Capítulo 19: O ponto de vista do Andrei
Era bem na hora da fuga. Andrei, que estava na carroceria em formato de baú, na parte de trás da van, segurava uma pistola sobre seu colo. Estava sentado num dos cantos.
Diante dele, presas por redes eletrificadas, estavam as duas meninas. Se apertasse o botãozinho no controle, elas tomariam um choque forte. Se fosse a Kath em seu lugar, ele sabia, ela estaria apertando o botãozinho toda hora apenas para aplacar o tédio. Andrei não era assim. Não que fosse uma boa pessoa também. Ele era prático e apenas fazia o que fosse necessário para a missão, sem perder tempo com coisas desnecessárias.
Também não era muito inteligente, então tudo o que podia dar ao trio de mercenários eram seus músculos fortes e lealdade. Tinha total confiança em Lúkin e em Kath: um tinha um poder sobrenatural e grande coragem, embora fosse impulsivo quando irritado; a outra, uma inteligência fora do comum, com muito sadismo também, é verdade, mas quem seria perfeito nesse mundo? Gostava deles. Eram seus amigos desde a infância.
A garota menor estava acordada e olhando para ele. Seus olhos não demonstravam medo, mas muita raiva.
— O Renato vai pegar vocês — disse ela.
Andrei apenas riu.
— Ele já morreu, pequena.
— Morreu nada!
Andrei preferiu ficar em silêncio. Não era tão incomum gente capturada se apegar à vã esperança por um tempo. “Logo ela entenderá” pensou. “É inevitável”.
Mas algo aconteceu. A voz de Lúkin o chamou pelo rádio.
— Andrei! Tem alguma coisa voando seguindo a gente! Enche esse merda de bala!
Ele se levantou, abriu as portas traseiras da van e viu aquele garoto, com um par de asas negras vindo em sua direção cortando o ar, rápido como um meteorito. Andrei conhecia as penas de fênix, então a reconheceu, mas nunca vira um ser humano capaz de usá-las.
As duas meninas se mexeram e olharam diretamente para o garoto. Sabiam que ele estava ali por elas.
Andrei apontou a pistola e puxou o gatilho. Renato ganhou altura. Andrei percebeu que ele estava acima da van, então mirou para o alto e atirou. As balas atravessaram o teto do carro, procurando por seu alvo, mas não o encontraram.
Andrei pegou o rádio.
— Lúkin! O que tá acontecendo?! Pra onde ele foi? Eu não consigo ver daqui!
— Eu falei — disse Mical. — O Renato vai pegar vocês.
Andrei apontou a pistola para ela.
— Cala a boca, pirralha!
E então escutou um som ensurdecedor de explosão e viu o fogo arrebentando a lataria da van, e tudo girou no ar, e depois bateu contra algo duro. Os três foram arremessados com força, giraram e bateram contra a lataria várias vezes, antes de tudo ficar quieto.
Andrei tentou se levantar. Estava tonto, pois batera a cabeça. O lábio foi dilacerado e por pouco não quebrou a perna.
Finalmente se ergueu. Olhou para as duas. Pareciam mortas, muito mais machucadas do que ele. Se tinham morrido de fato ou não, não importava no momento. Ele se desesperou com a ideia de algo ruim ter acontecido a seus amigos. Abriu a porta traseira com dificuldade, pois ela estava retorcida, e saiu para o asfalto.
Viu que Lúkin estava lutando contra o garoto. Procurou por Kath e a encontrou caída na calçada, com marcas de queimadura, um braço quebrado e uma fratura exposta na perna, com a ponta do osso saindo pela panturrilha.
Foi até ela e checou os sinais vitais. Não tinha pulso, não respirava, o coração não batia. Ele entrou em desespero.
— Merda! Merda! Merda! Merda!
Pegou Kath em seus braços. Deu uma última olhada para Lúkin, que trocava golpes com o maldito causador dessa tragédia.
— Mate esse desgraçado, Lúkin! — disse, com voz baixa, quase inaudível, e com Kath em seus braços, correu o máximo que pôde. Se fosse rápido o bastante, talvez desse tempo.
Enquanto corria, viu o caos que a avenida tinha se tornado. O trânsito estava completamente parado e um acidente envolvendo múltiplos carros tinha acontecido.
Viu um homem sozinho num carro popular. Era um senhorzinho de uns cinquenta anos e que tentava ver o que estava acontecendo. Parecia um homem trabalhador, desses que tem uma boa família esperando em casa. Era ele!
— Senhor, por favor, me ajude! Preciso levá-la a um hospital!
— Por Deus! Entre! Coloque ela aqui no banco de trás! Vamos! Rápido rapaz!
Depois de pôr Kath no banco traseiro, Andrei sentou-se no banco do carona.
