Capítulo 07: Confusão na festa Junina
— Não! Não! Mas de jeito nenhum que eu uso algo assim!
Clara berrava, enquanto encarava Mical e Jéssica com as roupas estilo caipira, com padrões de xadrez e quadriculado, e mangas até os pulsos. As saias, cobrindo até os joelhos.
Os cabelos de Mical estavam divididos em marias-chiquinhas que chegavam à cintura. O rosto delicado, como sempre, enfeitado com os olhos verdes e pintinhas rosadas.
Os cabelos de Jéssica, soltos, eram como uma cascata negra que descia até o bumbum. Os olhos castanhos claros lembravam o mel. E nem mesmo as roupas folgadas escondiam as belas formas de seu corpo.
A súcubo desapareceu, como se o ar implodisse em volta dela, e uma fumacinha vermelha ficou no lugar.
Alguns minutos depois, ela ressurgiu, vestindo roupas no estilo caipira, mas com muito menos tecido do que a das outras. Usava um top que deixava aparecer a marquinha de bronzeado com formato da alça de um sutiã, e uma mini saia bem apertada, que modelava seu bumbum e coxa. Ambos com padrão de cores em xadrez.
Os olhos brilharam vermelhos só para combinar com o batom forte. Ela curvou os lábios num sorriso.
— Eu chamo isso de camponesa piriguete.
— Tá mais pra “só piriguete mesmo” — disse Jéssica.
*
A entrada da escola estava enfeitada com folhas de bananeira e coqueiro, e um barbante com várias bandeirolas coloridas.
No interior, havia muitas pessoas, alunos, pais, moradores da região, andando para lá e para cá, visitando barracas, comendo cachorro-quente, cocada, pé de moleque. Alguns se arriscavam na barraca da pescaria; outros preferiam tentar a sorte com o tiro ao alvo, usando as espingardas de pressão.
As incontáveis bandeirolas coloridas, com desenhos, listras, bolinhas, cruzavam o alto em barbantes, balançando ao vento.
Para as crianças tinha pula pula, piscina de bolinhas; volta e meia um personagem conhecido, como o Homem de Ferro ou a Mulher Maravilha passava no meio da multidão, trazendo consigo doces e brinquedos.
Assim que entraram, Renato percebeu alguns olhares e cochichos. Ignorou-os sem medo de ser feliz.
— Tem tanta gente! — disse Mical.
— Tem sim — assentiu Renato, com certo orgulho.
— Nossa! — Clara fez uma careta. — Eu não lembrava que humanos aglomerados fediam tanto! Arg! O que tem naquela direção?!
— É o banheiro dos alunos.
— E esse negócio não é limpo há quanto tempo?
— É limpo todos os dias, mas sabe como é banheiro de escola, né? Além do mais, tá cheio aqui e toda essa gente acaba indo ao banheiro e…
—Tem algum bebê cagado aqui perto! Quem é a mãe irresponsável que não troca a fralda de seu humano em miniatura?! — Clara olhou em volta, indignada.
Renato gargalhou.
— Sentidos aguçados de súcubo, não é? — Ele pôs a mão no ombro dela. — Pobre demoniozinho com super olfato!
Clara bufou.
— Vamos logo atrás desses brigadeiros super especiais pra poder dar o fora daqui o quanto antes!
— Mas não era você quem estava toda empolgada para estudar aqui?
— Se eu estudar num lugar tão fedido assim, eu boto fogo em tudo!
Jéssica puxou a manga da camisa de Renato, timidamente, chamando a atenção dele.
— A professora que vende os brigadeiros. Será que ela veio?
— É claro que sim! A professora Dilze não perde uma boa festa junina!
— É HORA DA QUADRILHAAAA! — Era a voz do homem ao microfone, na quadra de futsal, chamando os alunos para a apresentação. Alguns pais chegaram mais perto e sacaram seus celulares para tirar fotos, enquanto as crianças, em duas filas, uma de meninas e outra de meninos, tomavam seus postos.
— Vamos dar uma volta. A barraca dela deve estar por ali.
— Sim — disse Jéssica, e seus olhos brilharam de felicidade.
— OLHA A COBRAAA! É MENTIRAAAA!
Enquanto caminhavam, Renato viu Hiro e Alicia sentados à uma mesinha na barraca de espetinhos. Eles conversavam alegremente.
Conforme se afastavam da quadra, o som da quadrilha ficava mais distante e, aos poucos, era sobrepujado por música eletrônica.
