Índice de Capítulo

    O palácio era tão grande e luxuoso por dentro quanto era por fora, com lustres de cristal, pinturas enfeitando as paredes dos largos corredores, e janelas que mostravam toda a beleza da paisagem em volta.

    Empregados iam e viam num fluxo ininterrupto, trazendo bandejas de comidas e bebidas.

    Um dos empregados passou por eles, puxando uma corda presa a uma coleira metálica que circundava o pescoço de uma garota com orelhas de gato. Ele lançou um olhar desconfiado para Renato e seguiu seu caminho. A garota-gato olhava para baixo o tempo todo e não ousou levantar os olhos. Parecia machucada.

    — A-aquilo era… — O garoto não encontrava as palavras certas.

    — É um dos funcionários do castelo.

    — Não! A garota! Ela tinha… na cabeça… eram…

    — Ah, sim, a demi-humana. É uma escrava.

    Renato franziu o cenho com raiva.

    — O que foi, primata? Escravidão não é comum no seu mundo?

    — Não! Pelo menos não mais!

    Abigor riu.

    — No seu país, a escravidão era legalizada há pouco mais de cem anos. E se engana se acha que a escravidão acabou só porque ficou ilegal. Até hoje ela existe no seu país, garoto primata. E ainda existem países em que ela é tão comum quanto beber água. Não julgue a cultura daqui debaixo. A sua não é muito melhor.

    — Mas — Renato apertou os punhos — ela está tão machucada!

    — É só uma demi-humana. São inferiores. Não se preocupe com ela. Além do mais, procure não chamar atenção.

    Renato olhou para trás e não viu mais a garota-gato e nem o empregado puxando-a pela coleira.

    Ele baixou os ombros. “Estou aqui pela Clara” pensou.

    Durante todo o percurso, havia demônios armados com espadas que Abigor explicou serem os guardas, ou soldados demoníacos.

    Abigor o guiou pelos corredores, subiram algumas escadas, pegaram um elevador e chegaram a um salão enorme onde acontecia um tipo de confraternização. Os demônios comiam, bebiam, conversavam e riam. Eram dos mais variados tamanhos e formatos, alguns com chifres, outros com escamas; um sujeito esquisito, sozinho num dos cantos, tinha quatro braços e a pele completamente vermelha, e da boca se projetavam dois dentes inferiores grandes o suficientes para quase tocarem no nariz. Ele mastigava alguma coisa com bastante vontade.

    Havia um local mais elevado, junto a uma das paredes, e duas grandes cadeiras que só podiam ser tronos. No trono mais baixo, uma garotinha que aparentava ter algo entre 8 ou 9 anos, cabelos loiros brilhantes divididos em grandes marias-chiquinhas, mirava, entediada, seus belos olhos dourados para a festividade a sua volta.

    Ao lado dela, em um trono um pouco mais elevado, estava uma garota que, pela aparência, era adolescente, na faixa dos 16 anos, cabelos vermelhos ondulados e olhos azuis-escuros, como o fundo sem luz de um lago cristalino. Sua atenção estava toda voltada para o livro que folheava. Renato não conseguiu ler o título, mas pôde ver um lobisomem na capa.

    — A menorzinha é a Angélica que te falei mais cedo. Uma graça, não acha?

    Mas Renato tinha voltado sua atenção para outra coisa. Próximo a um dos cantos, rodeado por vários demônios, havia uma jaula quadrada, toda feita em barras de metal com símbolos entalhados, e presa lá dentro estava Clara Lilithu olhando diretamente para ele sem acreditar nos próprios olhos. Ela o encarava como se visse um tipo de aparição, piscava os olhos e enrugava a testa. Estava completamente assombrada.

    E ao lado,  um demônio de olhos verdes e cabelos pretos, vestindo um terno verde clarinho, descansava um braço sobre a jaula e, com o outro braço, segurava uma taça de bebida fluorescente. Estava de peito estufado e olhar soberbo, falando alguma coisa para os demônios em volta que olhavam para ele com admiração e depois para Clara com cobiça ou desprezo. Estava contando vantagem.

    — Ah, aquele é…

    — Satanakia! — Renato interrompeu a fala de Abigor com um grito que ecoou pelo salão.

    O silêncio tomou o local e todos olharam para ele. Até a garota no trono desviou o olhar do livro e Angélica pareceu menos entediada.

    — Satanakia! — gritou Renato mais uma vez. — Eu vim buscar Clara Lilithu!

    — Ótimo! Para que um plano, né? — Abigor bateu no ombro dele. — Chegar chamando atenção de todo mundo é eficaz também.

    Satanakia se aproximou e olhou para Renato com nojo.

    — Quem é o dono desse escravo? Aliás, isto é um humano? — ele riu — Os cozinheiros deixaram-te escapar?

    — Eu vim para lutar com você!

    O silêncio no local foi cortado por muitas gargalhadas.

    — Está vendo, Satanakia?! Ele veio lutar com você! — disse um, enquanto ria alto.

    — Enfrente o humano, Satanakia! ah! ah! ah! — disse outro.

    — Ele quer te enfrentar!

    Todas as vozes viam em tom de deboche e muita zombaria.

    — Francamente, como ele ainda está vivo? Ele não deveria se desintegrar só de estar no mesmo lugar que a gente? — Alguém levantou essa dúvida.

    — O que é aquele ser, Baalat? — perguntou Angélica para sua irmã mais velha.

    Baalat fechou o livro em seu colo e olhou para a irmãzinha.

    — É um ser humano.

