Capítulo 04: uma vadia do mal
— Então, basicamente, eu sou Satã? — disse Renato, com voz baixa e horror nos olhos.
Clara sorriu sem desviar os olhos da estrada tomada pela aurora.
— Você não é Satã.
— Você ouviu o que aquela vidente disse! Um monstro preso por correntes de ouro dentro de uma cela! Me parece Satã!
— Primeiro: Satã não está preso. Ele está bem de boa sentado num trono feito de Césio-137 e esmeralda; segundo: ele não é um monstro. É a coisa mais bonita de toda a criação. E terceiro: as visões dos videntes nem sempre são literais. Às vezes é preciso interpretar.
— Mas ela morreu! Alguma coisa a matou quando ela olhou para mim, não foi? E ainda matou todas aquelas pessoas da igreja!
— É.
— Então o que ela viu pode ter sido mesmo um tipo de monstro.
A súcubo suspirou.
— Especular não ajuda. Vamos descobrir tudo com o tempo. De um jeito ou de outro.
— Droga! Vampiros existem!
— Ainda não superou isso? Se ficou assim com os vampiros, espere para ver os capelobos!
— Diz pra mim que eles não brilham no sol.
— Não. Eles queimam até virar cinzas mesmo. Como deve ser.
— Para numa distribuidora, por favor. Eu preciso de uma bebida. Beber ajuda a processar um pouco as informações.
— Você não tem idade pra beber — disse ela, com um sorrisinho no canto da boca.
— Pra um demônio, você tá muito seguidora das leis.
— Tem uma distribuidora bem ali. O que vai comprar?
— Vinho, eu acho.
Clara encostou o carro e pegou a bolsa da Bvlgari. Tirou algumas notas de dentro e entregou para o rapaz.
— Compra uísque também. Pode ser um Old Parr mesmo.
— Certo.
Ele pegou o dinheiro e saiu do carro. Percebeu alguns homens o olhando de forma estranha. “Sim, seus merdas. Eu tô nesse Camaro! Agora eu tô doce igual…” pensou.
Chegou à grade por onde seria atendido.
— Pois não? — disse a simpática atendente.
— Eu gostaria de um Old Parr e um vinho… pode ser aquele ali mesmo.
Foi quando notou a mulher o encarando de forma estranha, franzindo o cenho. Ela parecia querer dizer alguma coisa.
— Ah, sim, claro. Já vou pegar.
Alguns dos outros clientes também olhavam para ele. “Acho que não é por causa do Camaro” pensou. “Será que tem alguma coisa no meu rosto?”
Um dos clientes olhou para ele e puxou o celular, e começou a filmá-lo. Renato ficou irritado. “Eu não sou sua mãe na cama pra você sair filmando assim!”
Pegou as bebidas e voltou para o carro.
— Tem alguma coisa no meu rosto? — perguntou ele, para Clara, logo após retomarem a estrada.
Ela o encarou séria.
— Tem sim.
— O quê? — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Feiura.
— Demônio do mal!
*
Assim que chegaram na casa dele, ele pôs as bebidas sobre a mesa e foi direto para o banheiro. Estava cansado, física e mentalmente. Um banho quente era a única coisa em que ele pensava.
Passou no quarto, pegou a toalha e a jogou sobre o ombro. Com os olhos distraídos, abriu o banheiro e entrou, e fechou a porta atrás de si. Foi em direção ao box. Foi quando viu, através do vidro translúcido e levemente opaco, as duas silhuetas femininas. Embora a textura do vidro impedia de ver detalhes, era evidente a forma dos corpos nus das garotas. A maior delas esfregava os longos cabelos pretos com xampu; a outra passava o sabonete pelo corpo.
Renato, no mais absoluto silêncio, girou nos calcanhares e, enquanto levava a mão de volta à maçaneta, ouviu a chave girando na fechadura. Girou a maçaneta e, como suspeitou, a porta não abriu.
Ouviu o sorrisinho malicioso de Clara do lado de fora.
— Hmmm? Acho que tem alguém batendo na porta — disse Jéssica. — Tem gente! Agorinha a gente sai!
— É! Não vamos demorar! — complementou Mical.
Renato, que havia se escondido atrás do armarinho onde guardava alguns produtos de banho, pegou o celular do bolso e mandou uma mensagem para Clara via TalksApp:
“O que pensa que está fazendo? Destranca a porta!”
“É um experimento social, então não vou abrir.”
“Como assim não vai abrir? Se elas me verem aqui, vão pensar que eu estava espiando. Capaz até delas chamarem a polícia! Vão achar que eu sou um tarado”
“Não seja ridículo! 🙂 Essas meninas cresceram no Priorado da Cruz do Atalaia. Elas nunca chamariam a polícia. Se elas ficassem muito irritadas, mas muito irritadas mesmo, iam preferir te queimar vivo numa fogueira.”
“Ah, tá! Então se for assim tá de boa! Abre a porta logo por favor! :(“
“Nop.”
“Vc é uma vadia do mal, sabia?”
“Sabia.”