O senhorzinho olhou em volta, com os vários carros parados em volta, procurando um local que pudesse manobrar para sair.
Andrei, sem hesitar, puxou a pistola e deu um tiro na cabeça dele. Abriu a porta do motorista para que o corpo pudesse cair no asfalto, e então ele assumiu a direção. Subiu com o carro sobre a calçada e pisou fundo. Quase atropelou uma criança, mas a mãe, que estava do lado, conseguiu salvá-la a tempo, puxando-a rapidamente e tirando-a da frente do carro.
Andrei ganhou a estrada. Não podia ir para um hospital. Teria melhores chances de salvar a vida de Kath em uma de suas bases. Por sorte, tinham uma na cidade. Só precisava chegar lá rápido e talvez sua amiga ainda tivesse alguma chance.
Pegou rapidamente o celular e olhou o mapa da cidade numa visão de satélite, enquanto dirigia com uma mão e desviava o olho da estrada. Não podia correr o risco de passar por uma blitz policial, por isso checou o caminho. Constatou que havia três blitz sendo feitas naquele momento; duas estavam fora de seu caminho, uma estava bem a frente, numa das ruas que tomaria. Mudou o caminho. Demoraria mais alguns minutos, mas não teria nenhum policial atrapalhando.
Finalmente, depois de atravessar o bairro periférico chamado Pedra 90, chegou à região de chácaras conhecida como Cinturão Verde. Por causa da localização, num local com bastante área verde, rios, trilhas e muitas chácaras, longe da movimentação da parte mais central da cidade, era o local perfeito para quem queria privacidade. Por isso, havia naquela região desmanches de carros, produtores de drogas, e mais alguns outros representantes de coisas ilícitas. A maioria dos moradores era gente honesta, é claro, e produziam legumes e peixes para venderem na cidade.
Enfim chegou à propriedade: uma chácara de dois hectares, toda murada, com cerca elétrica no alto dos muros, e um grosso portão de ferro na entrada. Uma câmera de segurança vigiava a frente.
Andrei olhou para o banco traseiro, e viu Kath caída, toda molhada com o próprio sangue. Seus lábios e unhas estavam roxos. Qualquer médico a consideraria morta. Mas Andrei sabia que milagres podiam acontecer às vezes.
Pegou o celular e acessou o aplicativo que destrancava o portão. Digitou “82” para identificar a base que queria abrir, logo em seguida, um leitor de impressão digital apareceu na tela, e Andrei pôs o polegar. O aplicativo o identificou e o portão começou abrir. Entrou.
O quintal de dois hectares era grande. Havia uma casa de dois andares num dos cantos, e no outro havia um heliponto com um helicóptero. Ele parou o carro, pegou a garota nos braços e correu para a casa.
— Vamos! Aguenta firme, Kath! Tem que dar tempo!
Assim que entrou na casa, deixando uma trilha de sangue de Kath pelo chão como se fossem migalhas de pão no conto de João e Maria, correu para o andar subterrâneo, onde estava a enfermaria.
Deitou Kath sobre o leito, ligou a luz verde, que direcionou os raios diretamente na garota. Andrei já havia visto o efeito disso várias vezes. Ajudava a curar as feridas mais rapidamente. Depois vasculhou as gavetas do armarinho ao lado, e pegou um saquinho feito de couro, cheio de ervas. Compraram isso de uma velha bruxa há alguns anos e também já testemunhara seu efeito. Pôs o saquinho sobre o umbigo de Kath, local do chakra umbilical.
Depois, voltou a vasculhar as gavetas do armarinho até encontrar um velho livro. Pôs o livro sobre o armarinho e o abriu. Foi até o capítulo sobre os chakras. Achou o que procurava: o símbolo do Anahata, o chakra cardíaco. Era como um círculo rodeado de pétalas pontiagudas, tudo na cor verde. Contou quantas eram. Também havia um outro símbolo dentro do círculo, com o formato de uma estrela, e uma letra cujo som ele não conhecia
Pegou uma caneta de dentro da gaveta, rasgou a blusinha de Kath, expondo seu peito, e desenhou o símbolo nela, bem acima do coração, da forma mais perfeita que conseguiu.
Notou que Kath já parecia ter um aspecto melhor, ou talvez fosse apenas sua vã esperança dando as caras.
Conferiu novamente a pulsação. Estava ausente. Ele pegou o desfibrilador de dentro de uma das gavetas, pôs os eletrodos sobre o tórax da garota, e deu um choque. Depois, começou a fazer massagem cardíaca; e mais outro choque; e mais massagem cardíaca. No terceiro choque, algo aconteceu.
— Um milagre!
O coração tinha voltado a bater.
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