Capítulo 06: Matemática, geografia e homicídio.
Renato abriu os olhos com o sol batendo em sua cara. A visão escureceu por um momento e a cabeça latejou. Ele sentou-se na cama e sentiu o estômago fervendo e a ânsia de vômito vindo perigosamente. Ele conseguiu conter-se. Respirou fundo. O mundo parecia se mover de uma forma esquisita.
— Tá de ressaca, né? — Clara estava sentada numa cadeira, no canto do quarto.— É por isso que eu sempre digo: adolescentes não deviam beber — continuou ela. — Agora vai ter que se casar com essa garotinha cristã. Se não se casar, receio que ela o mate durante o sono, ou talvez a irmã o mate, sei lá.
— Do que está faland… — Renato ergueu uma sobrancelha.
Nessa hora, os cobertores começaram a se mover e um braço delicado apareceu, saindo de baixo.
— Deus, que não seja a de quatorze! — Renato fechou os olhos e tentou evocar toda a fé remanescente.
Clara gargalhou.
Cabelos vermelhos e ondulados surgiram. As pernas de Renato tremeram. Mical jogou o cobertor de lado e sentou-se na cama, espreguiçando-se e bocejando, tranquilamente.
— Bom di… — Foi quando ela paralisou. Olhou para baixo. Viu seus seios pequenos, ainda em formação, expostos; viu que não usava nada na parte de baixo. Suas pálpebras tremeram e Renato pôde jurar que ouviu o som de curto circuito elétrico em algum lugar na cabeça dela.
— É isso. Eu vou pra cadeia!
— Você também é menor de idade, Renato. Não vai pra cadeia — disse Clara —, mas provavelmente vai ter que se casar, o que é muito pior. Em resumo, meu amigo Renato, você tá é muito ferrado. Ah, e a irmã dela tá vindo, ouviu? Eu emprestei minha doze para ela praticar tiro. Ela deve estar chegando em 3, 2, 1…
A porta se abriu. Jéssica apareceu, sorridente e saltitante.
— Bom dia! Clara, eu consegui acertar nas latinhas como você me fal… — ela franziu o cenho — O que está havendo aqui?
— Imagina, Jéssica, que eu vim avisar o Renato que você estava praticando tiro e ia chamá-lo para ver, e me deparei com essa cena? — Clara pareceu chocada.
Uma veia gigantesca começou a pulsar na testa de Jéssica. Ela se virou para a porta e, quando virou novamente para o quarto, estava apontando a espingarda calibre doze para Renato.
— Você abusou da minha irmãzinha, seu canalha?! Se prepara para morrer!
— Ei, ei! Eu não fiz nada! Peraí, onde você estava guardando essa arma?!
— Mical, sai de perto dele! Eu vou explodir esse pecador! — disse ela, engatilhando a doze.
Mical rolou para fora da cama e saiu correndo do quarto.
O primeiro tiro veio. Uma explosão vindo da ponta da arma. Renato rolou e se jogou no chão.
— Espera aí! Eu nã…
O segundo tiro veio.
Ele rolou para debaixo da cama.
— Espera! — gritou.
— Você maculou minha pura e linda irmãzinha! Nós devíamos mesmo ter te queimado na fogueira ontem!
Clara gargalhou alto.
— Ainda dá tempo! Tem fósforos na cozinha e gasolina tá barata ultimamente!
Jéssica pôs mais cartuchos na espingarda rapidamente e a engatilhou.
— Demônio maldito! Aposto que isso é culpa sua de alguma forma! — berrou Renato.
— Meus caminhos são misteriosos também — respondeu ela.
Foi quando Mical voltou para o quarto, devidamente vestida, e saltitando de euforia.
— Eu ainda sou virgem! Eu ainda sou virgem, minha irmã! Não aconteceu nada!
Jéssica olhou para ela de soslaio.
— Tem certeza?
