Índice de Capítulo

    “O universo nasceu de uma poesia numérica: uma equação matemática. Tão longa, tão complexa, que mesmo se todos os átomos da criação fossem usados para formar papel, ainda assim faltaria espaço para escrevê-la. E de alguns de seus símbolos e números, brotou o tempo; e do tempo, brotou o ritmo; e do ritmo, através de passos lógicos, surgiu a vibração; e os átomos vibraram pela primeira vez.

    Uma outra parte da equação tornou o ritmo mais bonito, mais preenchido de beleza, e fez surgir a melodia; e a melodia foi como as forças fundamentais da natureza transformando átomos vibrantes em moléculas, e em nuvens de poeira, e estrelas e planetas. Da melodia veio a luz.

    Na parte final, tão complexa que até mesmo Deus chegou a se confundir umas duas vezes enquanto calculava, e precisou apagar e reescrever um ou outro número, surgiu uma dízima periódica que, aos poucos, foi tomando contornos de harmonia. E ao fim da dízima, a poucas casas decimais do infinito derradeiro, a harmonia deu sentido à vida consciente. E a música estava pronta e minuciosamente calculada.”

    Renato abaixou a cabeça, apoiando-a sobre o grande livro diante de si, e suspirou.

    — Ah, quanto mais eu leio, mais confuso isso fica!

    Levantou a cabeça e fechou o livro.

    — “Propedêutica Hermética: Introdução Teórica aos Princípios de Alta Magia” — leu o título. — Se isso foi só o início do primeiro capítulo, tenho medo dos outros!

    Olhou em volta. Estava numa biblioteca gigantesca, com prateleiras que, se não fossem infinitas, estavam bem próximas disso. Era impossível ver as paredes de tão distantes que ficavam. Nem parecia que isso tudo existia dentro de um túnel, vários metros abaixo no subsolo, mas existia. Um milagre da engenharia demoníaca!

    Se espreguiçou na cadeira e olhou em volta. Não havia mais ninguém na biblioteca. Estava completamente sozinho, mas mesmo assim sentia que estava sendo observado.

    Sua mão, embora enfaixada, já tinha se curado. O Recuperador Iônico era outro milagre da tecnologia demoníaca. “Os médicos da terra matariam por um desses” pensou.

    Abriu o livro novamente e procurou o capítulo sobre os elementos. O reitor Phenex lhe dissera que, como os seis lados do cubo responderam, Renato devia ter alta afinidade com todos os elementos básicos da criação na qual a magia se manifesta, mas que a afinidade com o fogo devia ser maior, já que este respondeu primeiro.

    Então decidiu ler primeiro sobre o fogo. O símbolo era simples: um triângulo equilátero com a ponta voltada para cima. Renato já percebera que os outros símbolos de elementos eram variações disto; e que havia outras versões também, algumas mais simples, outras mais complexas.

    Achou ainda mais incompreensível que o texto que abria o livro. Traçou, com o dedo, o símbolo sobre a mesa.

    — Fogo.

    “Como eles querem que eu entenda isso?”

    Se lembrou da luta contra o Mercenário Possuído, quando arrancou de dentro dele o demônio que o possuía, tudo o que pensou foi em destruir aquela coisa; e a coisa pegou fogo. Foi completamente incinerada, deixando apenas uma mancha de cinzas sobre o asfalto como prova de que estivera ali.

    — Um triângulo equilátero…

    E então teve um insight. Um triângulo equilátero não foi exatamente o que Jéssica viu em sua visão sobre o Anjo do Deserto? Teria alguma conexão?

    Ele se levantou e começou a procurar pelas prateleiras. Eram tantas que achou que levaria uma eternidade até encontrar algo, mas não demorou tanto assim. Viu um livro com o título “Simbologia e Semiótica Mágica em Visões e Profecias” e o pegou.

    Voltou à mesa e o abriu. Tinham tantos símbolos com nomes estranhos, que para um falante nativo de português eram impronunciáveis, mesmo Clara tendo explicado que o conteúdo desses livros poderiam ser lidos por qualquer pessoa da terra, independente de sua língua materna. Pelo visto, isso não valia para símbolos.

    Alguns eram até que faceis de assimilar. Insetos, cruzes, estrelas, animais… outros eram bem bizarros, como se fossem simplesmente traços aleatórios sem qualquer significado. Alguns eram formas geométricas;  outros eram letras em formato de cunha. Eram dos mais variados tipos.