— Ei, Jés, esse chuveiro elétrico é mesmo útil, não é? — disse Mical, sob a ducha, esfregando a pele para remover o sabonete. — A gente não precisa ficar esquentando água no fogo!
— E-eu também acho! Até que o mundo exterior tem coisas legais!
— Por que você ficou vermelha, minha irmã? No que estava pensando quando falou em “coisas legais”?
— Não é da sua conta, sua pirralha!
— Hmm… o que você acha do Renato, Jés?
— Do Renato? Como assim? Acho ele um pouquinho estranho, mas…
— Mas…?
— Mas nada. Só isso mesmo. Estranho!
“Estão falando mal de mim na cara dura!” pensou Renato, indignado.
— Ah, eu acho ele bonitinho…
Foi quando Renato aguçou os ouvidos e começou a prestar mais atenção na conversa.
— Você é nova demais para pensar nessas coisas, Mica.
— M-mas eu tenho a mesma idade que você tinha quando começou a namorar aquele menino escondido! E-então, acho que você não deveria me tratar assim!
Jéssica suspirou.
— Onde quer o cascudo, minha irmã?
— N-não é justo!
Renato se manteve em silêncio esse tempo todo, mas, às vezes, as pessoas são traídas pela própria natureza.
O banho não havia sido o único motivo dele para ir ao banheiro e, como certas necessidades humanas estavam demorando para serem atendidas, a barriga dele começou a reclamar. E dessa reclamação, surgiu um novo perigo. Ele segurou o quando pôde, mas como alguém tentando bloquear um vazamento de água com o dedo, algo sempre escapa. Com flatulências não seria diferente.
— Acho que ouvi alguma coisa — disse Jéssica, alerta.
— Credo, minha irmã! Seus puns estão cada vez mais fedidos!
— Ei, não fui eu!
Ao ver que elas ficaram alertas, Renato tentou se espremer ainda mais em seu esconderijo atrás do armarinho, porém, como estava nervoso e com medo de ser descoberto, seu movimento foi um pouco brusco. Bateu o dedinho na quina do armarinho. A dor subiu pelo dedinho e percorreu o corpo todo como choque elétrico. Renato xingou, mentalmente, todos os palavrões que conhecia.
— Tem mesmo alguém aqui dentro! — berrou Jéssica. — S-sai daí! Seu fantasma espiador! — disse ela, tentando parecer corajosa.
— Fantasma? — Mical começou a tremer.
— Sim — Jéssica tinha um olhar sombrio —, eu ouvi que aqui no mundo externo, longe das proteções do Priorado, existe todo tipo de coisa esquisita e demoníaca! Fantasmas!
— S-se for mesmo algo assim, precisamos da nossa mochila! Lá tem as nossas coisas…
— Sim! Vou pegar! Vamos exorcizar um fantasma!
Jéssica abriu o box. Olhou para o chão e viu a sombra de um pé atrás do armarinho. Suspirou, aliviada por não ser um fantasma, mas ainda assim muito, mas muito irritada!
— Eu tô te vendo!
— N-não é o que parece — disse ele, com voz tremendo, e saindo de seu esconderijo com as mãos ao alto.
A mão de Jéssica veio em câmera lenta. E enquanto o vento passava pelos dedos, era como se a palma da mão emitisse um brilho fraco, porém caloroso.
Era um tapa tão vigoroso que parecia paralisar o tempo de medo. Renato sentiu a ardência no rosto, antes de tudo se apagar.
*
— Eu tentei impedi-lo! Mas ele… ele estava determinado! Disse que se eu ficasse em seu caminho, eu seria a primeira vítima e ia me apalpar inteira! Ele entrou no banheiro para espiar vocês! — Era a voz de Clara.
— Não pode ser! — Mical estava aterrorizada.
Tudo estava escuro. A voz delas parecia distante e abafada, como a voz de alguém falando embaixo d’água.
— Ele é um pervertido — continuou Clara —, e como tal, merece uma punição. Eu sugiro que queimemos ele na fogueira. O que acham?
— Fogueira?! — Mical parecia ainda mais aterrorizada.
— Isso parece um pouco drástico… — Era a voz de Jéssica.
Aos poucos , as vozes foram ficando mais próximas, e um pontinho de luz surgiu, e o pontinho foi ficando maior até engolir todo o escuro.
— Veja! Ele está acordando! — disse Mical.
— O que estão falando? — disse Renato. — Quem querem queimar?
— Você! — berrou Jéssica. — Seria um castigo aceitável para alguém que entra em banheiros furtivamente para espiar garotas inocentes tomando banho!
— Vamos mesmo fazer isso?! — Mical olhava para Jéssica e para Clara, com olhos assustados. — Ele ajudou a gente, não ajudou? Deveríamos ser gratas!
— Mas eu nem sabia que vocês estavam no banheiro! Foi a Clara quem…
— V-vejam isso! — A súcubo o interrompeu. — Aqui em cima do vídeo game! Vejam as atrocidades que ele deixa à vista de todos!
