Capítulo 25: O Palácio
Renato se debatia desesperadamente, tentando se livrar das garras do pássaro gigante, que lhe devolvia o favor com terríveis bicadas consecutivas. O bicho grasnava e se balançava no ar, carregando Renato, indo cada vez mais alto.
Abaixo dele, o cemitério parecia uma maquete distante, cercada por morros.
Renato levou a mão ao coldre na cintura e puxou o trinta e oito. Apontou a arma para a cabeça do bicho e atirou. O estampido ecoou pelos montes. O bico da ave carniceira foi arrancada da cabeça. As garras soltaram Renato e os dois começaram a cair, girando feito um pião, em direção às sepulturas.
As mãos de Abigor pegaram Renato em plena queda livre, e seguraram firme. O demônio estava ali, com as grandes asas negras batendo fortemente, deslocando uma quantidade incrível de ar. Era majestoso.
— Foi um bom tiro, primata.
Renato não respondeu. Abigor voou na direção oposta a da lua, trazendo Renato consigo. Às vezes o voo era como um mar calmo, e eles deslizavam no ar, planando; outras vezes era tempestade, com Abigor batendo as asas de forma frenética, se movimentando de um jeito que Renato achava não fazer sentido. Por vezes pensou que cairiam, mas sempre estavam lá, estáveis no ar.
— Para onde estamos indo?
— Para o Grande Palácio. Terá uma honra sem par, garoto primata, e tudo graças a mim. Pode me agradecer depois.
— Palácio? Você já falou desse palácio antes, mas não explicou que palácio é esse.
— É o palácio de Lúcifer, óbvio. É lá onde estão todos os demônios do alto escalão que ainda habitam o inferno. É uma festa em honra à pequena Angélica. Ela é de fato angelical e uma fofa, sabia? E tem uma aura terrível; mais alguns milênios e ela pode trazer muito caos ao mundo dos humanos. — Abigor sorriu de um jeito bobo. — Eu tô tentando me tornar padrinho dela, mas Bael, ele… ele já pôs aquelas mãos nojentas na mais velha e tá tentando ganhar essa também.
Abigor falava, divagando, mais para si mesmo, de muitas coisas que o garoto não entendia. Renato começou a ficar preocupado quanto ao destino desta viagem.
— Fica tranquilo, humano. A galera lá é civilizada. Os demônios de alto nível tiraram os humanos da dieta há milênios. Embora incidentes aconteçam volta e meia.
— Como assim “incidentes”?
— Mas é melhor ficar longe da plebe, sabe? Os demônios de baixo nível não são tão civilizados assim e podem tentar fazer churrasco de Homo Sapiens na primeira oportunidade.
— Peraí, agora eu fiquei ainda mais preocupado! Existe risco de canibalismo?
Abigor riu.
— Não é canibalismo, ora. Somos de espécies diferentes. Tá mais para predação mesmo.
— Ah, ótimo! Então assim, sim!
— Vamos!
E Abigor bateu com força as asas.
Assim que saíram do território do cemitério, o que demorou uma eternidade, sobrevoaram uma floresta de árvores enormes, que deveriam ter, Renato chutou, mais de cem metros de altura. Abigor, num rasante, roçou suas asas nas folhas, se divertindo com o vento na cara, e gargalhava.
— Se eu te soltasse aqui, garoto, você não duraria dois segundos. Aqui na Floresta Perdida existem bestas que comem até mesmo demônios. Um primatinha franzino da terra não passaria de um mingau para os filhotes.
— Acho que estamos voando baixo demais!
Assim que a floresta terminou, a lâmina dourada de um deserto cheio de dunas tomou a paisagem de forma repentina. Renato se perguntou se isso seria geologicamente possível.
Mais algumas horas de voo, e o deserto terminou, e surgiram vales e campos, com rios e montanhas, e vegetação baixa. Havia alguns castelos aqui e ali.
— Quantos tipos de… de clima… de vegetação vocês têm aqui?
— Só dois tipos: os naturais e os criados com magia.
— Saquei. É que eu achei que as coisas por aqui fossem mais…
— Mais?
— Mais do tipo fogo e ranger de dentes, entende?
Abigor riu e deu de ombros.
— Antigamente isso aqui era… um pouco diferente. Antes da Grande Guerra, quero dizer. O fogo eterno brotava das pedras, da areia, do céu, consumia tudo. Acontece que viver num lugar assim não era muito agradável e, bom, nós terraformamos o inferno. Deixamos o clima mais ameno, se é que me entende. Mas ainda há lugares à moda antiga aqui embaixo. Não recomendo que visite.
Para surpresa de Renato, a paisagem subsequente foi bastante familiar, parecida com uma cidade da terra, com ruas, casas, prédios, pessoas (ou não) andando pelas ruas e, logo depois, ele viu aquela gigantesca estrutura brilhante a muitos quilômetros de distância, cercada por muros altos, com torres que se erguiam às alturas, quase tocando a lua. Um castelo ao estilo medieval, porém de proporções estratosféricas.
Abigor pousou em frente aos portões, que tinham formato de arco e eram altos o bastante para passar um braquiossauro com folga de espaço. No alto dos muros, nas ameias, soldados estavam posicionados portanto armas estranhas. Alguns tinham chifres dos mais variados formatos, retos, retorcidos, em espiral subindo da cabeça ou no centro da testa. Outros tinham a pele verde e escamosa, e olhos em formato de fenda, como os olhos de uma serpente.
— Aqui, pegue isso e guarde junto ao seu corpo.
O demônio, que a esta hora já havia recolhido as asas, entregou uma pedrinha a Renato. Era apenas um pouco maior que um grão de areia e tinha brilho dourado.
— O que é?
— Ouro hiperdecaído. Se perder, eu mesmo te fatio e dou para os dragões comerem.
Renato olhou para a pedrinha com assombro, prendendo-a entre os dedos.
— A Clara me disse que é extremamente raro, do tipo só existir alguns gramas na Via Láctea. Por que tá me dando?
Abigor sorriu.
— A Clara não sabe que eu o tenho. E isso veio de Andrômeda. Estou te emprestando porque sem isso, você morreria no primeiro ataque mágico de Satanakia e aí tudo o que fizemos teria sido em vão. E eu quero ver uma briga no mínimo interessante. Se você for morrer, que seja de uma forma legal, dando um pouquinho de trabalho, não acha? Além do mais, acredite em mim, a magia que o Satanakia mais usa para matar humanos é uma que faz toda a água dos seus corpos evaporar e o primata seca até a morte. Não vai querer morrer assim. Guarde bem esta pepita. Sinceramente, eu recomendo que engula.
Renato pôs a pepita na boca e, juntando o máximo de saliva que conseguiu, engoliu.
— Ah, e você não pode entrar assim. Tá parecendo um mendigo.
Abigor estalou os dedos e Renato foi envolto por um brilho azulado. Logo, toda sua roupa foi desaparecendo e um belo terno branco surgiu no lugar.
— Ótimo. Tudo pronto. Agora tá na hora da deliciosa violência desenfreada!
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