quartos e um banheiro. O piso era de cimento queimado esverdeado. O forro de pvc, no teto, estava danificado em alguns pontos; e volta e meia se via um descascado na tinta branca das paredes. Não era uma casa grande e nem luxuosa, mesmo assim Jéssica e Mical não puderam esconder o quão impressionadas ficaram, como se estivessem dentro de um palácio.
Mical arregalou os olhos e apertou os lábios.
— Isso aqui… isso aqui é uma televisão?! — disse ela, correndo até o rack.
— É sim — disse Renato, coçando a bochecha com um dedo.
— Incrível! É parecido com aquelas que eu vi nas resvistas, Jéssica! E isso aqui embaixo? O que é?
— Ah, isso… isso é um vídeo game.
— Vídeo game? O que é um vídeo game?
— É um jogo. Ou melhor, um aparelho que roda jogos.
— Jogos do tipo damas ou xadrez?
— É possível, mas não só. — Renato se aproximou e ligou o aparelho, depois ligou a tv. — Quer ver?
Mical chacoalhou a cabeça para cima e para baixo, acenando que sim. Seus olhinhos verdes perderam o medo de antes. Agora brilhavam com curiosidade e até um pouco de alegria.
Renato escolheu um jogo que seria fácil de entender e de explicar. Depois entregou o controle para a garota.
— Aqui, se você apertar esse botão, aquele homenzinho pula. Tá vendo?
— Incrível!
— E esses botões aqui fazem ele andar.
A garota começou a mover o personagem pela tela, completamente maravilhada.
— Cuidado! Não deixa esses bichos te acertarem! Senão você morre! Isso! Pula!
O aviso veio tarde. A menina riu.
— Acho que perdi.
— Você tem mais duas vidas. Pode tentar de novo.
— Legal!
Ela mostrou seu sorriso mais sincero e voltou a atenção para o controle e a tela. Quando queria movimentar o personagem, ao invés de só apertar os botões, ela também mexia o controle, num movimento instintivo típico de iniciantes.
— Eu também quero tentar — disse Jéssica, tímida.
— Claro — respondeu Renato. — Assim que ela perder, é sua vez.
— Eu não vou perder! — retrucou Mical, desafiadora, sem tirar os olhos da tela.
— Vai sim — respondeu Jéssica. — Você sempre perde, minha pequena irmãzinha.
— Isso é incrível! Ate parece mágica! — disse Mical, ignorando completamente as palavras da irmã.
— Não é mágica — disse Renato. — É tecnologia. Tecnologia feita através da ciência.
Nessa hora, Mical arregalou os olhos e largou o controle, deixando-o cair no chão. Depois olhou para Renato. Parecia que ela tinha visto um fantasma.
— Ciência? — disse ela, quase chorando.
Jéssica franziu o cenho e abaixou o rosto.
— Sim — respondeu Renato. — Cientistas desenvolveram tecnologias e…
— Meu professor disse que a ciência é a arma que o mau usa para enganar as pessoas boas!
Renato franziu o cenho.
— Pequena — disse Clara —, o mau tem coisas mais importantes para fazer do que desenvolver vídeo games.
— Ele disse que o mau soprou a ciência no ouvido dos homens. Que Darwin, Einstein, Newton, eram todos satanistas!
— Seu professor precisa de um psiquiatra — retrucou a súcubo, depois caiu na gargalhada. — Por acaso seu professor também te disse que a terra é plana, e que ela tem só seis mil anos? Ou que vacinas fazem mal? Ou que existe um grande dragão invisível na garagem dele?
Mical enrubesceu e abaixou o rosto.
— A parte das vacinas ele falou.
— Ai, Grande Profano, dê-me paciência, porque se me der forças eu mato alguém! — Clara se exasperou.
Renato sentou no sofá e suspirou. Ficou abatido e com raiva ao mesmo tempo.
Jéssica foi até sua irmã, acariciou seu rosto, olhou em seus olhos, e disse:
— Minha irmã, por que nós fugimos?
— Porque queríamos conhecer o mundo! E… e porque sentimos que lá não mais prezam pelo amor de Deus.
— Sim. E se alguém diz que fala em nome de Deus, mas na verdade não segue aquilo que Deus disse, o que isso significa?
— H-Heresia.
— Não precisamos levar em consideração o que hereges nos disseram. Talvez, o que nos falaram seja mentira.
— Mas como eu vou saber o que é verdade e o que é mentira?! Como, Jéssica? Eu não sou tão inteligente quanto você! E nem tão corajosa! Como posso reconhecer a verdade se eu nem sei direito o que eu… o que eu penso.
Uma lágrima desceu pelos olhos de esmeralda de Mical. Jéssica segurou sua mão.
— Nós vamos descobrir. Juntas! Sem a tirania do Priorado. Tudo bem descobrir coisas novas. Tudo bem jogar vídeo game. Tudo bem entender de física e como as espécies evoluem. Lembre-se de quem somos. Se houvesse mau nessa máquina, nós saberíamos.
Mical levantou os olhos. Suas bochechas estavam coradas. Encarou sua irmã e acenou com a cabeça.
— Sim. Se houvesse mau, nós saberíamos. Então… tá tudo bem?
— Está. E se não estivesse, nós enfrentaríamos as dificuldades juntas! Como já fizemos antes.
