Índice de Capítulo

    A van estacionou em frente ao orfanato.

    A fachada não era nada luxuosa e não tinha adornos. O portão era velho, enferrujado, do tipo sem grades, que não permitia ver nada dentro do terreno; e o reboco do muro estava rachado.

    — Chegamos — disse Renato, com um suspiro. Parecia algo entre o alívio e a preocupação.

    Ele ajeitou Mical e Jéssica em seus assentos, para garantir que permanecessem confortáveis, apesar de estarem desacordadas, em seguida ajeitou Lírica, a demi-humana. Se certificou de que o ar condicionado estaria numa temperatura agradável, e deixou os vidros das janelas um pouco abaixados, para garantir a entrada de ar. Finalmente, pegou a sacola onde trazia os presentes e saiu do carro.

    — Eu também quero ir. Quero conhecer o local onde você passou a infância — disse Tâmara.

    — Mas de jeito nenhum! Você seria uma má influência para as crianças — respondeu Renato.

    Clara riu.

    — Ai, ai. Infelizmente você ainda não tem a confiança dele. Eu por outro lado…

    — Você também não vai.

    — O quê? Por quê?

    — Porque você também é uma má influência.

    — O quê? Que absurdo!

    — Sim! Eu concordo! Que absurdo! — disse Tâmara. — Eu sou uma pessoa totalmente confiável e legal. As crianças me adoram!

    — A mim também! Juro que vou me comportar! — disse Clara. — Qual é, Renato?! Deixa de ser chato! Eu quero ver o lugar onde você cresceu!

    — Eu também quero!

    — Devem ter fotos…

    — Do Renato criança…

    — Todo fofo…

    — E inocente…

    — Deixa, Renato!

    — É! Deixa!

    Renato suspirou e deu de ombros.

    — Afe! Essas duas estão se dando bem! Que pesadelo! Beleza, então! Podem vir comigo. Mas no primeiro sinal da sua loucura — ele apontou para Clara —, ou da sua — apontou para Tâmara —, a brincadeira acaba. E eu vou ficar bem pistola!

    — Ui, que medinho! — riu Clara.

    — Renato do velho testamento é poucas ideias — riu Tâmara.

    — Eu tô falando sério! Se comportem! Nada de pintos explodindo, nem fumaça do mal e nem feitiços!

    — Tá… — disse Clara, meio a contra gosto.

    — E nada de poemas sinistros e nem de usar armas de fogo perto das crianças!

    — Armas brancas podem? — perguntou Tâmara.

    — Não! Nada cortante, nem perfurante, nem explosivo, nem nada que seja proibido por lei! Poemas sobre assassinato também estão proibidos!

    Tâmara fez beicinho, chateada.

    — Tá… Renato, seu chato.

    — Certo. Então vamos lá. 

    O garoto se aproximou do portão e tocou a campainha.

    — Já vai! — gritou uma voz feminina lá de dentro.

    O coração do garoto acelerou. Fazia quase dois anos que ele não visitava o orfanato.

    Sentia saudade. Mas também tinha medo de que o atual Renato assustasse as crianças ou decepcionasse as cuidadoras.

    A pequena porta de ferro, no meio do portão, se abriu um pouco e um rosto desconfiado surgiu por ela. E de repente, o rosto se iluminou com alegria.

    — Renato! Ah, que saudade! — a irmã Dulce pulou pra fora do portão e abraçou o garoto.

    Seu rosto tinha marcas de idade, com rugas e olheiras de cansaço.

    Era uma senhora na faixa dos 50 anos. Sorridente e simpática.

    — Ah, que bom que veio nos ver! Você é sempre bem vindo!

    Usava roupas casuais. Calça, camiseta, e um crucifixo no peito. Não era freira de verdade, mas sempre deixou claro sua fé em Deus e, carinhosamente, os internos a chamavam de irmã.

    — E quem são suas amigas, Renato?

    Clara se meteu no meio dos dois, com um olhar soberbo e nariz empinado.

    — Clara Lilithu. Sou namorada desse humano. Por enquanto.

    — N-namorada? É sério? Então o recluso e introvertido Renato finalmente conseguiu uma namorada? Deus, obrigado! Minhas preces foram ouvidas!

    Tâmara pigarreou e também se intrometeu na conversa.

    — E eu sou Tâmara. A amante dele.

    — Você é o quê?

    — A amante.

    A irmã Dulce franziu o cenho e ficou em silêncio. Pensou por alguns instantes.

    — Não… impossível — disse ela. — O Renato mal conseguia falar com mulheres. Já é um milagre ele ter uma. Duas é impossível! Vocês estão brincando com essa pobre senhora, não estão?

    Renato coçou a bochecha, desconcertado.

    — Você falando assim… me deixa um pouco deprimido…

    — Vamos, entrem! Não percam tempo! 

    O quintal era gramado. Num dos cantos, à sombra de algumas árvores,  havia um parquinho com escorregador e gangorra, e uma faixa de terreno cimentado onde tinha algumas amarelinhas pintadas.

