Capítulo 27: Desespero
Estava tudo escuro e frio. Renato ouvia risos distantes. Uma dor absurda brotava de suas costelas, como pontadas, como facas entrando e saindo. Sentiu o chão gelado e liso na sua testa. A sensação era a de estar girando, como se um redemoinho no vazio o sugasse lentamente para debaixo da terra. Se lembrou de uma vez em que teve coma alcoólico e a sensação foi parecida.
O gosto metálico de sangue e o amargor de vômito subiu à boca. Ele engoliu de volta. “Como pode esse desgraçado ser tão forte?” pensou. “Isso doeu pra caralho!”
Cuspiu o gosto ruim da boca e pressionou o punho fechado contra o piso, fazendo força para se levantar.
Satanakia observou, incrédulo.
Renato conseguiu se pôr de pé com dificuldade. As pernas ainda vacilavam e a visão estava um pouco embaçada. A dor nas costelas não tinha melhorado nem um pouco.
Ele ficou em posição de luta, fechando os dois punhos diante de si, e olhou para Satanakia em desafio, enquanto um filete de sangue descia pelo queixo.
— Eu vou te deitar na porrada, seu demônio de merda!
Satanakia não gostou das risadinhas e cochichos dos outros demônios. Estavam menosprezando-o. E esse humano, teimando em se levantar depois de tomar um golpe dele, era o culpado. Cerrou os dentes, com raiva.
— Vou te torturar até o fim dos tempos.
Numa fração de segundos, o demônio estava segurando Renato pelo pescoço novamente. O garoto desferia socos e chutes, grasnava, gritava, urrava, dando cotoveladas e joelhadas, mas Satanakia nem sentia, nem se movia.
— Que foi? — disse, com um sorriso. — Você não ia me deitar no soco? Tá meio difícil respirar, não tá? É agora que você entra em desespero.
Escapar daquele aperto era impossível. Bater nele era como bater num muro de concreto. Mas havia uma parte do corpo que parecia mais frágil. Era a que mais dava medo e, no entanto, estava tão exposta. E os dois dedos de Renato, em formato de V, perfuraram e afundaram nos dois olhos de Satanakia. Uma gosma branca e vermelha escorreu.
Satanakia se afastou, gritando muito alto. Renato aproveitou para tomar distância e, com o impulso, atingir um chute violento com a sola do pé no peito do demônio, que caiu sobre um dos joelhos, tossindo e gemendo.
Não dando tempo para Satanakia se recuperar do ataque, Renato caiu sobre ele com uma tempestade de socos e chutes, batendo de forma frenética, procurando as partes mais vulneráveis daquele corpo feito de concreto. Seu punho começou a doer. A respiração era acelerada e sem ritmo.
Satanakia segurava o impacto com o próprio corpo, embora demonstrasse dor, ainda parecia indestrutível.
O demônio, com movimentos rápidos dos dedos, evocou um pequeno círculo mágico brilhante no ar, e então todo seu corpo brilhou com faíscas e ele atingiu um soco certeiro no estômago de Renato. O rapaz foi atingido por uma descarga elétrica potente, foi como ser atravessado por um fio de alta tensão. Uma explosão retumbou pelo salão de festa e o corpo de Renato voou vários metros até bater contra uma parede e cair no chão.
No rosto de Satanakia, estavam as duas órbitas vazias cheias de gosma no lugar dos olhos. Farejou o ar.
— Não posso te ver ainda, mas seu cheiro podre de humano é como um holofote na escuridão.
Correu até Renato e chutou suas costelas como um jogador chutaria uma bola. O rapaz girou no ar e rolou para longe, ainda sem esboçar qualquer reação. Dessa vez tinha certeza que tinha quebrado umas duas costelas, no mínimo. Às vezes sentia dor, latejando, pulsando, mas na maior parte do tempo tudo estava apenas dormente. Tentou respirar, mas não conseguiu, apenas engasgou no sangue obstruindo sua garganta. Foi quando vomitou, e parecia que botaria para fora todos os órgãos internos; e gritou, não de dor, mas de ódio.
