Índice de Capítulo

    — Alguém? Tem… alguém aí? — A voz de Mical saiu fraca.

    Ela tropeçou num montinho de areia e, suas pernas já enfraquecidas, não suportaram seu peso. A garota caiu sobre uma duna seca e quente.

    O sol queimava sua visão. A garganta parecia a ponto de se partir.

    Não teve forças para se levantar.

    — Jés? Cadê… cadê você? Alguém… Renato… me ajuda… eu tô com medo.

    — Tá com medo?

    Mical abriu os olhos para ver de onde vinha essa voz, e viu aquela garotinha de cócoras ao lado dela.

    Devia ter algo entre 4 ou 5 anos. Cabelos pretos e longos, com uma franjinha sobre a testa.

    Usava roupas leves e uma mochila de estudante cor de rosa nas costas.

    — Quem é você? — perguntou Mical.

    — Não sei — disse a menininha, com um sorriso bobo.

    — Onde estamos?

    — Não faço ideia! Só me lembro de acordar com você dizendo que estava com medo. E aí fiquei com vontade de vir falar com você.

    Mical passou a língua nos lábios, para tentar aplacar a secura, e, com sede, engoliu saliva.

    Então usou toda a força que tinha para se sentar.

    — Eu conheço você? Sinto que conheço.

    A garota lançou um olhar de dúvida e pôs a mão no queixo.

    — Hum… não sei. Ei, por que você tem medo? Sinto um poder vindo de dentro de você. Poder de cura.

    — Cura?

    — Sim! Uma benção divina!

    — Tudo o que eu sinto é sede. E medo. Tô sozinha aqui há anos! Tantos anos que perdi a conta! Fui abandonada por todos!

    — Não tem anos. Tá aqui há alguns dias apenas. Mas parecem anos. E tenho certeza que estão todos preocupados com você.

    A garotinha se levantou e olhou em volta.

    — Isso aqui parece uma prisão. Você vai sair um dia. E eu vou com você! — Ela sorriu e ergueu o polegar, num sinal de jóia.


    — Não tenho a menor ideia de como você ainda tá vivo, mas vir aqui foi um erro! — berrou Andrei, entredentes, segurando o próprio braço quebrado, na qual a ponta do osso aparecia rasgando a pele.

    Com o braço bom, o mercenário puxou a pistola do coldre.

    Mas Renato parou seu movimento, segurando-o pelo braço, e desferiu um soco na boca do estômago.

    — Urg! — Andrei grunhiu de dor e soltou a arma.

    — Você disse que o Hiro é fraco, mas estava enganado. Sabe quanta força é necessária pra continuar se levantando daquele jeito?

    Ele acertou mais um soco no mesmo lugar. Andrei caiu no chão, com sangue e saliva lhe escorrendo pela boca.

    — Força essa que você não tem, aparentemente.

    — Desgra… çado! — gemeu ele. — Vai… morrer!

    Renato riu.

    — Eu poderia ter te matado com esse golpe. Meu punho poderia ter atravessado seu corpo com facilidade. Sabe por que eu não fiz isso?

    Andrei permaneceu calado. A dor era imensurável. Sempre que puxava o ar pra respirar, a dor aumentava e se espalhava para o tórax. O golpe tinha quebrado duas de suas costelas, e o estômago parecia que tinha sido deslocado de lugar.

    — Porque você vai me dizer onde encontrar a Kath — concluiu Renato.


    Andrei moveu e puxou os braços, tentando libertar-se, e a dor aguda no local da fratura subiu pelo osso e fez o corpo inteiro se arrepiar.

    Seus pulsos estavam amarrados por cordas. Ele estava preso a uma cadeira. Odiava estar desse lado de um interrogatório.

    — E então? — disse Renato. — Como eu encontro a Kath?

    Andrei sorriu de forma amarga.

    — Pode deixar que ela vai te encontrar, garoto! Mais cedo ou mais tarde!

    O soco de Renato fez Andrei ver estrelas e sua visão se apagou por alguns segundos. Ele engasgou no gosto de sangue e cuspiu dois dentes, um canino e um pré molar.

    — Se lembrou?

    Após alguns segundos completamente desnorteado, o mercenário abriu um sorriso banguela e ensanguentado.

    — Você bate que nem mulherzinha!

    Renato assentiu. Rodeou o mercenário e segurou o braço dele no local da fratura. Apertou.

    — Arrrrg! Ma… maldito! Arg!

    — Diga! E eu deixo você morrer.

    — Vai… se fuder! Você é quem vai morrer, garoto! Eu vou te… arrrrrg!

    Renato pressionou ainda mais a fratura. Pôde sentir o osso se movendo debaixo da carne do homem e a pontinha que aparecia fora da pele.

    — Você… acha que sabe fazer isso? — disse Andrei. — É um completo amador! Teria pesadelos se visse o Lúkin interrogando!

    Renato deu de ombros.

    — E o que tem de tão difícil em causar dor?

    Foi quando ouviu um som de estrondo vindo da direção dos quartos; e junto, veio aquela sensação estranha de formigamento atrás do cérebro, de quando emanações energéticas poderosas acontecem nas proximidades.


    No quarto, a pedra fundacional sobre o peito da demi-humana, que antes fora acinzentada, já tinha adquirido uma coloração ainda mais escura. As paredes do quarto tinham ficado sujas, como se salpicadas de fumaça negra.

    A própria estrutura da pedra não suportava a intensidade da Maldição da Escravidão. Suas moléculas vibravam de um jeito enlouquecido. Os átomos estavam a ponto de se partir.

