Capítulo 24: Bem-vindo ao seu próprio funeral!
— Mas como é que eu posso lutar como um demônio de alto nível?
Ali, entre companheiros, podiam ser sinceros uns com os outros, e Renato mostrou um pouco de seu desespero. Estavam no quarto que Clara havia cedido para as duas irmãs. No canto, próximo à janela, estava a grande cama box com lençol estampado com girassóis; e junto a uma das paredes, um armário todo entalhado em madeira.
— Não pode — respondeu Jéssica. — Não pode lutar como um demônio de alto nível. É impossível.
Mical estava olhando para o chão, balançando a cabeça negativamente sem perceber. Por dentro, fervia de indignação.
— Mas eu… — Renato tentou retrucar.
— Então lute como um humano — concluiu Jéssica.
Ela se levantou, abriu o armário e tirou de dentro um baú de madeira; não era muito grande, mas também não era pequeno, de modo que ela precisava usar as duas mãos para carregá-lo. Pôs ele em cima da cama, abriu usando uma combinação no cadeado especial e tirou de dentro um recipiente de vidro, parecido com uma garrafinha.
— Graças a Deus eu consegui salvar isso do incêncio — ela entregou o recipiente para o Renato. — É água benta. É assim que humanos enfrentam demônios.
Ele pegou o vidrinho e ficou encarando-o, curioso.
Jéssica tirou mais um objeto de dentro do baú.
— Esse é um rosário especial — disse ela —, os fios são feitos de uma liga de aço e prata; num preparo secreto dos Atalaias que os deixa super resistentes. São abençoados. Já os vi serem usados para expulsar demônios muitas vezes. Infelizmente é tudo o que tenho que possa ajudá-lo.
Ela abaixou a cabeça. Renato ergueu-a novamente, com delicadeza, com os dedos, e olhou em seus olhos.
— Muito obrigado. Farei bom uso de tudo.
Ela sorriu e assentiu.
— Renato! — Mical tinha as bochechas coradas; e nos olhos havia tanta determinação que pareciam os olhos de uma águia. — Infelizmente, meu baú se perdeu no fogo. Não sobrou nada que eu possa te dar também. Não posso ajudar com nada. Então, só posso dar isto!
Ela o abraçou com força, apertando seu corpo contra o dele. Renato percebeu que ela estava tremendo.
— Volte inteiro, por favor. — Ela sussurrou em seu ouvido.
*
Enquanto descia as escadas, Renato passou no estande de tiros e ficou um tempo encarando as armas nas prateleiras. Não havia mais granadas, o que o deixou um pouco triste; os fuzis eram grandes demais para carregar e não poderiam ser escondidos com facilidade, e isso estragaria o elemento surpresa. Não achou nenhuma pistola. Mas o 38 cromado, brilhante, polido como um espelho, estava lá esperando por ele.
Segurou a arma, sentindo o peso. Suas mãos não tremiam mais. Era inevitável lembrar daquele dia. Engoliu em seco.
— Acha que isso vai ser útil? — perguntou Jéssica.
— As balas são especiais. Clara queria usar contra o Mercenário Possuído. Espero que funcionem num demônio de alto nível.
— Também espero.
Usando um dos celulares descartáveis de emergência que Clara tinha, Renato chamou um motorista de aplicativo. Entrou no carro e foi em direção ao cemitério. Olhou para trás a tempo de ver as duas garotas dando tchau. A noite estava serena; as ruas, quase desertas.
— É aqui mesmo que vai ficar? — O motorista lançou-lhe um olhar desconfiado assim que parou.
— É sim. É aqui mesmo.
Pagou e desceu.
Um grande muro branco, com cerca elétrica no topo, protegia toda a área do cemitério; o portão de entrada, porém, estava aberto. O vento agitava os galhos retorcidos das gigantescas mangueiras que faziam companhia para os túmulos. Pôs o primeiro pé pra dentro do portão.
— Espere, primata!
Lá estava Abigor, no escuro, com os olhos brilhando feito duas tochas flutuantes, em pé ao lado de uma cova aberta.
— Peça licença!
— O quê?
— Licença! Existem forças que protegem os cemitérios, garoto. Peça licensa antes de entrar! Até eu tive que pedir.