Satanakia o atingiu novamente com outro chute violento. Dessa vez, a ponta do pé afundou no estômago e ergueu Renato no ar. Ele quase tocou o teto, antes de bater contra o chão mais uma vez. Não havia quase mais nenhum resquício de vida nele. Era um corpo moribundo, coberto de hematomas, sangrando, respirando fracamente. O coração perdia força e parecia querer se desligar.
— Espero que tenham aproveitado o entretenimento — disse Satanakia, dirigindo suas órbitas vazias para os demais demônios. — Guardas! Levem este monte de lixo para os demônios de baixo nível. Deixem que eles se fartem! A carne já foi muito bem amaciada.
Renato estava imerso na escuridão. Tinha sono. Estava cansado. Queria dormir. Mas sabia o que dormir significava: estava morrendo.
— Esperem! — disse Abigor, detendo os soldados.
Clara, que deixara uma única lágrima escorrer de um dos olhos, olhou para Abigor enquanto sussurrava repetidamente:
— Salva ele! Salva ele! Por favor… salva ele!
Abigor fingiu nem vê-la, da mesma forma que fingia não ver os escravos. Ele foi até Renato e se abaixou. Olhou, com frieza, o estado deplorável em que o rapaz estava.
— Isso foi decepcionante. Eu esperava mais do condutor de Arimã.
Então o braço de Abigor começou a ressecar, ficando mais fino, e a mão também diminuía, atrofiando-se até o tamanho de uma mão de criança. Ficou ali, com um braço normal e um atrofiado. Pôs a mão ressequida na boca de Renato e a fez deslizar pela garganta. O garoto engasgava. Achou que a carne de seu pescoço explodiria de dentro para fora. Tentou morder, mas não teve forças.
Abigor afundou o braço até o cotovelo, até o ponto em que sentiu o ácido gástrico do estômago corroendo-lhe a ponta dos dedos. Não foi difícil encontrar o que procurava, com seus dedos ávidos e cheios de energia hermética. O pequeno objeto repelia a magia, como o pólo norte magnético de um ímã repelindo o pólo norte de outro. Pegou a pequena pepita de ouro hiperdecaído e puxou o braço de volta. Nessa hora, todo o braço voltou ao normal, desatrofiando.
Pôs a pepita no bolso.
— Abigor, então foi por isso?! Você ajudou ele com isso? — disse Satanakia, entredentes, mirando suas órbitas vazias cheias de raiva.
— Foi — deu de ombros. — Uma pequena interferência pelo bem do entretenimento e de um bom conflito. Guardas, agora sim já podem levar o primata para os de baixa casta comerem!
A consciência de Renato era um fiapo, oscilando entre a morte e a vida, presa no escuro com alguns lampejos de luz. Nos intervalos de consciência entre os vários apagões, podia sentir raiva, medo, desesperança. “Mas que merda!” pensou, “acho que é o fim”.
Foi nessa hora que um calor aconchegante o envolveu. Era agradável, carinhoso como um abraço de amor e revigorante. Até a dor tinha ido embora. “Então é assim que a morte se parece?” Sorriria se tivesse forças para mover os lábios. “É mais gentil do que a vida inteira jamais foi”.
“Amor é fogo que arde sem se ver…”
E então seus olhos se abriram lentamente e ele viu a luz. Era avermelhada, com tons escuros, como se estivesse misturada à escuridão.
O que tinha acontecido alguns instantes antes foi o seguinte: Clara, ajoelhada em sua gaiola, enquanto segurava as barras de ferro, tentando forçá-las ao limite, porém sem sucesso, teve que ver Renato ser ferido de várias maneiras e, por algum motivo, isso a machucava também. Estava desesperada, louca para fazer algo. E teve uma ideia.
