Índice de Capítulo

    Pandemonium sumia às costas; e a frente, montanhas se erguiam em cordilheiras, vales serpenteavam como rachaduras gigantescas na terra, e depressões  desciam, em contraste com as altas montanhas. O chão era quase todo tingido de verde, por causa da baixa gramínea que fazia cócegas nos tornozelos.

    Renato suspirou.

    — É sério que precisamos ir à pé? O Inferno não tem nem um meio de transporte mais moderno?

    — Demônios geralmente voam, Renato. Meios de transporte são inúteis aqui.

    — É… mas eventualmente demônios perdem as asas, não é? Você, por exemplo, não tem asas. E eu arranquei as do Satanakia aquele dia. Deveria haver algum meio de transporte para demônios nessas condições.

    — Você não arrancou as asas dele — disse ela, parando pra tirar uma garrafa de água da mochila. Depois de beber um gole generoso, prosseguiu: —, não de verdade. Só tirou superficialmente, mas vai crescer de novo. As raízes das asas de um demônio ficam entranhadas na alma. Só uma criatura com poderes divinos poderia arrancar.

    Renato franziu o cenho, pensando por um momento.

    — Então as suas…

    — Não quero falar disso.

    Ela jogou a garrafa para Renato, que bebeu com avidez, depois limpou o canto da boca com o dorso da mão e respirou fundo, admirando o horizonte.

    — Ainda me impressiona o que vocês conseguiram fazer com a geografia daqui. Nunca imaginei que o Inferno teria uma paisagem tão bonita.

    — Demônios também têm senso estético, oras. Vamos caminhando, senão a gente nunca chega!

    Retomaram a marcha.

    — Sabe… — Clara arriscou — aquele seu pecado. Sabe que não foi culpa sua, né?

    Renato manteve os olhos à frente.

    — Não quero falar disso.

    — Entendo.

    Seguiram em silêncio por mais vários minutos. O sol estava ardente, o que não parecia incomodar Clara, mas certamente incomodava Renato. Olhou em volta, procurando uma árvore próxima onde pudesse descansar sob a sombra, porém não encontrou. Só havia a gramínea e, às vezes, um arbusto ressecado.

    — Sabe… — ele respirava ofegante —, pode ser comum pra vocês treinarem por tão pouco tempo e adquirirem habilidades incríveis, mas nós, humanos, precisamos treinar por vários anos até realmente ficarmos bons em algo. Lutadores profissionais precisam treinar a vida toda!

    Clara sorriu.

    — Você não vai treinar seu físico, Renato. Pelo menos não principalmente. Vai treinar o controle do fluxo hermético em você. Se controlar bem as energias que fluem pelo seu corpo e alma, vai ficar bem. É claro que um corpo forte é indispensável para suportar toda essa energia, então não espere moleza!

    — Sim, senhora! — respondeu, com um sorriso.

    — Quem sabe assim você para de ser um Condutor tão meia boca — disse ela, provocativa.

    — É o quê?!

    — As lendas diziam que o Condutor de Arimã poderia reduzir o mundo a cinzas, mas olhando bem pra você, sei não… acho que as lendas estavam erradas. No máximo, quem vai virar cinzas é você mesmo.

    Renato, indignado, esticou os dois braços e fez a sua Espada do Pecado surgir.

    A lâmina era toda preta.  Transparente o suficiente para ver através dela, mas também tinha alguma opacidade, então as imagens ficavam borradas. Era semelhante a um cristal. Lembrava a turmalina negra bem polida; e a forma que a luz do sol batia nela, fazia brilhar. Era fria como uma pedra de gelo.

    Do guarda-mão se projetavam espinhos metálicos que se curvavam e apontavam, ameaçadoramente, para a mão de Renato. O cabo era, possivelmente, a parte mais gelada da espada. Tão gelado que Renato achou que se segurasse a espada por tempo demais, sua mão poderia congelar. E uma fria, fina e sutil fumaça escura se desprendia da espada.

    — Prepare-se, súcubo! Eu vou te fazer em pedaços!

    — Oho — ela riu — ficou valente só porque ganhou uma faquinha estilosa.

