Capítulo 03: O pesadelo mais bonito que eu já tive
— Renato!
Era uma voz estranha, como se estivesse sendo dita do fundo da garganta. Grave. Inumana. Bestial.
— Renato! Até que enfim você consegue ouvir minha voz! O que mudou?
A voz vinha das profundezas escuras e frias. Saía das chamas e do gelo. Enclausurada no buraco mais profundo de todos. Tinha o timbre de sepulturas. Ecoava no nada, no vazio, e fazia a cabeça doer e vibrar como um gongo.
— Veja que linda visão. As chamas ardentes derretendo carnes e ossos, o planeta sendo transformado em cinzas. A fumaça tóxica destruindo pulmões. Não é lindo?
— É lindo sim.
— Acorda! — Essa voz era diferente. Feminina. Vinha de fora. Era quase tão assustadora quanto a outra. Mas também tinha doçura. Como veneno de cascavel dissolvido em chocolate.
O rapaz abriu os olhos, assustado. O coração batendo forte. A primeira coisa que viu foi o par de olhos vermelhos, brilhando no escuro como pedras preciosas feitas de fogo. Gritou, no susto. Tentou se desvencilhar e fugir. O braço forte o agarrou, impedindo a fuga.
— Calma! — disse Clara Lilithu.
— É você?!
— Sim. Sou eu.
— Você é o pesadelo mais bonito que eu já tive
— Essas foram as palavras mais bonitas que alguem já me disse.
— Eu vi…
— O quê?
— Destruição.
— De que tipo? — ela franziu o cenho. Se aproximou mais, inclinando seu corpo macio sobre ele.
— Do tipo que consome tudo.
— Entendo.
— As chamas… elas brilhavam como seus olhos.
— Meus olhos brilham como as chamas do inferno… — Ela pensou por um momento. — Tem um lugar que precisamos visitar. — Se ergueu e saiu da cama.
— Agora? No meio da madrugada?
— É o melhor horário para sair.
Dessa vez, Clara conduziu o Camaro com tranquilidade. A brisa fria entrava pelos vidros abertos, bagunçando os cabelos. A luz dos prédios e postes dava à noite uma aparência bonita.
— Aonde estamos indo?
— Ver uma conhecida.
— Você não é muito fã de explicações detalhadas, né?
— Alana. Ela é uma vidente. Vou levar você para ela dar uma olhada.
— Por quê? — Renato ergueu uma sobrancelha.
— Porque você é estranho e eu quero saber o motivo. — Ela ajeitou a marcha e fez uma curva.
— Eu sou estranho?! — Renato gargalhou. — Sabia que você também não é muito normal? Na verdade, você é esquisita pra caralho, ouviu, mulher?!
— É porque você não viu as outras súcubos. Na verdade, eu sou a mais normalzinha da turma.
— Imagina essas minas de TPM, meu Deus! Não tem barra de chocolate que dê jeito!
Clara sorriu com o canto da boca.
— Uma vez, duas súcubos bem mau humoradas quase destruiram uma cidade enquanto trocavam socos.
— Sobre esse lance de súcubos… você é mesmo… hã… droga! Eu tô cheio de dúvidas, mas não sei qual pergunta eu quero fazer!
— Então, quando você pensar na pergunta, pode fazê-la, que eu respondo.
Clara dirigiu o carro por quase toda a cidade. Passaram por bairros que Renato nunca havia visitado, e ruas que ele sequer sabia da existência.
Depois de um tempo, ela, enfim, estacionou na frente de uma propriedade, e Renato não pôde acreditar nos seus olhos. Um salão enorme, bem iluminado, com grandes portas de madeira. Através das portas, que estavam abertas, ele podia ver algumas pessoas sentadas em longos bancos, outras ajoelhadas. Havia um púlpito.
O letreiro no alto indicava do que se tratava: “IGREJA DAS SANTAS E VIVAS ÁGUAS”.
— Tá me zuando — disse ele, incrédulo. — Você, um demônio pervertido, me levou para a igreja?
— Por que todo mundo adora pôr adjetivos pejorativos na frente da palavra “demônio”? — Clara fez beicinho, indignada. — Isso tá parecendo discriminação!
— Foi mal. Você, um demônio de gostos peculiares, me trouxe pra igreja? Eu jurava que a gente ia ir para algum antro de pecado e perdição, daqueles com dançarinas seminuas e drogas, sabe?
— Você nem tem idade para entrar num lugar desses — Clara gargalhou. —Relaxa. A igreja é só uma bateria para um feitiço que consome muita, mas muita energia mesmo!
— Uma bateria? Tá ficando cada vez mais confuso.
— É. A fé das pessoas emana energia, e o feitiço capta ela para continuar funcionando — disse ela, enquanto os dois caminhavam até a entrada.
— Então o feitiço é tipo um carro que precisa de gasolina? E a gasolina é tipo a fé dessas pessoas?
— Algo assim.
— E o que esse feitiço faz?