    Também tinha uma pequena capela no canto oposto, com uma cruz de madeira no teto. Clara, ao vê-la, fez uma careta.

    As crianças, que brincavam no parquinho, ou brincavam pelo quintal, correram até eles.

    — Tio Renato! Tio Renato! Ei, o tio Renato voltou, pessoal! — disse o pequeno Raí, no auge de seus 7 anos.

    Ele, junto das outras crianças menores, deram ao Renato um apertado e aconchegante abraço coletivo que quase derrubou o garoto.

    — Você voltou, tio Renato! Eu senti saudades! — disse Ana Alice. Era uma garotinha loira dos olhos azuis.

    — Eu senti mais saudade ainda! — disse Kawanne, uma menina de 6 anos, dos olhos amendoados, cabelos pretos longos e pele morena. — Senti mais saudade do que a Ana Alice!

    — Mentira! Eu que senti mais!

    — Eu nem senti tanta saudade assim! He! He! He! — disse Raí.

    — Mentiroso! — gritou Kawanne. — Você vivia chorando pelos cantos, falando que o Renato tinha esquecido de nós porque não vinha visitar a gente! 

    — E-eu?! Eu não lembro disso aí não!

    Renato deu um sorriso sem graça e fez cafuné na cabeça das crianças.

    — Eu jamais esquecerei vocês, crianças. Nunca! Aqui, olha o que eu trouxe…

    Ele pôs a mão dentro da sacola que trazia consigo e tirou vários doces. Eram bombons, pirulitos, suspiros e marias-moles. Também tinha balões, bolinhas de pingue e pongue, raquetes, e línguas de sogra para as crianças poderem brincar.

    — Oba!

    — Que legal!

    — Agora vão brincar, crianças! E escovem os dentes depois de comer os doces, senão os bichinhos vão comer eles!

    — Sim, tio Renato!

    — Pode deixar!

    Eles correram de volta para o parquinho, em meio a gargalhadas e risos alegres, enquanto abriam as embalagens dos doces e dos brinquedos.

    — Será mesmo? — disse Yuri. Ele era um dos meninos maiores. Tinha 15 anos. — Será mesmo que não se esqueceu da gente?

    — Não. — Renato tirou de dentro da sacola um deck de cartas de Yu-Gi-Oh — Ainda lembra como se joga?

    O rosto de Yuri se iluminou.

    — É claro que lembro. Ainda tenho aquelas cartas antigas. Estão velhas, mas ainda dá pra jogar!

    —  Agora você tem cartas novas. O que acha da gente jogar daqui a pouco?

    Yuri sorriu e seus olhos brilharam de alegria.

    — Não vou deixar você ganhar dessa vez!

    Renato assentiu.

    — Beleza. Não vou pegar leve também.

    — O Renato leva jeito com crianças… — disse Clara.

    — O útero chega a coçar, né? — disse Tâmara.

    — “Azidéia”! — riu Renato.

    — O Renato sempre levou jeito com crianças — disse a irmã Dulce. — Quando ele chegou aqui, ele era todo emburrado e não conversava com ninguém. Nem comer ele queria. Também, não julgo… depois de uma tragédia daquelas… mas aos poucos ele foi se abrindo para as crianças. Começou a brincar com elas, e aí… bom, ele foi se revelando o Renato carinhoso que todos adoramos.

    — Renato carinhoso? — Clara levantou uma sobrancelha. — Estamos falando da mesma pessoa?

    — Ei, Renato, você veio?! Que surpresa agradável! — A irmã Clarisse saiu da capela e se aproximou, correndo como podia, erguendo o vestido, quase tropeçando. Ela tinha limpado bem os olhos e o rosto na tentativa de disfarçar as lágrimas, mas Renato percebeu.

    Clarisse era assim. Ela chorava escondida, na capela, quando algo a preocupava.

    — Todos sentimos sua falta — disse ela, com um sorriso sereno.

    — Eu senti também.

    — Vamos! Eu vou preparar um lanche.

    — Um lanche da irmã Clarisse… é algo irrecusável!

    — Eu tô com fome! — disse Tâmara.


     Enquanto Clarisse preparava o lanche, Clara e Tâmara insistiram que queriam ver fotos do Renato criança. O garoto protestou, mas, de acordo com Dulce, as fotos eram tão lindas que seria um desperdício não mostrá-las.

    — Veja! Ele só de cuequinha! Que bonitinho! — disse Tâmara, sentindo um rubor nas bochechas.

    — Dá vontade de mergulhar ele no meu café! — disse Clara.

    Renato olhou de soslaio para as duas.

    — Esquisitas…

    — Eu me lembro desse dia como se fosse hoje! Estava tão calor! Então o Renato pegou a mangueira que a gente usava para regar as plantas e começou a se banhar, assim, no meio do quintal. Ele parecia tão feliz, que eu resolvi tirar essa foto… — disse Dulce, com um brilho nostálgico nos olhos.

