Capítulo 14: Granadas são melhores!
O dedo roçava no gatilho. O silêncio era absoluto, não porque não havia barulho nenhum, mas porque ela ignorava qualquer ruído e mantinha o olhar estático como o de um predador vigiando a presa que lhe serviria de almoço.
O sol bateu na lente, o que fez Jéssica ajeitar melhor a posição do fuzil.
A arma era pesada, por isso estava apoiada numa das bordas laterais do chafariz, sob a sombra do cupido de pedra em posição pervertida.
A latinha, que servia de alvo, estava no alto de uma das árvores do jardim, sobre um galho, apoiada no tronco. Era uma distância considerável. Um tiro difícil.
Respirou fundo e apertou o gatilho. Foi como se a arma tivesse dado um soco em seu ombro, o que a jogou para trás.
Olhou pra latinha. Ela estava girando como um pião, provavelmente porque a bala atingiu a lateral.
— Cai! Cai, por favor! Cai, senão eu te mando pra reciclagem!
A lata ainda estava girando, porém mais lentamente, até que começou a cambalear.
Não demorou para tombar de cima do galho da árvore e se chocar contra o gramado verdinho.
— Até que enfim! — Clara estava ali, parada, com as mãos na cintura. — Foi mesmo um belo tiro, mas eu tenho que perguntar… você ameaçou mesmo uma latinha de refrigerante?
— Acho que sim — disse Jéssica, enquanto mordiscava os lábios, sinal de que estava apreensiva.
— Jéssica, lindinha, você, por acaso, encontrou minha maconha e usou ela pra ficar mais perto de Deus?
— O que é maconha? É algum tipo de item litúrgico?
Clara suspirou e pôs a mão no ombro de Jéssica.
— Ora, parece que eu vou ter que te ensinar umas coisas. Essa sua inocência está um pouco alta demais pro meu gosto.
Nesse momento, o punho de Mical se chocou contra o rosto de Clara. O soco, no entanto, não foi tão forte, para frustração da menina.
Clara virou o rosto, num movimento parecido com o da garota de O Exorcista, com o punho de Mical ainda sobre sua bochecha, e lançou um olhar vermelho arrepiante.
— Err… você se distraiu! Você disse que não pode, sob hipótese nenhuma, se distrair durante uma luta.
— Isso não é uma luta, Mical. É um treinamento.
A menina rapidamente recolheu o punho e ficou ali, olhando com carinha de quem pede misericórdia pela própria vida.
— Ah, tudo bem! Eu sou muito coração mole. E que soco de mocinha foi esse, heim? Se fosse mais forte, poderia servir como massagem.
— Acho que eu preciso ganhar uns músculos — disse Mical, apalpando o próprio braço.
— Você precisa aprender onde bater. Você não tem muita força, então nem todo soco vai servir. Tem que bater onde dói.
— E onde dói?
— Aí depende. Se for homem é mais fácil. Você bate nele nessa área, bem entre as pernas.
Mical abaixou o rosto, envergonhada, e deu um sorrisinho contido.
— Ai, pelo amor de Satã! Eu esqueci que tô lidando com meninas cristãs e virgens. — Suspirou — É isso! Decidi! Vocês precisam aprender umas coisas, então depois eu vou levar todo mundo pra comprar umas drogas e aí, bom, vamos precisar do corpo nu do Renato pra umas coisas. Por motivos meramente pedagógicos, é claro.
As duas se entreolharam, se perguntando que tipo de armadilhas a súcubo estaria preparando para elas.
*
Renato estava sozinho, no estande de tiros, descarregando o tambor do 38. Ele gostava de atirar, mas como ainda não tinha conseguido acertar o alvo nenhuma vez, estava ficando frustrado. E a frustração puxava para fora um sentimento que ele preferia manter guardado, escondido. Mas a raiva, às vezes, aparece sem pedir licença. E ele tinha muita raiva acumulada.
Olhou para a arma cromada em suas mãos. Estava sem balas e da ponta do cano saía uma fumaça fina. Foi com uma arma parecida com essa que seus pais biológicos foram mortos na sua frente, quando ele tinha apenas cinco anos. Suas mãos tremiam um pouco. Ainda se lembrava da forma que sua mãe gritou.
Ele largou o revólver e foi até o arsenal nas estantes. Pegou uma granada. Sentiu o peso. Ficou curioso sobre o que ela poderia fazer, então removeu o pino e jogou a granada contra o manequim com alvo no peito. Todos os manequins ficaram em pedaços e a força da explosão fez seus olhos arderem. Renato sorriu.
— Granadas são melhores.
Saiu pelo corredorzinho na lateral e subiu as escadas, e chegou no segundo andar. Era lá que ficava a academia, com vários equipamentos de musculação, sacos de areia para dar socos e chutes, uma cama elástica, um tatame, um ringue de boxe, e vários outros equipamentos que ele não conhecia.
Renato se aproximou de um saco de areia e começou a golpeá-lo com força até ficar ofegante. Era uma chuva de socos, joelhadas, chutes. Suas mãos e pés começaram a doer, mas ele não parava. O coração batia forte, espancando o tórax. Na cabeça passavam flashes e lampejos do dia da tragédia. Ele, apesar de todo esse tempo, mesmo disfarçando bem com sorrisos tranquilos, não havia superado. A lembrança sempre estava lá, surgindo diante de seus olhos, apertando o coração com as garras do luto, a sensação de impotência, de pequenês, dando novamente as caras.
— Se eu ficar bem forte, nunca mais assisto alguém que eu amo morrer sem poder fazer nada! Nunca mais!
Ele repetia isso roboticamente. Os golpes não paravam. Mesmo com a dor nos punhos, ficavam ainda mais intensos, mais rápidos, impunham mais pressão.
“Renato”.
Ele parou. Pensou ouvir alguém chamando seu nome, mas não tinha mais ninguém ali. Estava sozinho.
“Renato”
— Estou aqui — respondeu, para uma voz que falava dentro de sua cabeça.
Um arrepio subiu pela pele. Os olhos viram apenas escuridão e os ouvidos captaram nada mais além de silêncio.
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