Num cantinho escuro, sob árvores, havia uma fila de adolescentes em direção à uma portinha discreta.
— O-o que tem ali? — Mical apontou, com o dedo tremendo.
— É tipo uma boate em miniatura. Nem sei porque, mas todo ano fazem isso nas festas juninas, e até que é legal.
Clara fungou, inspirando o ar e farejando.
— O cheiro mudou. Tá melhor.
— Ali! A professora Dilze! E os brigadeiros!
Então a súcubo franziu o cenho e olhou em volta, desconfiada.
— O que foi?
— Não sei. Tô com uma sensação estranha.
— Como assim? — Jéssica perguntou.
— Não sei. Senti que tinha alguém seguindo a gente. Deve ser falta de sexo, aí meus neurônios de súcubo param de funcionar direito. Sabem como é, né? Para uma súcubo, ficar muito tempo sem sexo é tipo um peixe ficar sem água.
“Se tá com problema de falta de sexo, deixa que eu resolvo, meu amor” pensou Renato. Mas só pensou mesmo.
Se aproximaram da barraca.
A professora Dilze era uma senhorinha simpática, um pouco gordinha, sorridente, com pintinhas feitas com canetinha nas bochechas e marias-chiquinhas nos cabelos curtos.
Sobre a mesinha, havia tantos tipos diferentes de doces, com várias cores e formatos, que Renato achou que seria impossível decorar o nome de todos.
— Olá, jovens, bem-vindos ao arraiá dos doces!
— Sua barraca é a coisa com melhor aroma em toda essa festa, senhora — disse Clara.
— Hã… err… obrigada, jovem. Gostariam de provar alguns dos famosos doces da Professora Dilze?
— Eu quero os brigadores! — disse Jéssica, com empolgação.
— Brigadores? — Dilze a olhou confusa.
— Brigadeiros, professora. Os famosos brigadeiros! Me dá quatro, por favor.
A professora, com máximo cuidado, pegou um brigadeiro por vez e deu a cada um deles. As bolinhas marrons eram do tamanho de bolas de ping-pong, salpicadas com chocolate granulado. As forminhas de papel eram coloridas, com bordinhas com formato de pontas de estrelas.
Jéssica deu a primeira mordida. O sabor doce, com um toque de chocolate amargo, tocou sua língua. O exterior era crocante, mas o recheio era macio e úmido, e tinha grãozinhos de coco ralado. E, possivelmente, havia algo de apimentado também. Era difícil ter certeza.
— É delicioso! — disse Jéssica, com olhos brilhando.
— Deixou meu coração quentinho — disse Mical. — É como abraço de mãe.
Clara Lilithu afiou o olhar.
— A vida dessa mulher precisa ser protegida! Os ceifeiros não podem levá-la nunca!
— É bom, né?
— Bom, Renato?! Bom?! Eu quero saber que tipo de alquimia secreta ela usou nessa receita! Não há, em nenhum lugar desse pontinho azul e pálido, algo como isso! — Então a súcubo direcionou o olhar selvagem para a professora — Quanto custam? Eu quero todos!
— Todos?! — A professora ficou surpresa, depois abriu um sorriso. — Fico feliz que gostaram, jovens. Custa dois e cinquenta cada. Bom, ainda têm quarenta deles, então todos custam cem reais. Esses quatro podem ficar de brinde.
— Tem a gratidão desta súcubo, professora confeiteira! Sua felicidade importa para mim agora! — Clara meteu a mão dentro do top e tirou uma nota de cem reais, que estava guardada entre os seios. Depois pegou uma caneta da bolsa e escreveu num pedacinho de papel seu número de telefone. Entregou ambos à professora. — Se um dia sua vida correr perigo, me ligue, e eu irei ajudar! Não deixarei que ninguém te machuque!
Dilze coçou a cabeça, próximo à maria-chiquinha direita.
— Er… obrigada, jovem. Volte sempre. Deus te abençoe!
Clara travou como um disco arranhado. Renato pôs a mão em seu ombro e disse, gentilmente:
— Nessas horas, é educado responder com um “amém”.
Clara ficou ali, travada, sem reação. Renato achou que ela estava tendo um piripaque do Chaves. “Sua felicidade importa para mim agora” foi o que ela havia dito. Em qualquer outra situação, ela xingaria a pessoa, sem se importar com os sentimentos do outro, mas dessa vez… Os lábios tremiam em tiques nervosos.
