Capítulo 29: Lenha na Fogueira
Um dos soldados, aquele que parecia o líder, que tinha um único chifre se projetando de sua testa e se retorcendo por quase 30 centímetros, ficou diante da porta e, esticando seu dedo indicador, desenhou sobre a madeira, e um círculo mágico brilhou, e as portas estalaram e se abriram, revelando um salão enorme, iluminado e decorado de forma que nem parecia parte do castelo. As pedras do chão foram substituídas por azulejos brancos com detalhes dourados, e as das paredes haviam sido trocados pela mais mundana das tintas de interiores. Era bonito; e o ar era fresco, lembrando ar-condicionado.
No centro do salão, havia uma mesa redonda, e demônios estavam sentados em volta dela. Duas cadeiras eram muito maiores que as demais: uma ocupada por Baalat, com seus olhos azuis inexpressivos; e ao seu lado, com um sorriso lindo, olhos dourados e cabelos loiros divididos em marias-chiquinhas, estava Angélica.
A primeira, mais velha, aparentava por volta de 16 anos; e a menor, cerca de 8 ou 9; mas Renato não se deixou enganar. Sabia que eram muito mais velhas do que isso. Talvez, milhares de anos mais velhas.
Renato também reconheceu a garota demi-humana, com orelhinhas de gato na cabeça. Estavam caídas, com o semblante de um gato triste. Ela estava em pé, parada atrás de um demônio que seria confundido facilmente com um executivo humano, se não fosse pelo cheiro podre de enxofre e morte que exalava dele. Renato reparou no terno e no relógio, e pensou que com certeza seriam caros, e também que o demônio tinha um certo ar de superioridade.
Assim que Renato entrou no salão, a demi-humana ergueu seus olhos rapidamente e olhou diretamente para ele, mas logo abaixou o olhar. Foram apenas poucos segundos, mas foi o suficiente para Renato perceber que os olhos dela eram fendados, brilhantes e tinham a cor do cobre. Também notou o hematoma roxo embaixo de um dos olhos e o corte no lábio inferior.
Abigor também estava lá, com um sorriso discreto no canto da boca, enquanto segurava uma taça de vinho entre os dedos.
Havia alguns outros rostos desconhecidos em outras cadeiras e vários empregados e soldados demoníacos em volta, olhando de canto de olho, cochichando e estufando o peito.
— Sente-se, senhor humano! — Angélica foi a primeira a falar. Sua voz era aguda, como a de uma criança deveria ser. — E súcubo, pode se sentar ao lado dele também! — completou, apontando para duas cadeiras vazias à mesa.
— Obrigada, senhorita Angélica — disse Clara, e puxou Renato pelo braço em direção às cadeiras.
Angélica assentiu, satisfeita.
Um silêncio desconfortável perdurou por alguns segundos, até que o executivo com cheiro de enxofre pigarreou, limpando a garganta, e disse:
— Eu não pude acreditar nos meus ouvidos quando me contaram e agora acredito menos ainda. Esse Homo Sapiens derrotou Satanakia?
— É, mas Satanakia o subestimou — respondeu Abigor, e logo em seguida bebeu um gole de seu vinho.
— É claro que subestimou. Qualquer um aqui o subestimaria. Eu o subestimo! Ou melhor: reconheço que esse monte de carne, sangue e ossos não podem fazer nada além de morrer. E então, humano, acha que me derrotaria numa luta?
Renato não soube o que responder diante do olhar penetrante do demônio. Procurou por palavras que não provocassem mais briga, mas que também não o fizesse parecer submisso ou com medo. Não encontrou. Antes, porém, de falar qualquer coisa, Angélica bateu as duas mãos na mesa com força.
— O senhor humano venceu porque ele é incrível, Belfegor! E o Satanakia não é nada incrível! Foi por isso que o senhor humano ganhou!
Baalat deixou escapar um sorriso no canto da boca. Sua irmã era parecida com ela quando tinha a mesma idade. Um pouco menos sádica, mas ainda parecida, pensou.
— Acho, senhoritas, que deveríamos investigar a causa da vitória dele. Fazer alguns exames, alguns testes, se é que me entendem — disse Belfegor, o demônio com aparência de executivo e cheiro de morte.
— Não! Já disse a vocês que quero ele como meu animal de estimação! E não vou aceitar um animalzinho retalhado! — retrucou Angélica.