    Demorou para encontrar o que queria, mas encontrou: o triângulo. E aí vieram as muitas variações: escaleno, isósceles; com traços cortando; de ponta cabeça; de lado. Muitos tinham equações acompanhando. E finalmente, o triângulo equilátero.

    Leu que poderia ser um dos símbolos do fogo na alquimia; e que também fora muito estudado pelos pitagóricos na Grécia antiga. Viu sobre os cálculos em física envolvendo o delta.

    Leu que o delta também é usado para designar um tipo de acidente geográfico raro que às vezes acontece na foz de alguns rios. Na hora de desaguar no mar, o rio se ramifica em vários braços, formando um tipo de triângulo de água no chão.

    E então teve outro insight: “Não teve algo sobre uma serpente indo em direção ao delta? A serpente poderia ser…”

    — … poderia ser um rio! — completou o pensamento com a fala. — Então, se for isso mesmo, o anjo poderia estar preso no subsolo de um delta de rio!

    Renato, nessa hora, poderia vender a alma para ter um celular com internet. Queria pesquisar quantos rios na terra têm deltas e se encontram em desertos. Estava eufórico. Sentia que talvez tivesse matado a charada e interpretado a visão de forma certeira.

    Não via a hora de todos estarem juntos novamente para discutirem sobre isso.

    Sentia saudade de Jéssica e Mical.

    E a porta se abriu, interrompendo seus pensamentos, e por ela entrou Kazov Yutar. Ele tinha pouco mais de dois metros de altura, musculoso como um fisiculturista, olhos cor de cobre fendados com os de uma serpente, escamas por todo o corpo verde-escuro e garras curvas e afiadas. Uma cauda musculosa se balançava atrás dele. Era algo que, com certeza, os jogadores de RPG da terra chamariam de Homem-Lagarto. Ele, porém, dava outro nome a sua espécie: Reptiliano.

    Deu um soco na própria mão, de forma provocativa, e apontou para Renato.

    — Chegou minha vez de te amaciar, garoto. Vamos!

    Renato engoliu em seco. Não queria ir, mas foi mesmo assim. Seguiram por alguns túneis, fazendo curvas e mais curvas. Vários demônios usando o uniforme da Masmorra das Luzes passaram por eles, olhavam com curiosidade, e seguiam caminho. Dois diabinhos, entretanto, um de pele vermelha e outro de pele azul, ficaram realmente animados com o que viram. Aparentavam cerca de 7 anos e tinham, cada um, um único chifre na testa.

    — Senhor Kazov! — disse o de pele vermelha. — Este humano fedorento será sua presa de hoje?

    O reptiliano riu.

    — Será sim, garotos.

    Os dois diabinhos se animaram ainda mais.

    — Podemos assistir?!

    — Mas é claro que podem.

    — Oba! Vamos ver o Kazov fazer um humano em pedaços hoje! Será divertido!

    — Sim, irmão! — disse o outro. — Estou tão empolgado!

    Kazov riu mais uma vez.

    — Então vamos, garotos. Minha presa não pode esperar muito.

    — Certo! — responderam juntos.

    Chegaram num grande salão, com um tipo de arena circular no centro e arquibancadas nas laterais. Os diabinhos prontamente se acomodaram nas arquibancadas.

    Renato, meio a contra gosto, foi em direção à arena.

    — Não sei o que aquela súcubo viu em você, garoto humano, mas isso não importa. Ela me pediu para testar sua força, então eu não vou me conter! Lute como se sua vida dependesse disso!

    Renato respirou fundo e ficou em posição de luta.

    — De onde eu venho, as pessoas comem carne de jacaré. Não vou ficar com medo de um só porque anda igual homem e aprendeu a falar.

    Kazov movimentou a testa de um jeito estranho, e Renato achou que ele teria erguido uma sobrancelha se tivesse sobrancelhas.

    — Você quer me comer?

    — Ãh? Ah, não. Lá ele! Er… eu tô falando no sentido figurado, sabe? Tipo… comer na porrada.

    Kazov riu.

    — Entendi. Então vamos ver!

    Kazov Yutar avançou. As pernas musculosas garantiram um movimento extremamente rápido. Quando Renato percebeu, aquele punho estava vindo em sua direção. Tentou se esquivar. Percebeu que não daria tempo. Cruzou os dois braços diante de si, na tentativa de bloquear o ataque.

    O punho do reptiliano o atingiu. A dor sobre os braços foi instantânea, e Renato foi jogado para trás. Conseguiu cair de pé.

    Antes que tivesse tempo de ficar novamente em guarda, Kazov já estava em cima dele novamente, mandando outro soco. Na cara daquela criatura, um desejo evidente de matar.