    Ela fez sua própria Espada do Pecado surgir não mão. A lâmina era vermelho-escuro; e tinha manchas pretas; tão bem polida que poderia funcionar como espelho; e o guarda-mão era preto. E, assim que surgiu, pôde ser sentido o cheiro de chiclete de tutti-frutti.

    — Você me lembra um certo zero à esquerda que conheci. Saiba, Renato, que a Espada do Pecado de uma súcubo sempre acerta o coração de suas vítimas!

    — Cai dentro, vadia do mal!

    — Abusado! Vou  cortar sua língua fora!

    Clara avançou e golpeou com a espada, num movimento de cima para baixo; Renato bloqueou o ataque com sua própria espada. O impacto produziu uma onda de choque brilhante, e fez ele ser empurrado para trás, e os braços tremeram dolorosamente. Poeira subiu.

    — Tá querendo arrancar minha cabeça?! — O rapaz protestou.

    — É só você se defender que eu não arranco — disse ela, e atacou novamente.

    Renato desviou do golpe jogando o corpo para o lado; ela, no ataque, passou direto por ele sem atingir nada; e assim que Renato viu as costas desprotegidas de Clara, firmou as mãos em volta do cabo de sua espada e atacou.

    No exato momento em que a espada dele deveria atingir a súcubo, ela se transformou em névoa preta e vermelha e desapareceu. Renato estacou com olhos arregalados. Ela surgiu atrás dele; pôs a mão sobre sua nuca e sussurrou baixinho em seu ouvido:

    — Parado ou certas partes de seu corpo serão explodidas!

    — Certo! Certo! — Renato fez sua espada desaparecer — Eu me rendo. Por favor, poderosa súcubo, não machuque o Malaquias!

    Ela franziu o cenho, confusa. Fez sua espada desaparecer. Rodeou em volta de Renato, ficando de frente para ele. Parecia encabulada.

    — Malaquias? Deu um nome bíblico pro seu pau? Isso não é meio ridículo?

    Renato gargalhou.

    — Você não manja muito de memes de internet, né?

    — Memes? Que é isso? É algum tipo de tecnomancia?

    — É difícil explicar. Tecnicamente são coisas que viralizam na internet; mas é mais que isso também. Quando a gente voltar pra terra, eu te mostro!

    — Combinado.

    Continuaram andando. Só de olhar a gigantesca montanha, com o cume quase tocando o céu, que teriam que subir, e depois descer, e depois subir outra ainda maior, Renato sentia-se exausto.

    As pernas queriam parar, mas o cérebro continuava enviando ordens de “marchem, desgraçadas!”

    E, do alto da montanha, a vista era ainda mais bonita. O garoto viu que bem no fim da paisagem, assim que o tapete verde dos vales e montanhas terminava, dunas brancas e amareladas tomavam o chão, como se fossem ondas esculpidas pelo vento.

    E bem no pé da montanha, um rio deslizava  tranquilamente, acompanhando o formato do vale, num  S gigantesco; e, em volta do rio havia elas: árvores, com suas sombras indescritivelmente valiosas!

    A boca de Renato salivou ao ver tanta água. A água que levaram consigo havia acabado. Estava com a boca seca e o ar entrava pela garganta arranhando. Desceram.

    — Cuidado! Se descer assim, pode acabar caindo! — alertou Clara. — Se cair, pode rolar até lá embaixo, batendo em pedras e em pedaços de pau. Chegaria lá embaixo mais feio do que já é.

    Assim que chegaram, Renato foi direto para o rio. Entrou até a água bater na altura dos joelhos. Era geladinha e fresca como ele havia imaginado. Se inclinou e bebeu com vontade.

    Clara, com mais cautela, se agachou na margem e, usando as duas mãos, bebeu um gole.

    Renato saiu da água, revigorado. Foram descansar sob a sombra de uma árvore. Sentaram num tronco caído, sentindo a brisa no rosto. Até o cheiro de enxofre já estava deixando de ser um incômodo e Renato estava se acostumando. Os olhos ainda ardiam um pouco e o calor estava alguns graus acima do tolerável. Nada que um garoto cuiabano já não tivesse sentido algumas vezes durante a vida.

    — Por que eu sinto que a água daqui tem um gosto esquisito? Eu achei que era por causa da garrafa, mas a do rio tem o mesmo gosto.