— É um feitiço que espanta a morte. Está ligado à Alana. Basicamente, não importa o que aconteça, Alana não pode morrer. A morte não tem como se aproximar para levá-la por causa do feitiço. Uma vez eu vi essa mulher levar uma facada no coração. E ela arrancou a faca do próprio peito como se não fosse nada!
— Parece um feitiço bastante útil.
— Não se engane. Viver assim é uma merda. Ela não pode sair nunca daqui ou a morte vai salivando atrás dela. É uma vida de eterna clausura. Não vale a pena.
Clara o guiou pela igreja. As pessoas rezando pareciam nem notar a presença dos dois. Entraram numa portinha atrás do púlpito, e acabaram num corredor tão longo que não parecia ter fim. O ar pareceu mais frio.
Caminhavam tranquilamente. Havia muitas porta nas paredes laterais do corredor. Clara as ignorava completamente.
— Corredorzinho longo, não?
— Tem mais no andar de baixo.
O corredor fazia uma curva. Assim que viraram, viram duas pessoas, um homem e uma mulher, vindo em sentido contrário. Renato ficou incomodado com a forma que aqueles dois olharam para ele, como um cão olhando um pedaço de bife suculento. Assim que eles sumiram de vista na curva do corredor, Renato se aproximou de Clara, suando frio.
— Esses dois pareciam bem estranhos. Achei que eles queriam pular na minha garganta.
— Provavelmente queriam mesmo. Eram vampiros. Pelo cheiro, a mulher é novata e não consegue se controlar direito ainda. Tenho certeza que ela teria atacado se não estivesse acompanhada do mestre que a transformou.
Renato olhou para trás, cauteloso, e pôs as mãos sobre as carótidas, instintivamente, tentando protegê-las.
— Fica tranquilo. Ataques aqui são proibidos e o mestre dela consegue controlá-la.
— E quando a gente sair?
— Melhor levar umas estacas por precaução — ela riu.
Desceram alguns degraus e chegaram em outro corredor. Esse dava para ver o fim.
— Puta merda! Puta merda! Caralho! Vampiros existem! Puta merda! Meu Deus! Vampiros existem!
— Surta não, cara.
Chegaram na frente de uma portinha metálica. Clara bateu.
— Quem seria? — disse a voz do outro lado.
— Clara Lilithu! E um convidado.
— Clara! Entre por favor!
A súcubo abriu a porta e os dois entraram. O lugar era um cubículo um tanto desorganizado, com livros caídos pelo chão, papéis espalhados sobre uma escrivaninha, algumas cadeiras metálicas de bar, uma cama de solteiro no canto com lençóis bagunçados. Um pequeno frigobar velho e com sinais de ferrugem ao lado da cama. No chão, havia um carpete com uma mancha enorme de vinho. A única coisa organizada era o nicho preso à parede, com muitos livros.
— Sentem-se — disse a vidente, apontando duas cadeiras de bar, enquanto ela estava sentada numa cadeira de escritório junto à escrivaninha.
— Obrigada por nos receber, Alana — disse Clara.
— Disponha – respondeu a vidente, se levantando e indo até o frigobar. De dentro ela tirou uma garrafa com um líquido dourado. Pegou dois copos e os encheu. Entregou um para Clara.
— Domaine Leflaive! — disse a Súcubo, sentindo o aroma do vinho branco. — Maravilhoso!
— Somente o melhor para os velhos amigos! Garoto, tem suco de uva também, se você quiser.
— Não, obrigado. Eu não tô com sede.
A vidente deu de ombros.
— Sabe, Clarinha, aquele demônio bizarro, o Satanakia, esteve aqui outro dia.
Renato notou Clara fechando o punho de nervosismo e seus músculos ficando tensos, embora o rosto dela ainda mostrasse um sorriso cordial. Ela sorveu um pouco do líquido no copo.
— E o que ele queria?
— Saber se eu sabia do seu paradeiro, é claro.
— É claro. — Clara mostrou um sorriso forçado. — E o que disse a ele?
— O que mais eu diria? Que até onde eu sei, você está morta. Ele não parece ter se convencido muito, mas foi embora.
— Homens, não é?! Sempre tão inquietos!
— Verdade! Mas enfim, chega de conversa fiada! Então esse é o garoto de quem falou? — disse ela, enquanto se sentava na cadeira atrás da escrivaninha. Ela olhou diretamente para Renato pela primeira vez, o que o fez sentir uma comichão atrás dos olhos.
— É ele sim.
— Interessante. — Alana se aproximou. Olhou para ele, depois em volta dele, como se procurasse algo, então franziu o cenho, parecendo confusa. — Vazio? Me dê seu pulso, por favor.
Renato obedeceu. Ela o segurou e fechou os olhos.
— Hum… ainda tem pulsação.
— Mas isso é normal, não?
— Shhhh… faça silêncio, por favor, garoto. Estou tentando ver uma coisa.