    — Ser humano?! Tipo… tipo um daqueles macacos de barro? — Angélica parecia incrédula.

    — Chamá-lo assim pode ofendê-lo, mas sim, um daqueles macacos de barro.

    — Você já viu algum exemplar desta espécie antes, Baalat?

    — Já sim.

    — Eles são fortes?

    — Não mesmo. Seriam facilmente comidos por um Caracol Pescador da Floresta Perdida. Com algumas exceções, é claro.

    — Ele é meio fofo. Poderia dar um bom bichinho de estimação. O que acha? Quanto tempo eles vivem?

    Baalat sorriu.

    —Você, pelo visto, herdou de mim o interesse por essa espécie, Angélica. Mas infelizmente eles vivem pouco. Apenas algumas…

    — Só algumas centenas de anos? — Ela pareceu preocupada.

    — Dezenas. Passar dos setenta anos é quase um milagre para esta espécie, Angélica.

    — O quê?! — A garotinha ficou em choque. — Existem seres que vivem tão pouco? Isso não é nada! É menos que uma mosca da Floresta Perdida! É quase como não existir!

    — É.

    — E por que ele tá aqui?

    — Ele acabou de falar — Baalat riu. — Ele quer enfrentar Satanakia.

    — Acha que tem chance?

    — Não.

    — Estou torcendo por ele!

    Satanakia se aproximou de Renato e farejou.

    — O seu cheiro estava na minha Clara. Por quê?

    — Advinha!

    Satanakia deu de ombros.

    — Alguém tira esse lixo daqui. Respirar o mesmo ar que humanos faz mal para a saúde.

    — Já disse que estou aqui para te enfrentar! Vim buscar Clara Lilithu! Devolva-me ela por bem ou eu a tomarei por mal!

    O demônio respirou fundo.

    — E eu por acaso sou dedetizador para sair matando insetos? Lutar com você seria vergonhoso. Já é vergonhoso eu falar com você.

    — Eu endosso o pedido de luta! — disse Abigor. — Vamos tornar essa festividade mais interessante.

    Angélica sorriu.

    — Eu também endosso!

    — Eu também — disse Baalat. — Nada como um assassinato de humanos para animar uma festa! E depois, bom, desperdiçar comida seria errado, então…

    — Vamos lá, Satanakia — disse Abigor. — Enfrente o primata, ou será que você está com medo?

    Satanakia fez uma expressão azeda e depois sorriu, resignado.

    — Tudo bem, mas não vai ser uma luta; vai ser um massacre. E será pelo entretenimento de vocês. Então, por favor, chamem pelo nome correto.

    — Ok. Que comece o massacre. — Abigor ergueu a taça de absinto que pegara da bandeja de um dos empregados.

    Clara permanecia com os olhos arregalados, em choque, sem entender o que estava acontecendo e nem como as coisas chegaram a tal ponto. Segurava com força as barras de ferro de sua jaula e engolia em seco. Só tinha uma certeza: veria Renato ser morto ali mesmo. E Abigor também teria culpa. Ficou surpresa ao perceber que isso a entristecia. Balançou a cabeça e sussurrou:

    — Foge!

    Satanakia desenhou no ar com o indicador, e um símbolo feito de luz apareceu flutuando dentro de um círculo mágico.

    — Isso vai acabar rapidinho.

    Renato sentiu uma pontada no estômago  e os lábios pareceram mais ressecados. Sentiu sede e até um pouco de tontura. A cabeça latejou.

    Satanakia franziu o cenho.

    — Mas como?

    — O que foi? — disse Abigor, faceiro. — Algo errado com sua magia?

    — Ah, mas que humano irritante! — Satanakia, num movimento tão rápido que foi como se desaparecesse, reduziu toda a distância entre ele e Renato, o segurou pelo pescoço e o jogou contra a parede. Abriu as duas asas negras e ergueu Renato até o teto. Fechou o punho e preparou para acertar o soco.

    Renato rapidamente meteu a mão no bolso e puxou o vidrinho com água benta e, com ele preso à mão, atingiu um tapa no rosto do demônio com a mão semiaberta, fazendo o vidro se quebrar, e a água molhou todo o rosto de Satanakia. O demônio rugiu de dor e soltou Renato, e ambos despencaram com força sobre o chão. Uma fumaça negra e fedida saiu da pele atingida pela água e o som foi parecido com bife fritando em óleo quente.

    Satanakia estava se levantando, ainda meio tonto, com a pele do rosto derretida feito cera escorrendo, e rugiu de ódio, e se lançou em direção a Renato. O garoto puxou o trinta e oito e descarregou todas as balas na direção do demônio. Duas atingiram o rosto; uma atravessou o pescoço e três se alojaram no peito. O bicho caiu no chão se contorcendo.

    Renato largou a arma sem balas e pegou o rosário. Envolveu o cordão no pescoço de Satanakia e apertou. Estava enforcando-o. Jogou todo o peso do corpo contra o demônio. Apertava o rosário com toda a força que tinha, mas para seu desespero, os ferimentos de Satanakia estavam desaparecendo. As fibras musculares se entrelaçavam, a pele se fechava como mágica e o sangue evaporava numa fumaça escura.

    Foi quando viu aquelas duas bolas amarelas encarando-o, com raiva. Os olhos do demônio eram assustadores. Era como ver a morte por detrás de um vidro translúcido. O rosário explodiu em chamas. Satanakia segurou Renato e o jogou para o alto; saltou e atingiu um chute poderoso nas costelas do garoto em pleno ar. A força do impacto fez Renato colidir contra uma parede antes de bater no chão.

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