— O que tem aí? — Jéssica ergueu uma sobrancelha, curiosa. Logo em seguida, após olhar do que se tratava, ela ficou vermelha igual um pimentão. — P-por que as garotas das imagens não estão vestindo nada?! — disse, com voz trêmula e tapando os próprios olhos. — E que posições pervertidas são essas?!
— Brasileirinhas? — Mical franziu o cenho. — O que é Brasileirinhas? E o que é “Operação Leva Jato”? — Ela pegou o DVD e começou ler a descrição — Propina, dinheiro na cueca e jato de p… — Então a garota deu um pulo de susto e jogou o objeto para longe, e se encolheu no canto, tremendo e com a pele se tornando da mesma cor de seus cabelos ruivos.
— São DVD’s pornôs! — disse Clara Lilithu. — O tipo de coisa que homens tarados consomem! E deixar isso aqui para todo mundo ver?! Francamente, eu me pergunto se estamos seguras aqui com ele! Esse espiador! O inimigo de todas as mulheres!
Nessa hora, Clara olhou para Renato, com um sorriso malicioso, e lançou uma piscadela. “Essa vadia dos infernos!” ele pensou, e depois sorriu, lembrando do quão literal era.
— Isso não é meu — disse Renato. — E, francamente, cansei disso. Vou beber um vinho enquanto vocês decidem se vão ou não me queimar na fogueira.
Renato se levantou do sofá e foi para a cozinha.
— Estraga prazeres — bufou Clara.
— Eu quero vinho! — disse Mical.
Renato serviu um copo para ela e depois um para si mesmo. Foi para os fundos da casa, sob uma área, e sentou-se numa cadeira de fio. Ao lado de uma das vigas que dava sustentação à área, havia um vaso de plantas com uma verdejante e frondosa pimenteira, cheia de pimentas vermelhinhas, tomando um pouco do sol que brilhava como uma bola de ouro no céu. O canto dos pássaros fazia a sinfonia.
Jéssica se aproximou.
— Ei, não precisa ficar bravo. Nós não vamos te queimar.
— Fico agradecido por isso. Eu daria um péssimo churrasquinho. E eu não estou bravo.
— Que bom. — Ela sentou-se numa cadeira do lado.
— Quer um gole? — Renato ofereceu o próprio copo para ela. A garota hesitou um pouco, mas aceitou.
— As únicas vezes que eu bebi vinho foram nos dias de Eucaristia. Ele assim, geladinho, é bem gostoso.
— Você tem que provar caipirinha. Qualquer dia eu faço pra gente.
— Certo. Ei, desculpa pelo tapa. Na hora eu fiquei assustada.
— É compreensível. Mas, sabe, eu não queria mesmo espiar. A Clara me trancou lá dentro. E os DVD’s também não são meus.
— Acho que se fossem seus, eu não teria direito nenhum de criticar, não é? Afinal, é a sua casa.
— Acredita em mim?
— É claro. A Clara é o demônio aqui; não você — disse Jéssica, devolvendo o copo.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Pode sim.
— Como era lá? No priorado.
Jéssica pensou por um instante, com uma cara tão séria que Renato quase se arrependeu de ter feito a pergunta. Então, ela se levantou e começou a erguer a blusa, e se virou, ficando de costas para ele.
Renato viu as cicatrizes.
— Isso aqui foi porque descobriram que eu tinha um namoradinho. Sabe, a gente nunca fez nada. Nem sequer nos beijamos, mas às vezes a gente ficava de mãos dadas, quando ninguém estava olhando. Me amarraram a um poste, completamente nua, e me bateram com o azorrague, que é um tipo de chicote, só que muito pior, e proferindo palavras sobre o amor de Deus. Falaram que eu tinha sido seduzida pelo espirito da fornicação. Me chamaram de prostituta. Depois vasculharam meu corpo inteiro em busca de marcas, porque diziam que o diabo deixa marcas. Que se encontrassem as marcas do diabo, seria a prova de que eu havia me entregado ao mal e que deveria ser queimada como uma bruxa.
Um silêncio sepulcral tomou o lugar. Clara ouvia, calada, do outro lado da parede, sem ser vista. Mical estava ao seu lado, com os olhos rasos d’água.
— Minha irmã tem uma marca de nascença, sabe? Eu fiquei apavorada com a ideia de o mesmo acontecer com ela. Foi quando decidi fugir. Viver lá era desse jeito. Não podíamos fazer nada. Os meninos eram treinados para a guerra; as meninas, para serem donas de casa obedientes. Eu nunca comi um brigadeiro, Renato! Eu não quero voltar para lá. Foi por isso que, para viver o sonho da liberdade, eu aceitei até a ajuda de um demônio.
Renato sorveu o último gole de vinho. Olhou para a garota. Era difícil explicar o que sentia.
— Eu não vou deixar que voltem. Vou protegê-las, custe o que custar! Podem ficar aqui na minha casa o quanto quiserem! Comeremos o brigadeiro mais gostoso que existe!
Jéssica sorriu com genuína felicidade.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.