Afastou-se daquelas barras frias e apontou uma das mãos para Renato, e canalizou toda a magia que ainda tinha dentro de si, e enfiou a outra mão dentro da calcinha, e com os dedos, começou a fazer movimentos pervertidos, explorando seu corpo para provocar o prazer, tocando os lábios, o interior, acariciando o pequeno botão de rosa. Ela sabia como fazê-lo, afinal, era uma súcubo. Seus dedos foram completamente envolvidos na umidade que escorreu das áreas mais doces que tinha.
E a magia se acumulou e explodiu como orgasmo, e ela a atirou toda em Renato através do círculo mágico brilhante que fez surgir embaixo dele.
Foi essa luz que ele viu. O coração voltou ao ritmo normal, a visão desembaçou, o escuro sumiu e ele viu toda a sala ao redor, e notou o mais absoluto espanto que se formava no rosto de todos aqueles demônios enquanto ele se erguia do chão mais uma vez. Se espreguiçou, estalando as juntas. Respirou fundo, enchendo os pulmões de ar. Estava cheio de energia.
Olhou diretamente para Clara e lhe devolveu o sorriso. Ela moveu os lábios, lentamente, quase sem som, mas ele entendeu:
— Me beija — disse ela.
Renato não hesitou. Os guardas, após se recuperarem do susto, tentaram agarrá-lo, mas o rapaz passou pelo meio deles sem a menor dificuldade, evitando suas espadas, e correu em direção à súcubo.
Alcançou a gaiola e ambos se uniram num beijo. Separados pelas frias barras de ferro; aquilo que os unia era o calor dos próprios corpos. E o beijo foi viscoso e molhado, com as mãos dele percorrendo as curvas do corpo dela; e ela gemeu de prazer e êxtase.
Se afastaram por um segundo e Clara tirou a mão da calcinha, e pôs os dedos molhados dentro da boca de Renato. Ele sentiu o gosto do mel dela e o poder dele cresceu de forma descontrolada.
— Se amor é fogo, então tesão é o próprio inferno — disse ela.
Renato estava em transe, dominado pelo desejo e por um poder imensurável que brotava de dentro dele. Percebeu a lâmina vindo em direção ao seu pescoço, ouviu-a tinindo enquanto deslizava pelo ar, e desviou com facilidade. A lâmina bateu na gaiola, fazendo-a vibrar, e o soldado demoníaco, surpreso por ter errado o golpe, urrou de raiva, e as mãos de Satanakia agarraram-no pela nuca e o jogaram para longe. O guarda caiu, atônito e ferido.
— Está louco? — gritou Satanakia — Quer ferir minha escrava? Se ferisse-a, guarda, quem seria dado para os de baixo nível comerem serias tu!
E então voltou as órbitas vazias para Clara e sorriu de uma forma esquisita, parecendo meio triste.
— Das vadias, milady, vós sois a rainha!
Todos acharam que seria Satanakia a dar o primeiro soco, mas quem o fez foi Renato, partindo para cima com fúria, desferindo vários golpes, dos quais Satanakia desviava ou bloqueava; porém, os ataques vinham em tal intensidade que o demônio não encontrava uma abertura para contra-atacar.
Ele se afastou, ganhando distância, e fez surgir o círculo mágico no punho, e avançou contra Renato. O garoto parou seu soco com os dois braços. Os joelhos, quase não suportando o impacto, estalaram. O choque elétrico percorreu seu corpo e toda a pele formigou, mas Renato não desfez a guarda e, devido ao espanto de Satanakia, ele aproveitou a abertura e saltou, metendo o pé no peito do demônio. Satanakia foi empurrado para trás por quase um metro, porém manteve-se de pé e não desmanchou a pose de luta.
Clara observava de olhos arregalados.
— Estão lutando em pé de igualdade?
— Não — respondeu Abigor, se aproximando da gaiola. — Renato está mais forte.
— Mais forte? Mas… mas como isso pode ser possível?