Renato franziu o cenho. Não estava gostando do rumo da conversa. Se virou para Abigor e cochichou:
— Posso beber um pouco de vinho também?
Abigor abriu um sorriso de orelha a orelha.
— Mas é claro que pode! Você! Venha cá! — ele chamou um dos empregados. — Traga uma taça de vinho para o humano! E seja rápido!
O empregado fez uma careta de desgosto quando notou que teria de servir um ser humano, mas assentiu. Desapareceu numa fumaça esverdeada e, assim que ressurgiu, trazia uma bela taça de cristal, cheia de vinho, sobre a bandeja. Ainda a contragosto, entregou a taça a Renato.
— Obrigado.
Renato tomou a taça, mas antes que pudesse beber, Clara a pegou de sua mão e começou a cheirar o líquido. Depois de algum tempo, devolveu a taça para Renato.
— Pode beber. Parece que é seguro.
Renato franziu o cenho, confuso. Ficou receoso, mas o vinho estava tão convidativo que ele não resistiu e bebeu um gole generoso, afinal, Clara já o havia checado, não? Era um vinho de sabor intenso e delicioso, à temperatura ambiente.
Abigor se divertia, enquanto assistia.
— Por favor, senhorita Baalat, poderia tentar convencer sua irmã de que a melhor alternativa é aquela que eu apresento? — disse Belfegor.
Renato notou que a demi-humana atrás de Belfegor, às vezes, olhava de canto de olho para ele, disfarçando. Parecia curiosa.
— Minha irmã é a mais teimosa das almas, Belfegor. Não há modos de eu convencê-la a coisa alguma. Além do mais, não acredito que sua alternativa seja tão boa assim.
— E como poderia não ser a melhor alternativa? Um humano desce ao inferno e derrota um demônio numa luta! Um demônio de alto nível! Precisamos saber a razão! Precisamos saber que tipo de anomalia existe na anatomia desse Homo Sapiens! Qual o motivo para não fazermos isso?
— O motivo é simples: minha irmã não quer. Ela quer o humano como bichinho dela. Não há nada a se fazer a respeito. Além do mais, minha irmã sempre se cansa de seus bichinhos. Deixe que eu cuido dessa investigação quando for o momento oportuno.
Renato bebeu mais um gole generoso de vinho, tentando esconder o nervosismo; foi quando Clara o cutucou.
— Não vai me dar um gole, não?
Renato sorriu, nervosamente, e entregou a taça para a súcubo. Ela bebeu e cochichou para ele:
— Você tá com sorte, Renato.
— É sério? Porque não tá parecendo.
— Angélica te quer como pet. Assim, não vão te fatiar inteiro. Sorte!
— Eu preciso de mais vinho!
— Acabou.
— Não seja por isso! — Abigor se intrometeu na conversa deles. — Você, empregado, traga outra taça para o primata.
O empregado lançou um olhar soberbo e desapareceu na fumaça verde. Reapareceu com outra taça e se dirigiu até Renato. Foi colocá-la sobre a mesa e, “acidentalmente”, deixou-a cair; Renato, porém, conseguiu pegar a taça em pleno ar antes que sujasse sua roupa e, mais importante, antes que qualquer mililitro do precioso líquido fosse perdido.
O guarda lançou outro olhar soberbo e se afastou.
— E esse papo de que ela se cansa dos bichinhos? Hein? Aquela irmã dela parece do mal!
Clara riu.
— Todo mundo aqui é do mal, Renato. Você, inclusive. Além do mais, ela só se cansa dos bichinhos sem graça. Você não é sem graça.
— Não importa! Eu não sou um… a porra de um cachorrinho!
— Não… você tá mais pra uma bomba atômica que ainda não aprendeu a explodir.
Foi quando Abigor se ergueu, limpando a garganta, fazendo todos olharem para ele.
— Amigos, creio que a razão para tanta discussão seja o fato de que o primata é excepcional, não é? Ele parece bizarramente forte para um membro de sua espécie, o que o torna interessante. É por isso que Belfegor, não sem razão, propõe que o estudemos; e também é por isso que Angélica deseja o humano para si. Não é isso?
Ambos assentiram, concordando. Abigor prosseguiu:
— Mas e se estivermos enganados?