    Dessa vez Renato conseguiu se esquivar, se abaixando rapidamente. Aproveitando a oportunidade, Renato socou, com toda a força, a barriga desprotegida do reptiliano.

    Kazov pareceu nem sentir o ataque. Foi quando a cauda dele apareceu e acertou a cara de Renato feito um chicote. Tudo escureceu e o garoto foi jogado para longe e caiu no chão, rolando.

     Se pôs de pé com dificuldade. A marca da chicotada da cauda estava em seu rosto. Ardia feito ferro quente. Uma vez, Renato caíra de cara no asfalto enquanto tentava empinar de bicicleta. Ele achou que a dor foi parecida.

    Os diabinhos comemoraram na arquibancada.

                — Mata ele, senhor Kazov! — gritou o de pele vermelha.

    — É! Acaba com ele! — concordou o de pele azul.

    — Qual é? — disse o reptiliano. — Eu falei para lutar como se sua vida dependesse disso. Me mostra tudo o que tem!

    — Tudo o que eu tenho, né?

    Renato limpou o sangue no canto do lábio e sorriu de um jeito sádico. Se levantou e esticou os braços diante de si e, na hora em que desejou, a Espada do Pecado surgiu em suas mãos, emitindo a névoa negra e gelada.

    O reptiliano retribuiu o sorriso.

    — Agora ficou interessante. Então, acho que não tenho escolha.

    Kazov movimentou os dedos, e as garras pareceram maiores.

    — Achei que não ia ter a oportunidade de usá-las hoje. Pode atacar à vontade, garoto.

    Renato não pensou duas vezes. Se moveu rapidamente e, num segundo, estava sobre Kazov, movimentando a espada de cima para baixo; porém Kazov a bloqueou usando as garras. O som de metal contra metal tiniu pela arena.

    Kazov contra atacou, num tipo de tapa com as garras brilhando perigosamente. Renato conseguiu pôr a espada na frente e evitar ter seu abdome aberto. Quando as garras se chocaram contra a espada, faíscas brilharam como a cauda de um cometa, e Renato foi jogado para longe com o impacto. Caiu de pé ainda em pose de luta.

    — Isso foi interessante, humano. Talvez você valha o esforço.

    — Talvez — disse o garoto, desafiador, olhando com assombro para aquelas garras curvas. Ele vira a Espada do Pecado cortar facilmente um tacape de pedra; mas aquelas garras a bloquevam sem dificuldade.

    — Os reptilianos são descendentes dos antigos dragões, humano. Minhas garras, assim como as deles, são tão duras quanto diamante. Se tentar me atacar novamente, é possível que tanto sua espada quanto você sejam partidos ao meio.

    Nessa hora, Kazov mostrou sua língua fendida; e o verde das escamas dele pareceram mudar de cor. Ficaram mais azuladas.

    — Acaba com ele, Kazov!

    — Corta ele em pedaços!

    O reptiliano acenou para a sua animada torcida.

    A espada de Renato emitiu uma névoa muito densa e a temperatura local baixou. Ele se ergueu a avançou sobre Kazov.

    — Não me menospreze!

    Renato atacou movimentando a espada de cima para baixo; e, assim que Kazov posicionou as garras para bloquear a lâmina, Renato firmou o pé no chão e usou toda a força para redirecionar o ataque. Desviou a rota da espada, fazendo ela ir lateralmente, de encontro às costelas do reptiliano.

    Kazov ficou surpreso e, por um momento, vacilou. Quase foi atingido, mas conseguiu girar o corpo e desviar da lâmina negra. A espada passou por ele sem encontrar nada; e num contra-golpe potente, ele se abaixou e afundou o punho na boca do estômago de Renato. A força do golpe lançou o garoto até o teto, e então ele caiu, batendo no chão.

    Pôs a mão no chão, buscando apoio, tentando se levantar. Estava tonto. Tentou forçar as pernas, e então sentiu aquela ânsia de vômito. Conseguiu segurar.

    Se pôs de pé com dificuldade. Os músculos da barriga se reviravam em espasmos.

    Renato posicionou a espada novamente. Estava pronto para uma nova tentativa. Dessa vez conseguiria!

    — Certo, chega, garoto. Phenex já chegou. É ele quem vai cuidar de você agora.

    Renato olhou na direção da porta e lá estava o reitor, com um olhar soberbo.

    Kazov acenou para os dois diabinhos na arquibancada.

    — Amanhã tem mais, crianças. Venham assistir, se desejarem. Vou amaciar ainda mais a carne desse humano.

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