    Renato coçou a cabeça, envergonhado.

    — Isso é meio constrangedor… Ah, ali! Os lanches chegaram!

    — Gente, eu fiz cachorro quente e suco de acerola! — disse a irmã Clarisse, se aproximando com uma bandeja e uma jarra.

    — Obaaaa! — gritaram as crianças, em uníssono, com alegria.

    O suco era natural, feito das acerolas colhidas no pomar do orfanato, e desceu refrescante pela garganta.

    Os lanches eram feitos com salsichas cortadas em rodelas e estava bem temperado. Dava pra notar que foi feito com carinho. Não tinha sabor melhor!

    Enquanto comiam, Raí disse, ainda mastigando:

    — Tio Renato! Por que você não liga pra Irina igual da última vez? Eu quero falar com ela!

    — Sim! Liga pra Irina! — concordou Ana Alice.

    Renato pareceu em dúvida, mas a irmã Dulce assentiu:

    — Seria bom falar com sua irmã também. Também sentimos falta dela.

    — Certo. — Renato pôs um sorriso terno no rosto, e ligou, mas: — É, parece que a Irina não pode atender agora. Ela deve tá ocupada.

    — Ahhhhh — disseram as crianças, em uníssono, chateadas.

    Continuaram comendo e conversando, e em algum momento o pequeno Raí empurrou Ana Alice, fazendo a menina cair no chão e começar a chorar.

    A irmã Dulce pegou a menina no colo, acalmando-a, enquanto Clarisse repreendia o menino.

    Renato balançou a cabeça, negativamente.

    — Por que você fez isso, Raí? Você não disse que sempre ia proteger sua irmã?

    O menino baixou a cabeça, emburrado, e não respondeu.

    — Ele tá assim ultimamente — disse Clarisse, com olhar preocupado. — Todas as crianças, na verdade. Estão brigando muito. Brigam por qualquer coisa. Não sei mais o que fazer. 

    — É essa onda de violência que tá se espalhando pelo mundo, sabe? — acrescentou Dulce. — Acho que não é natural, não. É algo espiritual. E tá contaminando até as crianças.

    Renato pensou por alguns instantes.

    — Quando a gente estava voltando, vimos uma briga bem feia entre várias pessoas.

    — Tá vendo! A violência tá se espalhando entre as pessoas como um vírus. É terrível! Nem as crianças estão a salvo.

    Renato se levantou e, pensativo, andou alguns passos. Saiu daquela sala e observou o sol brilhante do lado de fora. Ouviu o canto dos pássaros.

    — Clara — disse em voz baixa, mas a súcubo ouviu.

    Ela surgiu ao lado dele no mesmo instante.

    — Chamou, querido? — A voz dela era macia, e tinha um tempero de sarcasmo.

    — Essa onda de violência… também tô achando estranha.

    Clara deu de ombros.

    — Os humanos sempre foram violentos.

    — Mas agora tá mais intenso. E mais, as pessoas parecem mais acostumadas à violência do que o normal. Eu notei. O Hiro, outro dia, deu um tiro na cabeça de um homem e nem se importou. O Hiro! Ele não é assim, sabe? Tudo bem que a gente estava numa situação de perigo, mas mesmo assim… Não é normal.

    — Vai ver você só tá cercado de amigos psicopatas e não sabe, Renato. Olha a princesinha homicida ali. — Ela direcionou o olhar para Tâmara que, apesar de estar sentada no sofá, junto das irmãs e das crianças, observava os dois com olhos afiados. — Você não sabia dela antes, sabia?

    — O Abigor… quando ele aparece, todos aqueles próximos a ele sentem raiva, ódio, vontade de matar os outros.

    — Sim. Mas é limitado àqueles que estiverem próximos, como você disse. Esse negócio aí de influenciar todo o mundo não faz sentido. É teoria da conspiração.

    — Mas se ele pode fazer isso… não pode existir algum demônio mais forte que possa influência o mundo? Seria a mesma coisa que o Abigor faz, porém mais forte, com um campo de ação maior?

    — Impossível, Renato. Influenciar todos dessa forma seria… grande demais. Seria necessário ter poderes quase divinos. E não tem demônio e nem anjo tão forte. Não mais.

    — Mas já houveram?

    — Já. Morreram todos na grande guerra. Os que sobreviveram à Rebelião de Lúcifer, pereceram nas Guerras Pelo Enxofre. Não tem mais ninguém tão forte. Nem mesmo os antigos deuses da guerra têm mais tanto poder restando.

    — Essa… violência no ar… não é por acaso. É a influência de alguém. Eu sei porque sinto o mesmo arrepio que sinto com o Abigor, mas agora é o tempo todo. Tá no vento; na água; até na luz do sol. E tenho certeza que não sou só eu que notou.

    Clara sorriu.

    — Uma coisa tão grande assim… só poderia acontecer se…

    — Se o quê?

    — Se o Apocalipse tivesse sido iniciado.

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