— Tenho sim. Acabei de conferir!
Clara franziu o cenho.
— Peraí, conferiu como? Tecnicamente não tem como ter certeza de… a deixa pra lá! Dane-se. Não vou explicar biologia pra essas duas!
Jéssica suspirou de alívio.
— Então é assim. Minha irmãzinha continua pura, graças a Deus!
— Cabeças ocas! — murmurou Clara.
— Parece que não vamos precisar queimar o Renato, então, né? — disse Mical, com um sorriso meigo.
— Ainda não me decidi sobre isso — retrucou a mais velha, com olhar sombrio.
— Qual é? Já decidimos que eu não fiz nada — respondeu Renato, ainda embaixo da cama — e que sou inocente de qualquer culpa.
— Não. Até onde eu sei, minha inocente e esperta irmãzinha conseguiu se livrar de suas garras demoníacas e pervertidas! Sua inocência ainda não foi comprovada.
— Espera! Garras demoníacas e pervertidas? Certeza que essa descrição não bate melhor com outra pessoa aqui nesse quarto?! — Ele saiu de debaixo da cama e lançou um olhar afiado para Clara Lilithu.
— Que foi? Eu? — Ela protestou — Só por que eu sou uma súcubo? Nem tenho palavras para expressar o tamanho da minha indignação quanto a essa acusação preconceituosa! — disse, claramente parecendo culpada.
— Hum, pensando bem… — disse Jéssica — foi ela quem me entregou essa arma e disse que eu podia ficar praticando tiro, e depois falou que viria até aqui te chamar e que se demorasse, era pra eu vir. Por que será?
— Hum… — disse Mical — acho que tive um sonho estranho. No sonho, eu era atacada por mãos demoníacas e femininas apalpadoras que tiravam a minha roupa.
— Acho que manipular sonhos é uma das habilidades das súcubos, não? — disse Renato.
— Tá perguntando isso por que, Renato? Andou tendo algum sonho erótico ultimamente? — Clara lançou um sorriso malicioso.
— Ahém! — Renato pigarreou — Você armou isso, não foi? Se aproveitou que eu estava dormindo e pôs a Mical na minha cama e ainda tirou a roupa dela, e garantiu que Jéssica viesse ver. Confesse antes que eu comece a fazer o ritual de exorcismo!
— Bom… — Clara deu de ombros — eu não coloquei a Mical na sua cama. Ela já estava dormindo aí junto de você. Eu só fiz uma gostosa limonada com os limões que a vida deu.
Jéssica enrugou a testa.
— Por que você estava na cama dele, minha irmã?
— B-bom… essa súcubo claramente está mentindo! Eu com certeza fui levada enquanto ela me dopava com sonhos estranhos!
— Hum… — Clara coçou o queixo — Na verdade, quem levou Mical para a cama do Renato foi o próprio Renato.
Jéssica engatilhou a doze.
— Eu sabia!
— E-espera! Com certeza eu tinha boas intenções!
— Eu vim do inferno e garanto que de boas intenções ele tá bem cheio.
— E vai ficar mais cheio agora! — retrucou Jéssica.
— Certo, certo, eu já me diverti o suficiente. Perdoem a brincadeira, mas essa súcubo estava entediada. Na verdade, o Renato não fez mesmo nada. Um tédio! É por isso que adolescentes não deveriam beber!
Todos olharam confusos para ela. Clara deu de ombros e continuou:
— Ontem, vocês encheram a cara, sabiam? Eu falei que não era uma boa ideia misturar o vinho com o uísque, mas vocês me escutaram? Não. Esses jovenzinhos de hoje em dia acham que sabem de tudo!
— A senhora demônio tá se sentindo responsável! — disse Renato.
— Ficaram tão bêbados! Teve uma hora que a Mical se levantou e disse que ia voltar até o Priorado só pra botar fogo em todo mundo. Aí ela caiu no chão e vomitou naquele pézinho de pimenta.