Se abraçaram.
Naquela noite, enquanto as garotas tomavam banho, Renato preparou o jantar. Assou linguiças com batatas no forno e cozinhou arroz branco, fez uma salada de tomate e alface. Por fim, usou poupa de cajú para fazer um suco bem geladinho. Comeram alegremente.
Depois, todos os quatro jogaram vídeo game. Para a surpresa do rapaz, Clara não era muito boa também e, sempre que perdia, o que acontecia com alta frequência, ela ficava muito irritada. Em um momento, ela quase quebrou o controle, mas Renato conseguiu interferir a tempo e impedir tal tragédia.
— Brigadores das revistas — disse Jéssica, com olhar perdido, enquanto segurava o joystick.
— O quê? — Renato ergueu uma sobrancelha.
A garota, que já havia entendido mais ou menos o funcionamento do equipamento, pausou o jogo.
— Lá no Priorado, nós não tínhamos nenhum contato com o mundo externo. Não havia televisão, rádio, energia elétrica. Nada. Nós também não podíamos saír. A única exceção eram os Cruzados, os guerreiros que saíam em missões aqui fora. Conheceu alguns deles, súcubo. Kézar é o general dos cruzados. Meu pai foi um cruzado também. E ele levava para o Priorado algumas revistas escondidas. Revistas de culinária, de programas de tv, de vídeo games, de piadas, de tudo. Ele as guardava como seu tesouro. Depois que nosso pai morreu, nós as encontramos. Foi como um novo mundo se abrindo para gente. Havia mais do que conhecíamos! As de culinária eram minhas preferidas. Um dia eu li sobre os brigadores. Docinhos de chocolate em formato de bolinhas. Sonho com o sabor daquilo desde então.
— Brigadeiros! — disse Renato.
— Isso! Brigadeiros! Eu me confundi com o nome — ela sorriu, tímida.
O rapaz sorriu.
— Depois de amanhã vai ter a festa junina na minha escola. Todos os anos, minha professora do oitavo ano monta uma barraca para vender os doces dela. Os brigadeiros que ela faz são os mais gostosos que eu já comi em toda a minha vida. Vamos todos provar desses doces, o que acham?
— Tenho nada para fazer mesmo — disse Clara, dando de ombros. — Vamos. Uma festa junina pode ser legal. Faz tempo que eu não tomo um quentão.
— Não sei bem o que é uma festa junina — disse Mical —, mas eu gostaria de conhecer. Vamos.
— Que bom. Estou feliz. Não vejo a hora de amanhã chegar — disse Jéssica. Seus olhos castanhos brilhavam de alegria.
— Falando em Kézar — Clara Lilithu pigarreou —, quais, exatamente, são as habilidades dele? Quando eu entrei na Limusine, eu acho que o vi, mas depois ele desapareceu. O que pode ter acontecido.
— Kézar foi abençoado por um anjo — disse Jéssica. — Ele ganhou desse anjo a capacidade de abrir portais para um tipo de dimensão paralela. Eu nunca entendi direito como isso funciona, mas sei que é nessa dimensão que ele guarda a Jóia do Arcanjo. E às vezes ele consegue entrar nessa dimensão e desaparecer.
Clara ponderou por um instante.
— Pra variar, os anjos fazendo merda no mundo humano, hein? Isso pode ser problemático. Sabe o nome do anjo que o abençoou?
— Desculpe. Eu não sei.
Mais tarde, Renato mostrou o quarto que sua família usava em dias de visita, mas que no momento estava vazio. Havia uma cama de casal e uma de solteiro, usada por sua irmãzinha. Renato disse que suas hóspedes podiam dormir ali. Clara agradeceu, mas disse que não ia precisar. Ela sairia para fazer sabe-se lá o quê durante a noite. Jéssica e Mical aceitaram.
Já de banho tomado, as duas, sozinhas, decidiram conversar um pouco antes de deitar. Sentaram-se na cama.
— O que acha que pode acontecer daqui pra frente, Jés?
— Não sei. Mas não importa. Se estivermos juntas, podemos lidar com qualquer coisa.
— Eu sei, mas algo me preocupa. Esse demônio. Não sei se deveríamos ficar tão próximos dela!
— Os caminhos de Deus são misteriosos, Mical. Sabe disso. Vamos aproveitar a ajuda que estamos recebendo. Se começar a ficar esquisito, a gente vai embora.
— Sim. — Depois de um tempo, Mical retomou: — Outra coisa. O que sente sobre esse garoto? Consigo sentir claramente a aura sinistra da Clara, mas nada dele.
— Também não sinto nada. É como se ele fosse um buraco vazio. Não tem nada de mau e nada de bom. É como se ele não tivesse aura, quase como um cadáver.
— Tive a mesma impressão — respondeu Mical, com um arrepio percorrendo a pele. — Não… não acho que seja como um cadáver. É mais como se a presença dele fosse um buraco na existência.
— Vamos dormir, minha irmã. Acho que o mundo é muito maior do que pensávamos e existem muito mais coisas para serem descobertas. Precisamos estar descansadas para o que for vir.
— Sim.
Jéssica se despiu para dormir, deixando à mostra as cicatrizes do chicote em suas costas, trincando a pele. Uma lembrança dos cruéis castigos do Priorado.
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