Renato deu de ombros.
— Licença! — disse, e entrou.
Na cova aberta, havia um caixão vazio.
— E agora? O que acontece agora?
— Ah, agora você segura isso!
Abigor entregou a Renato um pedaço de fêmur humano quebrado ao meio, de modo que, no local da fratura, se formou uma ponta. Havia um símbolo estranho entalhado na lateral do osso. Renato o pegou e ficou olhando para aquilo, incrédulo.
— É sua passagem para o andar de baixo. Não solte isso, ou pode se perder na Indefinição. Seria horrível para você, sabe?
— Hum. — Renato segurou o pedaço de fêmur com força.
— Ei, não me olhe assim. Não é fresco. Eu peguei de um cadáver no necrotério.
O que o rapaz não sabia, entretanto, era que o fêmur precisava sim ser fresco; e não havia ninguém no necrotério que atendia a todos os critérios da magia. Nessa mesma noite, sumiu um pobre trabalhador que voltava para casa depois de um dia cansativo. Seu corpo nunca seria encontrado.
Abigor se abaixou e pegou um pequeno balde que estava a seus pés.
— Isso aqui dentro é sangue em decomposição. O cheiro não é dos melhores, mas vai servir. Você precisa jogar isso sobre sua cabeça. Precisa se sujar bem. Precisa feder como um defunto ou os ceifeiros podem te detectar. E aí, primata, já era. Se eles descobrirem que você tá tentando descer por vias ilegais, você já era, literalmente.
Renato pegou o balde e analisou o conteúdo. O cheiro forte lembrava carniça. Seu estômago embrulhou e um gosto azedo subiu à garganta. Não vomitou. Vomitar na frente do demônio seria vergonhoso, portanto manteve a compostura.
Abigor se divertia olhando para o rapaz.
— Vamos, primada. Não temos a madrugada toda.
Renato fechou os olhos e jogou o sangue sobre a cabeça. Ficou todo encharcado e com cheiro de morte. Sentiu tontura.
— Agora deite no caixão.
Renato, respirando fundo, desceu ao fundo da cova e se deitou. Não havia motivos para discutir. Ele escolhera isto. Ele queria ir ao inferno.
Abigor cobriu o caixão com a tampa.
— Lembre-se: não solte o pedaço de osso. E seja bem-vindo ao seu próprio funeral!
E então Renato ouviu o estrondo da terra despencando sobre o caixão como uma avalanche. A madeira vibrou, estalou, mas não cedeu. E logo em seguida houve apenas o silêncio. Silêncio e calor. E o fedor do sangue podre que, num local fechado, se concentrava ainda mais, ficava mais intenso. Ele suava. O cabelo molhado de sangue e suor, grudou na pele.
O escuro era impenetrável. Não conseguia ver a própria mão, mesmo passando-a em frente ao rosto. Se perguntou quanto tempo teria que ficar nessa situação. Teve a impressão de ouvir o zumbido de um mosquito. O tornozelo começou a coçar. Ele pegou o celular do bolso com dificuldade, pois estava apertado e os movimentos eram limitados, e ligou a lanterna.
A luz branca quase o cegou.
Finalmente pôde ver com clareza o local onde estava. Se moveu nervosamente, testando quanto espaço tinha: quase nenhum. Os ombros ficavam pressionados contra as paredes. Seus pés e cabeça tocavam a madeira. Estava realmente apertado. Começou a respirar rapidamente e com força. Começou a tremer. Teve a impressão de estar ficando sem ar. Era como se as paredes estivessem ficando menores, se aproximando para um trágico esmagamento. Talvez a madeira da tampa não suportasse o peso da terra e cedesse, e ele fosse terminar esmagado ali mesmo. O ar estava se esvaindo.
Estava ali há trinta minutos e já parecia a eternidade no inferno. Começou a pensar que Abigor havia mentido para ele. Que ele estaria se divertindo lá em cima enquanto o rapaz sufocaria até a morte.
Tentou falar com Arimã, mas não obteve resposta. Mexeu no celular. Pediria ajuda. Não tinha sinal. Nem mesmo a internet estava funcionando.