— Como assim enganados?! — Angélica se exaltou. — Ele derrotou o Satanakia bem diante dos nossos olhos! Todos vimos!
— Verdade. Mas nós também vimos que Satanakia não tinha levado a luta a sério desde o início, não é? Além do mais, vimos a ajuda pervertida que esta súcubo deu a ele, não vimos? E o que falar da ajuda que eu mesmo dei, com a pepita de ouro hiperdecaído?
Angélica abaixou os ombros e franziu o cenho. Belfegor levou o dedo ao queixo. Todos estavam considerando aquilo que Abigor disse, pois sabiam que era verdade. E Clara queria, mais do que tudo, pular no pescoço de Abigor e rasgá-lo com as unhas, e depois explodir-lhe as partes íntimas de forma dolorosa.
— O que proponho é só um testezinho para ver se ele é realmente digno de nossa atenção. Se ele passar, retomamos a discussão; se não passar, bom, a gente joga ele no Gehenna ou dá logo para os demônios de baixa classe comerem e encerra o assunto. O que acham?
Belfegor ponderou por alguns instantes.
— E que tipo de teste daremos a ele?
— Que tal uma simples tercina nas Areias da Segunda Morte?
Todos ali, que sabiam do que ele estava falando, ficaram surpresos com a sugestão.
— Dessa forma — continuou — saberemos se ele de fato merece toda essa atenção que estamos dando a ele, ou se derrotar o Satanakia não passou de um golpe de sorte.
— O que está fazendo? — disse Clara, entredentes e com olhar cheio de ódio.
— Ora, apenas pondo um pouco de lenha na fogueira. — Ele piscou para ela.
Belfegor abriu um sorriso.
— Eu gostei da ideia.
— Eu também — disse Angélica.
— Pode ser interessante — disse Baalat.
Renato franziu o cenho.
— Tercina? Areias da Segunda Morte? Eu não gostei disso não. Do que vocês estão falando?
Baalat lançou um olhar afiado.
— Basicamente, é tipo uma luta de gladiadores, mas ao invés de gladiadores, serão monstros infernais, com chifres, cuspindo ácido, lançando fogo dos olhos, essas coisas. E você enfrentando eles, claro.
— Peraí! Quê?
— Você, monstros sanguinários e famintos, espadas, membros arrancados, gritos de dor, uma plateia eufórica. Algo nesse sentido. Que parte disso você não entendeu? Tercina significa que você tem que vencer três lutas nas areias.
Renato respirou fundo.
— Caros demônios, não quero ofendê-los, mas nem fodendo!
Baalat riu.
— Que fofo ele achando que tem escolha. Eu gostei de você, humano. Você me lembra alguém. Vou torcer para que não sofra muito na hora em que for devorado.
— Está enganada, irmã! Ele não vai morrer! Ele vai vencer! O senhor humano vai acabar com aqueles monstros burros e feios!
Baalat lançou um olhar gentil para sua irmã, com pena do otimismo da garotinha.
— Tive uma ideia para te motivar, primata — disse Abigor.
O demônio se ajeitou na cadeira e, diante dele, em meio a uma luz, surgiu um notebook com um logo de maçã.
— O que vai fazer? — Clara ergueu uma sobrancelha.
— Eu sou o demônio das guerras, lembra-se? O que significa que eu tenho acesso às armas mais poderosas já inventadas pela humanidade, o que inclui, obviamente, armas nucleares.
Ela engoliu em seco. Abigor prosseguiu:
— Se o Renato não topar lutar nas areias, ou ainda se lutar e perder, eu vou disparar uma bomba atômica naquela cidade imunda dele e tudo aquilo vai pelos ares. Melhor ainda: vou ativar as ogivas agora mesmo, vou programá-las para disparar quando? Hum, deixa eu ver… deixa eu ver… pra daqui a três semanas. Então esse é o tempo que você tem para se preparar e ganhar essas lutas, primata. Não acredita? Tá bem aqui, veja. Esses são os códigos de acesso das armas nucleares americanas. E esse aqui é o relógio em contagem regressiva, veja. Só eu sei a senha para parar a contagem. E aí, primata, sente-se motivado para lutar e vencer agora?
Renato respirou fundo e bebeu todo o vinho da taça num único gole.
— É. De uma coisa eu tenho certeza: deu ruim!
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.