— Você sabe muito bem como. O poder de Renato não vem desse universo, gatinha. Teoricamente, teria poder o suficiente para destruir toda a criação. A única fraqueza dele, ironicamente, é ele mesmo. O frágil corpo humano, com quase nada de energia hermética, não consegue canalizar e nem manipular tanto poder. É um verdadeiro desperdício.
— Mas, então…
— Você diminuiu esse desperdício, Clarinha… digo, Milady — Abigor lançou um sorriso provocador. — Ao encher o primata de energia hermética proveniente de sua própria libido, súcubo, você permitiu que ele usufruísse de uma porcentagem maior do próprio anti-poder que flui através dele.
Renato explodiu um soco na boca de Satanakia, e o demônio cambaleou com tontura, e o gosto de sangue tocou sua língua, e ele sentiu que havia quebrado um dente. Pela primeira vez, percebeu que poderia perder a luta.
— Eu sabia que isso ajudaria, mas não achava que seria… que ele ficaria tão forte — retrucou Clara.
— É de arrepiar, não é? — disse Abigor, sem desviar os olhos da luta. — O equilíbrio que nós estivemos acostumados por milênios parece tão perto de se romper.
— Você tá feliz com isso? — Ela parecia assustada.
— E você não?
Satanakia abriu as asas e subiu ao alto, apontou os braços em direção a Renato e evocou dois círculos mágicos nas palmas das mãos.
— Essa não! — disse Clara, apreensiva.
Dos círculos mágicos saíram feixes de luz. Renato se desviou dos primeiros, e assim que eles atingiram o chão, fizeram as pedras do piso se espatifarem como cacos de vidro, e estilhaços voaram ao alto. Foi como a explosão das granadas.
— Morre, desgraçado! — berrou Satanakia, e fez uma infinidade de feixes de luz explosivos caírem sobre Renato como chuva.
O garoto desviava como podia, por instinto, sem ver direito os ataques. O chão se rompia embaixo dele. Os estilhaços, quentes, eram como projéteis atingindo-o. A poeira e fumaça cobriram-no como nuvem.
Ao invés de ficar apenas se esquivando, correu em direção a Satanakia, evitando os feixes de luz, e assim que ficou bem perto, saltou, pondo toda a força nas pernas e, sem nem mesmo notar como fez, canalizou magia para os pés. O resultado foi um salto sobre-humano. Ele agarrou Satanakia em pleno ar e encaixou uma sequência de socos na cara dele.
O demônio se debatia, atacava a esmo, mandava seus feixes de luz mortais para todos os lados; e continuava a receber socos na cara.
Renato se posicionou atrás de Satanakia, prendendo o demônio num mata leão. As asas do demônio bateram com força, atingindo Renato, quase derrubando-o.
Foi quando Renato segurou uma das asas, e apoiando os joelhos nas costas de Satanakia, puxou. O demônio se debatia, urrava, tentava atingir Renato com os raios de luz; e Renato puxava sua asa, até perceber a carne das costas de Satanakia se rasgando. Eles começaram a cair descontroladamente, girando no ar. Quando caíram, Renato se ergueu, trazendo em suas mãos uma asa negra como a de morcego, que arrancara das costas de Satanakia.
O demônio estava inconsciente no chão, com uma única asa, enquanto o sangue vermelho vivo fluía de suas costas e formava uma poça.
O silêncio foi sepulcral. Ninguém ali esperava um resultado desses.
— Eu falei! Eu falei que ia te deitar na porrada, seu demônio de merda! — disse ele, e cuspiu no chão.
Então uma dor excruciante atingiu o peito de Renato e algo prateado brilhou nos seus olhos. Pôs a mão no local da dor, e tocou a lâmina gelada da espada que o havia atravessado.
— Não menospreze os demônios, humano! — disse o guarda, enquanto girava a espada para causar mais dano.
O mundo girou e Renato caiu sobre o próprio sangue.
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