— Meu pézinho de pimenta?
— Sim, Renato. Acho que ele morreu, aliás. Foi bem na hora que a Jéssica começou a desabafar para mim dizendo que tem medo de que sua irmãzinha perca a virgindade antes dela. Depois ela começou a balbuciar alguma coisa sobre te achar bonitinho e tal.
— Mentiras do demônio! — protestou Jéssica.
— E foi quando Renato se ofereceu para levar Mical para descansar. Ele estava tão bêbado que acabou caindo do lado. Depois disso a outra aqui capotou o corça também e dormiu com a cabeça no meu ombro. Vou te falar! Essa menininha aqui ronca igual caminhoneiro!
— Mais mentiras!
—A gente passou quase o dia todo bebendo ontem! Eu nem te conto da briga de sutiãs ou sobre o que fizemos com os reservatórios de água do bairro!
— Espera! O quê?! Os reservatórios ficam a várias quadras daqui!
— Sim, eu vi. É que antes do trio “de menor” apagar, a gente resolveu dar uma volta de Camaro. Sabem como é, né? Uma coisa leva a outra. A gente roubou alguns cones de trânsito no percurso. Mas, gente, vocês são ruins de memória mesmo, né? Será que é por causa das drogas que eu trouxe do inferno? Sabem o quão potente uma droga tem que ser pra fazer efeito num demônio? Nem imagino o que faz com humanos! Hoje de manhã eu vi como vocês dois estavam tão juntinhos e resolvi fazer uma brincadeira. Me julguem!
— M-mas quem tirou minhas roupas?
— Eu, ué. Enquanto eu te dava aquele sonho. De nada! — Clara lançou uma piscadela para Mical.
A garotinha abaixou o rosto, com a bochecha ficando bem quente e vermelha.
— Mas a pergunta que resta é: “e agora?” — disse Clara, empolgada.
— E agora o quê? — Jéssica ergueu uma sobrancelha.
— O que a gente faz agora? Qual o rolê? Eu fico entediada muito fácil.
— Pela hora — disse Renato, olhando no celular — o rolê é ir para a aula. Eu tô atrasado! Hora dessa eu já deveria estar no ônibus!
— Certo, então!
— Certo o quê?
— Eu vou para a aula com você. O que vocês aprendem nessa escola? Eu sempre tirei boas notas na escola do inferno, principalmente nas matérias de Kama Sutra e explosão peniana.
— Você tá inventando isso, não tá?
— Talvez. Nunca saberemos.
— De qualquer forma, você não pode só ir para a escola assim!
— E por que não?
— Porque os alunos lá tem entre quatorze e dezesseis anos! Você deve ter o quê? Uns vinte?
— Seis mil quatrocentos e noventa e um na contagem da terra.
—Tá vendo! Isso é um pouquinho a mais do que dezesseis!
— Mas não será problema. Idade é só um número, não é, Mical?
— Hum, eu não sei. Deve ser.
— Além do mais — retomou a Súcubo —, eu posso mudar minha forma para parecer mais jovem.
— Quer saber? — disse Renato. — Por que não faz logo a matrícula? Eu não vejo porque não. Nada como bons momentos na escola para acabar com o tédio, com muito bulling, patricinhas metidas que pensam ser o centro do universo, caras que se acham bandidões porque fumam cigarro do Paraguai e professores desiludidos e putos com o salário! Vai ser ótimo. Ter um demônio por lá pode ser um experimento social interessante.
— Eu não sei se você tá sendo irônico, mas agora eu fiquei ainda mais interessada — respondeu a súcubo.
— Eu também quero ir para a escola — disse Mical.
— Hum, pensando bem — disse Jéssica —, acho que eu também quero.
— Enquanto vocês conversam sobre isso, eu preciso ir tomar banho. Estou realmente atrasado. Os ônibus sempre demoram!