    — Porque é Água Pesada. Ou Água Deuterada, como preferem os alquimistas e químicos. — Clara deu de ombros. — É água, só que com um átomo de hidrogênio um pouco mais pesado.

    — Será que é seguro eu beber isso?

    — Bom, você já bebeu antes. Na terra, a cada litro de água, 0,01 ml é de Água Pesada. Aqui essa proporção se inverte.

    — Então será que é seguro eu beber esse tanto de Água Pesada? Eu não sou um demônio, sabe? Ainda tenho o corpo de um ser humano. Poderia ser tóxico para mim. Sabe-se lá quantos efeitos colaterais poderia causar!

    — Água é água. Além do mais, o máximo que pode acontecer é nascer um braço extra nas suas costas, ou todos os seus dentes caírem, ou você ficar broxa pra sempre. Nada muito grave.

    — Peraí, caraio! Broxa? Essa merda afeta o funcionamento do… você sabe… Malaquias?

    Clara gargalhou.

    — Então um braço nas costas ou ficar banguela não te preocupa?

    — É claro que preocupa, mas sabe como é, né… prioridades!

    — É claro que é brincadeira, seu idiota. Senão eu não deixaria você beber. Tenho grandes planos pro Malaquias.

    Renato ergueu uma sobrancelha, com interesse.

    — Grandes planos? — ele sorriu. — Será que poderia me dar mais detalhes? — Pensou por um momento e o sorriso sumiu de seu rosto — Peraí, você não tá falando daquele negócio de explosão não, né?!

    Clara riu. Olhou para o rio por um tempo e se levantou, determinada.

    — Vou pegar um peixe!

    — Ah, que saudade de um pintado assado!

    — Aqui não tem pintado, mas tem algo melhor!

    Ela foi até a margem do rio e observou, cautelosa, as águas correndo. Pôs os dedos na água e depois os cheirou. Depois de se certificar que era seguro, ela mergulhou. Cerca de quatro segundos depois, a água explodiu e Clara emergiu, segurando o maior peixe que Renato já tinha visto. Era maior do que Clara, quase do tamanho dele, e tinha nadadeiras tão grandes quanto os braços de um homem adulto.

    Ela arrastou o peixe, que ainda se debatia, para fora da água. Não demorou pra ele ficar imóvel.

    Depois ela se agachou ao lado do peixe e, usando o dedo, desenhou no chão um tipo de triângulo. Era o símbolo alquímico do fogo.

    — Renato, lindinho, melhor se afastar.

    — O que vai fazer?

    Ela sorriu de forma discreta.

    — Apenas desfazer de forma controlada a ilusão de chão filme.

    Renato não entendeu, mas se afastou. Logo em seguida, Clara também se afastou um pouco. Alguns segundos depois, uma labareda explodiu do chão. As chamas brotavam e queimavam, como se as pedras e a terra fossem feitas de madeira seca e óleo. Eram avermelhadas e escuras, como os olhos de Clara.

    — Esse fogo, Renato, é a verdadeira aparência desse lugar em que estamos. Por baixo, as chamas eternas são tudo o que existe, a única coisa de verdade. Tudo isso que vemos não passa de uma casca fina. As pedras, a terra, a água, o ar, é tudo falso. No fundo, não passa de um tipo de ilusão. Bom, acho que não importa. Desde que não sintamos as queimaduras, ficaremos bem e, no fim, o peixe vai estar gostoso do mesmo jeito.

    Poucos instantes depois, ela esticou a perna e, com o pé, apagou o desenho do chão. As chamas sumiram na mesma hora, sem deixar marcas. Foi como se nunca tivessem crepitado ali, mas o peixe, completamente assado, era a prova incontestável de que foram reais.

    E Clara estava certa. O peixe estava mesmo gostoso!

    Comeram até se fartarem, e guardaram um pedaço na mochila, enrolado num plástico. Depois beberam mais do rio.

    — Vamos andando, Renato. Senão a gente não vai chegar na Masmorra das Luzes nunca!

    E, depois de encher as garrafas de água, atravessaram o rio, Clara como uma névoa flutuante, sua mochila girando no meio da névoa, como se estivesse dentro de um redemoinho; e Renato com rápidas e desesperadas braçadas a nado, que na verdade foram mais fáceis do que ele achou que seria, retomaram a caminhada.

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