    Até que a pedra se quebrou . Uma rachadura a trincou no meio, e as duas metades rolaram até cair sobre o lençol da cama.

    O quarto tremeu com um estrondo e uma sujeira escura se dissipou.

    Lírica abriu os olhos.

    Ainda meio confusa, sentou-se na cama. As pupilas, adaptadas ao escuro, não tiveram problemas em decifrar as formas ocultas pela penumbra: um guarda-roupas, uma cômoda, mesinha de cabeceira. Coisas que ela não conhecia.

    Um vento suave e fresco entrava pela janela e movimentava as cortinas.

    Ela se levantou e foi até a janela. E olhou para a lua. Um círculo quase perfeito, feito de prata e luz.

    Linda.

    A garota suspirou.

    — Esse céu é mais bonito do que o do Inferno.

    — Tem que ver durante o dia. Também é incrível. — Essa foi a voz de Renato, atrás dela.

    A garota se virou e abriu um sorriso. Ela pulou sobre ele, abraçando-o, e tirou os pés do chão, de modo que Renato teve que segurá-la em seus braços.

    Ele se desequilibrou e tombou para trás, caindo na cama, e a demi-humana caiu por cima.

    — Renato… — disse ela, olhando-o nos olhos — sua mente parece perturbada.

    — Minha mente tá sempre perturbada — respondeu ele, com um sorriso, sentindo o corpo dela sobre o dele —, mas eu aguento.

    Ela inclinou a cabeça, tentando decifrar a expressão dele. Suas orellhinhas se dobraram, como um animalzinho tentando ouvir algo à distância, e ela puxou o ar, farejando.

    — Seu cheiro é bom — disse ela.

    O garoto sorriu, tímido.

    — Obrigado. O seu também.

    — Seu cheiro me dá vontade de acasalar.

    — Eita! — o garoto engasgou, surpreso.

    — Muito bem, muito bem! — Essa foi a voz de Clara. Ela estava na janela, e tinha um olhar ameaçador.

    Atrás dela, Tâmara estava flutuando no ar, com sua roupa tecnológica, e com o fuzil gigantesco preso ao corpo pela alça.

    — A gatinha tá no cio — disse a súcubo.

    — Tô com vontade de arrancar as orelhas dela no tiro! — disse Tâmara.

    Renato se levantou.

    — Calma, calma! Sem violência entre… — Ele quis dizer “entre minhas garotas”, mas não teve coragem, então parou a frase na metade.

    — Em cima da Mical e da Jéssica, Renato?! — disse Clara, apontando para as duas que dormiam na cama. — Que deselegante! Não tem vergonha?

    — A gente não ia fazer nada!

    — Não ia? — disse Lírica, com cara de choro.

    — Ah, bom… talvez…

    Tâmara puxou duas granadas.

    — Ah, chega! Eu vou explodir todo mundo!

    — Calma aí, oh Megumin da deep web! — respondeu Renato. — Que bom que vocês chegaram. Eu preciso de ajuda pra um negócio.

    — Ajuda? — A garota dos olhos âmbares ergueu uma sobrancelha, desconfiada. — Ah, tudo bem! Eu não consigo ficar com raiva de você! Não consigo falar “não” para o meu Renato!

    Ela guardou as granadas e pulou sobre Renato, abraçando-o.

    — Sabe, Tâmara — disse Clara —, eu aprendi uma expressão nova que descreve bem você.

    A garota dos olhos âmbares a olhou de soslaio.

    — E qual seria?

    — Gada demais!

    — Renato… — disse Tâmara, pegando as mãos do garoto —, seus punhos estão machucados…

    Ele deu de ombros.

    — Tem que ver o outro cara.

    Enquanto saíam do quarto, estacaram na porta. Paralisados. Todos, tomados pelo mesmo sentimento de assombro.

    O garoto sentiu aquele arrepio no cérebro, avisando-o de que algo estava errado.

    A demi-humana, com a testa enrugada e uma sensação de alerta, farejou o ar.

    — Também senti — disse Clara.

    Tâmara mostrou a pele de seu braço. Os pelos estavam todos eriçados.

    — Cheiro de… — disse Lírica.

    — Anjo — completou Clara.

    Seguindo a origem daquela sensação, olharam em direção às meninas que estavam deitadas na cama e viram que Jéssica tinha aberto os olhos, e deles saía um brilho alaranjado suave.

    Clara fez uma careta de nojo.

    — Uma benção angelical.

    — Não — respondeu Lírica. — Duas.

    Mical também tinha aberto os olhos. Suas pupilas verdes brilhavam como duas esmeraldas bem lapidadas.

    A irmã mais velha sentou-se e, confusa, levou a mão às têmporas e as massageou.

    — Ah… que dor!

     — Parece que… um crocodilo do Nilo mastigou minha cabeça… depois cuspiu ela só pra poder mastigar de novo! — disse Mical, enquanto via o mundo girar.

    Tâmara apertou os olhos, lançando um olhar desconfiado para as duas.

    — Hum…

    Então, repentinamente, sacou uma pistola, apontou para o rosto de Jéssica e atirou.

    — Você tá maluca?! — gritou a garota. — Eu vou te partir em pedaços!

    — Só tô devolvendo o favor de antes.

    — Vadia!

    — Certo, pirigospel, mas antes poderia responder pra gente como você segurou a bala com a mão?

    Jéssica franziu o cenho, confusa.

    — Como eu fiz o quê?

    — Suas mãos.

    A menina notou que estava segurando algo. Ainda confusa, abriu a mão e lá estava o pequeno projétil de chumbo expelindo fumaça.

    — O quê… como eu… — Olhou para Mical.

    — Jés!

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