— A… a… a…
— Acho que ela tá tendo um infarto — disse Renato.
— Acho que ela tá sendo exorcizada — respondeu Jéssica.
— A… a… a…
— P-parece que ela tá em choque — sugeriu Mical.
— Aposto uma grana que ela vai explodir — disse Renato.
— Será que ela vai entrar em combustão? — disse Jéssica.
— Eu acho que ela vai derreter igual aquele monstro do filme de terror que você contou, Renato — disse Mical.
— AMÉÉÉMMtchooooooo! — Finalmente Clara conseguiu dizer, e a palavra se misturou a um tipo de espirro bizarro vindo do fundo da garganta e, na hora do espirro, um pouco de fogo escapou por entre seus dentes.
— Que Deus lhe dê saúde, jovem! — disse Dilze, parecendo preocupada.
— A… a… a…
— Certo, vamos embora antes que ela entre mesmo em combustão! — disse Renato, pegando a cestinha de palha cheia dos brigadeiros que Dilze havia preparado para eles. — Até mais, professora!
— Até, Renato! Não se esqueça de fazer aquele trabalho que você ainda não entregou! Vá com Deus!
Se afastaram. Enquanto caminhavam, Clara pegou mais um brigadeiro da cestinha para, segundo ela, tirar a queimação da garganta.
Os quatro estavam se divertindo bastante. Renato teve que explicar as regras da pescaria de festa junina para as garotas enquanto passavam em frente ao tanque cheio de areia e com peixinhos coloridos de plástico na superfície.
Alunos e pais cochichavam e apontavam para eles. Alguns olhavam para o celular, para conferir no vídeo se seriam mesmo eles.
— Você matou meu primo!
Renato reconheceu a voz carregada de raiva e suspirou.
— Eu não fiz nada e… — Foi quando notou que Jhonatan, o primo de Roger e líder da ganguezinha de aspirantes à marginais do bairro, não estava falando com ele.
— Eu não matei ninguém! — berrou Tâmara com lágrimas nos olhos. — Já falei que não fiz nada!
— Mentirosa! Você matou meu primo com aquela faca que você sempre carregava consigo! Pensa que eu sou burro! Cadê a faca, hein?! Cadê?! Sua vadia doida do caralho! — A voz de Jhonatan saía aguda, chorosa, com ódio. Em volta dele, estavam mais alguns garotos. Alguns com idade para estar trabalhando.
— Não fui eu! Eu não sei quem matou ele, mas não fui eu! — Tâmara estava a um passo de se desmanchar em lágrimas.
— Mentirosa! Mentirosa! Mentirosa! Você… eu sei que foi você! Você estava seguindo ele! Ele me disse!
— Eu estava fugindo dele, seu imbecil! Ele é quem estava me seguindo! Eu não podia ir pra lugar nenhum que ele me seguia, ficava ligando, me ameaçando! Eu só queria ficar o mais longe dele possível!
Jhonatan puxou uma faca da cintura.
— Mentirosa! — disse, se aproximando da garota. Os curiosos em volta apenas cochichavam e apontavam. Alguns riam.
Tâmara deu um passo para trás, apavorada.
— Ei! — gritou Renato, mas ninguém o ouviu em meio à confusão. — EEEIII! — gritou mais forte.
Tâmara correu até ele.
— Me ajuda, Renato! Me ajuda, por favor! Ele enlouqueceu! Não deixa ele me matar!
— Fique atrás de mim.
Ela obedeceu.
— Vai defender essa maluca fodida?! — berrou Jhonatan, balançando a faca na mão. — Vai defender uma assassina de merda?! Então você vai morrer junto!
— Renato, gatinho, me explica — disse Clara Lilithu, se aproximando.
— Pelo jeito, Jhonatan é um paranóico fodido da cabeça e acha que foi a Tâmara quem matou o primo dele.
— Hum… isso eu já tinha percebido, né, Renato?! Mas e aí? Ela matou mesmo?
Renato enrugou a testa.
— Mas é claro que não.
— Sei não… ela me parece bastante suspeita.
— Não foi ela!
— Eu não tô julgando, sabe? Seria legal se fosse.
— Entendi! — berrou Jhonatan mais uma vez. — Tá se achando valente só porque tá com essa sua ganguezinha de vadias! Mas, olha só! Eu também não vim sozinho!
Clara respirou fundo.
— Eu vou explodir o pinto dele.