— Não se preocupe — disse Clara —, eu te levo. Vamos todos de carro conhecer a escola.
— Tem uma igreja ao lado da sua escola? Que conveniente! — disse Clara Lilithu, enrugando a testa. Suas mãos ainda seguravam o volante.
O carro estava parado em frente à entrada. Os vários alunos se moviam, alguns uniformizados, desanimados, num tipo de marcha robótica, pelo portão para mais um dia de aula.
— Aqui é Brasil, oras. Tem uma igreja e um boteco por esquina. E aposto que metade dessas casas aqui do bairro são bocas de fumo!
— Mas, gente?!
Mical e Jéssica, no banco de trás, olhavam em silêncio pelas janelas do carro.
— Bom, obrigado pela carona! Agora eu preciso ir.
Renato pegou o caderno e a caneta nova que comprou há pouco. Ele havia perdido a mochila com seus antigos materiais no dia do beco.
Meteu a mão na maçaneta e abriu a porta. Pisou no chão. Respirou fundo. Esfregou os olhos, tentando disfarçar as olheiras, e começou andar. O carro, às suas costas, permaneceu parado, e ele pôde sentir os olhares curiosos das três sobre ele.
Uma coisa o intrigou. Os outros alunos olhavam para ele de uma forma estranha. Alguns curiosos, outros com medo. A maioria desviava o olhar assim que ele olhava de volta.
O garoto chegou ao pátio e fez a curva para ir em direção à sala. Decidiu parar no bebedor para tomar um pouco de água. Ele se assustou com o tamanho da sede. A água, geladinha, descendo pela garganta, era a sensação mais gostosa que ele já havia sentido!
— Renato! — Era a voz de Hiro. — Você veio?!
— Sim, eu vim — disse Renato, limpando a água que escorreu pelo queixo.
— Uau! Seus olhos estão tão vermelhos! O que houve?
—Ah, isso? Eu só dormi mal essa noite.
— Sei…
Hiro pareceu suspeito, como se escondesse alguma coisa.
— Hoje é aula de que mesmo? Eu ainda não decorei o horário e perdi meu caderno onde estava anotado e tal.
— Matemática e geografia. — Hiro suspirou. — A professora Geovana é tão gata!
Começaram a andar em direção à sala. Os olhares de todos os outros alunos, seguindo-o, incomodavam Renato.
— Eles estão me olhando de um jeito estranho…
— Não tem ideia do motivo?
— Não — respondeu, franzindo o cenho.
— Renato, vem comigo!
Hiro puxou o amigo para um canto com pouca gente e pressionou-o contra a parede. Renato começou a ficar preocupado se perguntando o que Hiro planejava.
— Sou seu amigo, não é? — disse Hiro, com olhar sério. — Então, eu preciso que você me responda com sinceridade.
— Do que você tá falando, cara?
— Renato, você está numa gangue?
— O quê? Como assim?
— E eu não tô falando desse grupinho de idiotas que o Roger fazia parte. Tô falando de coisa grande. Assalto a banco, novo cangaço, coisas desse tipo.
— Hiro, meu amigo, você começou a usar drogas? Tá chapado?
— É que… como eu posso dizer? Tá rolando um vídeo por aí. Eu não tô julgando, sabe? É só que… se você tá numa gangue, me coloca no esquema.
— Que tipo de vídeo? — Renato ergueu uma sobrancelha.
— SE BEIJEM LOGO!!! — gritou um dos estudantes que passava pelo local e viu os dois.
— Aqui. — Hiro tirou o celular do bolso e, depois de mexer na tela um pouco, entregou-o para Renato.
Renato reconheceu as filmagens. O carro da polícia pegando fogo, o Camaro parado ao lado da Limusine, Clara ensanguentada da cabeça aos pés, cadáveres espalhados pela rua, Jéssica e Mical, e ele próprio aparecendo, sendo interrogado por uma aspirante a repórter.