Sentiu cócegas debaixo do ombro, como se algum inseto movesse as patinhas por sua pele. Passou os dedos, procurando o que poderia ser. Era uma formiga de uns dois centímetros. Ele matou o inseto torcendo para não haver mais.
Tump! Tump! Tump! Começou a bater na tampa do caixão.
— Ei! — gritou. — Seu demônio de merda, me tire daqui!
E continuou a bater na tampa. Fez isso até cansar e parou. E o silêncio voltou a ser o dono do lugar. Estava no caixão há quarenta e cinco minutos.
O calor era insuportável. Era como estar dentro de um forno. Estava úmido e fedido. Coçava por toda a parte. Havia terra dentro, o que começou a incomodar. Ele tentou se ajeitar, mas não obteve muito sucesso devido a falta de espaço.
Renato levou um susto quando viu uma larva do tamanho de um dedo indicador se movendo, lentamente, pela madeira da tampa do caixão, deixando um rastro úmido. Era branca e gorda, com pelinhos por toda a superfície, e tinha olhinhos verdes. Era nojenta.
Renato, instintivamente, pegou o pedaço de fêmur e a atingiu com a ponta, partindo o bicho em dois. As duas metades, ainda se movendo, caíram sobre o peito dele, e ele a afastou para o lado, sentindo um arrepio.
Notou que a ponta no fêmur danificou a madeira do caixão, tirando uma lasca. Engoliu em seco, imaginando o peso de toda aquela terra acima dele. Precisava arriscar. Era melhor do que ficar enterrado para sempre, o que, considerando a quantidade limitada de oxigênio, “para sempre” significaria algumas poucas horas.
Golpeou a madeira, usando a parte afiada no fêmur, tirando mais algumas lascas. Devido ao pouco espaço, ele não podia mover o braço livremente, o que dificultava os consecutivos golpes, mas mesmo assim ele não parou. Deu um jeito e continuou batendo, até que toda a tampa estava rachada. Não demorou e tudo desabou. A terra desceu feroz, como se uma barragem tivesse sido estourada, pressionando seu peito, asfixiando-o.
Reuniu a força remanescente que tinha e afundou o braço em toda aquela terra, em direção ao céu, abrindo caminho com o pedaço de fêmur, e puxou. Meteu o outro braço. Começou a escalar, se movendo lentamente, como um verme subterrâneo subindo à superfície. A terra entrava em seus olhos, boca, roçava em sua garganta. Ele cuspia, para tirar o gosto da língua, e continuava subindo, se erguendo da sepultura. Um zumbi subindo ao inferno.
Finalmente furou a superfície com aquele osso perigosamente afiado, e o braço veio junto, e logo depois do braço, o rapaz. Se ergueu da terra, como se o próprio planeta o vomitasse. Estava imundo, fedendo a cadáver. Inspirou o ar fresco com cheiro de ovo podre e enxofre. Os olhos ardiam, queimavam, como se o ar fosse ácido.
Parado, ao lado dele, bebericando um copo de uísque, estava Abigor.
— Até que enfim! — disse o demônio. — Achei que não fosse sair.
— Você me abandonou lá dentro! Eu ia morrer! Você mentiu! Nada aconteceu! Eu só fiquei lá enterrado!
— Olhe em volta, primata.
Foi quando ele correu os olhos pela primeira vez e ficou chocado com a visão. O cemitério era muito maior do que ele se lembrava, se esparramando infinitamente pela terra e sumindo no horizonte. O fogo-fátuo se erguia do chão como pilastras brilhantes. E o céu tinha uma coloração diferente. Era algo entre o lilás e o vermelho. A lua, diferente de antes, estava cheia e tingida de vermelho, e parecia maior, mais próxima.
— Cuidado com os Carniceiros — disse Abigor, antes de tomar um gole de seu uísque.
— Hã? Carni…
Renato não teve tempo de perguntar do que se tratava. Uma ave, parecida com um urubu gigantesco, porém com características de uma ave de rapina, com garras e bico curvado do tamanho da mão de um homem, voou sobre ele, prendendo as poderosas garras em seus ombros, e levantou voo, carregando-o para longe, como uma coruja faria com um pobre ratinho capturado.
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