— Não tem algo menos drástico? — perguntou Renato. — Eu vi como o beco ficou nojento com sangue e carne pra todo lado! Uma nojeira só!
— Algo menos drástico, hein? — Ela pensou por alguns segundos. — Já sei!
Num piscar de olhos, Clara desapareceu e, uma fração de segundos depois, ela estava atrás de Jhonatan. O tapa na nuca dele foi tão violento que ele foi jogado para frente e caiu de cara no chão. A faca voou para longe. Os outros trombadinhas olharam assustados para Clara, que tinha os olhos brilhando vermelhos e um sorriso diabólico.
Jhonatan se levantou, com o nariz torto para o lado e expelindo muito sangue.
— Você, sua maldita! — A voz dele saiu fanha e, ao invés de ser ameaçadora, era engraçada.
— Priapismo agonizante da loucura!
O volume dentro da calça de Jhonatan começou a crescer indiscriminadamente, se enchendo como um balão. Ele gritava de dor, se contorcia. Tentou mexer na virilha, para reorganizar a posição das coisas para ver se a dor diminuía, mas era como mexer num furúnculo cheio de pus. A dor era excruciante. Ele saiu correndo no meio da multidão, implorando por ajuda. Trombou na barraquinha de cachorro quente, derrubando tudo. Ficou coberto de molho. Se ergueu, com fumaça saindo de sua pele e o volume na virilha ainda maior, e voltou a correr sem rumo e trombando nas coisas, como o voo de um besouro em volta da luz.
— É melhor chamar uma ambulância — disse Clara, para os trombadinhas. — Não vai estourar… eu acho… mas nunca se sabe.
O silêncio foi sepulcral. Nos rostos, havia apenas choque, repulsa, medo.
Hiro e Alicia observavam de longe.
Os trombadinhas correram até Jhonatan para ajudá-lo.
Clara deu de ombros e se virou para Renato.
— Vamos embora. Cansei desse fedor — disse ela.
— Eu desejo nunca te deixar irritada — disse ele, francamente assustado.
Clara sorriu. Mical se assustou ao ver os olhos vermelhos da súcubo e segurou firme no braço de Renato.
— O que… o que aconteceu? — Tâmara saiu de detrás do Renato.
Ele pensou por alguns segundos antes de tentar responder.
— Não dá pra explicar. Tâmara, se precisar de qualquer coisa, pode me ligar. Se ele te incomodar novamente, se te ameaçar, me ligue, por favor! Não vou te deixar sozinha.
Ela o abraçou forte.
— Obrigada. Obrigada de verdade.
*
Renato estava sozinho em seu quarto. A janela aberta deixava a luz da lua entrar e cortar a penumbra. A brisa era fria.
As duas irmãs haviam se trancado no outro quarto desde que chegaram. Não saíram para nada.
Clara Lilithu, assim que os deixou em casa, disse que precisava resolver algumas coisas e saiu com o carro. Renato se perguntou o que seriam essas coisas.
Ele se sentiu pequeno. Não entendia a súcubo e entendia muito pouco Jéssica e Mical. Ele queria ajudar, mas tinha dúvidas se poderia fazer algo. Tâmara, pelo menos, ele poderia ajudar!
Foi quando o celular vibrou. Ele pegou e viu que havia uma nova mensagem, via TalksApp, de Hiroshi. A mensagem dizia apenas “Liga no canal 4”.
Renato pensou em ignorar, mas a curiosidade foi maior. Ele se levantou e foi até a sala, ligou a TV e pôs no canal 4.
A repórter, usando um daqueles típicos terninhos pretos, segurava o microfone e falava alguma coisa sobre um corpo encontrado. Uma faca enfiada no pescoço. Havia uma casa atrás dela. Renato franziu o cenho. Ele já tinha visto a casa antes. Foi quando se lembrou. Era a casa onde o Roger morava junto de Jhonatan e a tia.
A reportagem terminou com a mulher falando sobre uma possível retaliação de gangues. Depois voltou para o estúdio e o âncora falava de forma bastante caricata sobre o absurdo da criminalidade estar aumentando tanto e etc.
Renato pegou o celular.
“Puta merda!” mandou via TalksApp.
“É. A mãe dele encontrou o corpo” respondeu Hiro.
“Puta merda!”
“Uma facada no pescoço, cara!. Dizem que arrancaram as cordas vocais. E o mais bizarro: tinha um poema escrito no corpo”
“Puta merda!”
“Mataram o Jhonatan!”
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