— Filha da puta!
— E aí? É você aí, não é? É você no vídeo, não é?
— O quê?! Mas é claro que não… — Renato desviou o olhar.
— Você sempre foi um péssimo mentiroso.
— Não… é que… você não vai acreditar… — riu nervosamente.
— Renato! — Era a voz de Clara, vindo de trás de seu ombro. — Até que enfim te achei! Eu tô procurando o Laboratório de Tortura. Pode me dizer onde fica?
Após se recuperar do susto, o garoto pôs o celular no bolso rapidamente.
— Laboratório de quê?! A gente não tem esse tipo de coisa aqui!
— Não tem?! Mas que escolinha mixuruca! De onde eu venho, até as escolhinhas infantis têm Laboratórios de Tortura. São essenciais para o aprendizado, sabia? Estimulam a coordenação motora, criatividade…
— Vocês não conhecem o LEGO? Cuiabá é quente, mas nem tanto! As coisas por aqui são meio diferentes!
— É… é você! — disse Hiro, apontando para a súcubo. — A mulher do v…
Renato tapou a boca dele.
— Então você decidiu conhecer a escola? — disse, ainda nervoso. Tirou a mão da boca de Hiro e fez uma careta que queria dizer algo como “cala a boca ou ela pode explodir seus genitais”.
Clara achou suspeito.
— Mas é claro! Antes de decidir se me matriculo aqui, eu preciso avaliar a qualidade do ensino. Pelo visto, a estrutura não é das melhores.
— Afinal, quer mesmo estudar numa escola… sabe… humana? — Ele sussurrou a última palavra.
— Ah, por que não? Eu preciso conhecer novas culturas.
— Então a senhorita é de fora? — disse Hiro, tentando entrar na conversa.
— Sou — respondeu Clara, com um olhar soberbo e temperado com algum desprezo.
— Seja bem vinda ao Brasil.
— Renato — disse Clara —, pode pedir para seu amigo não ficar sorrindo para mim desse jeito? Tem um alface no dente dele e isso tá me dando vontade de vomitar.
Hiroshi ficou em silêncio e abaixou o rosto, com o cenho enrugado. Passou a língua sobre os dentes. Sentiu vontade de chorar, mas aguentou orgulhosamente.
— Eu vou para a aula agora.
Virou as costas e saiu.
— Não precisava ser tão malvada. Ele é meu amigo, sabia?
— Seu amigo devia ser apresentado à escova de dente.
— Ele só estava tentando ser legal.
— Eu sei, seu sei. Eu sou uma vadia do mal, como você costuma dizer. Bom, eu preciso ir. Sabe-se lá que tipo de coisa horrenda e angelical aquelas duas podem aprontar se ficarem sozinhas por muito tempo. — Clara desapareceu numa névoa preta e vermelha.
Renato chacoalhou a cabeça. Era difícil se acostumar com essas coisas. Assim que se virou para ir para a sala, deu de cara com Tâmara. Se perguntou há quanto tempo ela estava ali.
— Oi — ela disse timidamente. Seus belos olhos cor de âmbar ainda estavam machucados devido aos tapas e socos de Roger. — O Hiro disse que você estaria aqui.
Eu ainda não tive a oportunidade de te agradecer.
“Tranquila demais. Não parece que ela viu a Clara virar névoa” pensou Renato.
— Ah, sim. Tudo bem. Hã, você está bem?
— Minhas amigas diziam para eu terminar com ele, sabe. Mas eu não conseguia. Ele foi meu primeiro namorado. Eu não sabia me imaginar sem ele, mesmo com as agressões constantes. Eu li na internet que chamam isso de dependência emocional. — Ela sorriu de modo forçado. — E agora aconteceu isso. Me sinto livre, de certa forma, mas também me sinto culpada.
— Você terminou com ele?
— Não soube? Não assistiu o Notícias de Crimes de hoje?