— Só tem… escuro — disse a vidente, depois de alguns minutos. — Espera… tem algo lá embaixo. É fundo, mas dá pra chegar! Eu só preciso dar uma olhada! Calma! Só uma olhada! Você não tá tão vazio assim, garoto. — Às vezes ela parecia falar com Renato, às vezes com alguma outra coisa.
— Vejo correntes de ouro e uma cela com grades de diamante! Tem algo… alí! Algo preso! Algo que não faz parte da criação! Suga a matéria em volta como um buraco negro! Esp… arrg! Grr! Não! Só… deix… uma olhad… Grrrr! — A vidente começou a engasgar e tossir. Sua voz tremia e as palavras eram cortadas ao meio. Ela puxava o ar com força, mas não conseguia respirar.
A vidente soltou o pulso de Renato e olhou para ele completamente assustada.
— Ari… Ari…
O ar não entrava e não saía. Estava sufocando. De repente, ela abriu uma das gavetas da escrivaninha e tirou um revólver de dentro, mirou a arma contra a cara de Renato e puxou o gatilho. O garoto teria sido atingido em cheio, se Clara não o puxasse para o lado na velocidade de um raio.
A vidente atirou mais vezes tentando acertá-lo. O rapaz pulou para o lado e se jogou no chão, tentando se proteger. Clara acertou um tapa na mão de Alana, fazendo a arma voar para longe.
— Você enlouqueceu?! — gritou a súcubo.
A vidente tentou falar mais uma vez, mas as palavras não saíam. Olhava para Renato. Estava desesperada. Queria matá-lo mais do que tudo! Ele precisava morrer!
Estava ficando roxa, sem conseguir respirar. Ela pulou por cima da escrivaninha e afundou os dentes no próprio pulso, até o sangue vermelho vivo fluir para fora no ritmo dos batimentos cardíacos. Usando o sangue que vertia, ela começou a escrever na parede. Só teve tempo de escrever as letras “ARIN” antes de cair morta sobre o carpete. Enquanto caía, sua mão desenhou um risco na letra que estava sendo finalizada: o N.
A mancha de vinho foi coberta pelo sangue.
Clara estava espantada como há muito não ficava. Ela olhou para o alto e viu, próximo ao teto, um tipo de sombra esbranquiçada. Clara saltou. Se transformou em névoa em pleno ar, e da névoa surgiu seu braço, que afundou dentro da sombra esbranquiçada, e puxou de lá de dentro um outro braço.
Quando caiu, estava segurando, pelo braço, um homem vestindo roupas escuras com ornamentos de metal.
— Ceifeiro — disse ela.
— Clara Lilithu. A súcubo cheia de problemas e que sempre arruma problemas para os outros. O que quer?
— Quero que responda uma pergunta.
— E por que eu responderia?
— Porque eu te peguei e tô te mantendo preso. Gostaria de visitar o inferno, ceifeiro?
— Contemplar o inferno faz parte da minha profissão, demônio aberrante.
— Mas já esteve lá? Já sentiu a brisa de enxofre nos olhos e o calor das chamas eternas na pele?
O ceifeiro sorriu.
— Qual sua pergunta, súcubo? Espera… já sei. Quer saber se seres da sua espécie podem morrer, não é? Não se preocupe. A morte vem para todos. Eu venho para todos.
— Eu já sei que súcubos podem morrer há muito tempo, emissário. Minha dúvida é outra.
— Então faça a pergunta e não tome mais do meu tempo, coisa não natural.
— Como você conseguiu levar Alana? Ela estava protegida de vocês.
— Era um feitiço poderoso, admito. Mas parece que perdeu força e nós conseguimos chegar.
— Nós?
— Eu não vim sozinho. Aparentemente havia muito trabalho por aqui.
— Então mais gente morreu… Só mais uma pergunta: Alana não conseguiu respirar e morreu por asfixia. Foram vocês que fizeram isso a ela?
— Não. Como sabe, o trabalho dos ceifeiros é de apenas mostrar o caminho àqueles que partiram. A causa da morte foi outra. Uma causa que eu desconheço, a propósito.
Clara soltou o braço do emissário da morte e ele desapareceu numa sombra branca.
Clara olhou para a escrita na parede.
— Arin? Que mensagem você tentou me passar, Alana?
— O que diabos aconteceu aqui? — Renato finalmente disse. — Essa sua amiga tentou me matar! Que merda! Tem sangue para todo lado! Que diabos aconteceu?
— Ela não era minha amiga. Era só uma conhecida. — Clara suspirou. —Também tô tentando entender o que rolou, Renato, mas parece que não há mais respostas aqui. Vamos embora.
— Sair assim? Não deveríamos chamar a polícia nem nada do tipo? Tem um cadáver bem ali, se você não notou!
— Deixe que os vampiros façam uso. Nosso tempo aqui já acabou.
Quando subiram e voltaram à igreja, viram que todos os fiéis estavam mortos; alguns com sangue coagulado na boca; outros, mutilados, sem pernas e braços; e havia os com olhos estourados. Era a cena de uma chacina.
— Como eu suspeitava. Parece que alguém desconectou a bateria — disse Clara Lilithu.
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