— Não. Eu estava meio ocupado. — Renato franziu o cenho.
— O Roger foi encontrado morto. O corpo dele estava flutuando no rio Cuiabá, dentro de uma mala.
O rapaz não pôde esconder o choque e a surpresa. E um pouco de náusea.
— Ele levou um monte de facadas — continuou a garota. — Você é um cara gentil, eu vejo bondade em você, por isso não acredito nos boatos de que você mandou sua gangue matar ele.
Renato levou as mãos à nuca, em choque. Sentiu uma fraqueza percorrer seu corpo.
— Estão dizendo que…?
— Depois que seu vídeo viralizou, todo mundo começou a pensar que você é tipo um aprendiz juvenil de Don Corleone, ou que entrou pra uma facção criminosa, algo assim. E que, por causa da briga, você mandou seus subordinados matarem ele.
— Meus subordinados?!
Ficava cada vez pior. Como seria o resto do ano escolar? Mas, a pergunta que fervilhava na sua cabeça era quem teria matado Roger. O primeiro nome que pensou foi Clara Lilithu, mas não fazia sentido. Ela nem o conhecia.
Se sentiu afundando em merda. A respiração ficou irregular. A tontura fez o mundo oscilar. Lembrou-se da vidente e da chacina na igreja, lembrou-se dos vampiros, de todo o sangue no dia da perseguição à Limusine. Uma dor forte atingiu seu peito, como se o coração fosse parar de bater. Pensou em Jéssica sendo chicoteada cruelmente com um azorrague. E agora esse assassinato. O caos parecia se espalhar ao redor como peste. Viu os lampejos do dia em que aquela tragédia terrível levou seus pais biológicos diante de seus olhos infantis. Ele sentou no chão, tentando respirar. As mãos, tremendo.
— Calma, calma. Eu tô aqui — disse Tâmara, acariciando seu rosto. — É só uma crise de pânico. Vai passar. Respira. Vai acabar tudo bem.
Enquanto isso, Jéssica e Mical haviam entrado na igreja e, ignorando os olhares de estranhamento dos poucos fiéis nos bancos, elas sentaram-se no chão, num cantinho próximo à parede, de pernas cruzadas, uma de frente para a outra.
— Trouxe? — perguntou Jéssica.
Mical assentiu. A garotinha enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou uma vela azul clarinho, muito parecido com a cor do céu, e um isqueiro. Pôs a vela no meio das duas e acendeu. A chama tremeluziu, dançando com a brisa fraca.
As duas fecharam os olhos e se concentraram. Procuravam algo. Era como tentar enxergar no escuro.
Suspiraram e abriram os olhos.
— Conseguiu achar, Mical?
— Não. Nada. E você?
— Nada também.
— Com licença, meninas, mas o que estão fazendo?
Era um homem de terno e gravata; alto e com um bigode fino. Cabelo penteado para trás. O sapato era velho, mas estava bem engraxado.
As duas se entreolharam.
— Não podemos contar — disse Jéssica.
— Por que a vela? — Dessa vez o homem deixou um brilho fraco de raiva transparecer pelos olhos, como o tremeluzir de uma chama.
— É segredo.
— Segredo. Entendo. Todos são bem-vindos para vim na casa de Deus, mas certas práticas devem ficar longe, como sinal de respeito e educação.
— À.
— Oi?
— Se diz “vir à casa de Deus”, não “vim na casa de Deus”.
O homem mostrou a expressão de alguém que deveria estar comendo jiló com limão.
— Não quero ser presunçosa — continuou Jéssica de forma polida —, mas um representante de um ministério do Pai deveria ser um exemplo, não? Falar a língua de forma correta é essencial, não acha?
Em seguida, ela soprou sobre a vela, apagando a chama, e a pôs no bolso, junto do isqueiro.
— Estamos de partida, bom homem. Fique com Deus.
Saíram pela porta, sob olhares afiados.
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