Índice de Capítulo

    Jéssica e Mical caíram num tipo de caverna subterrânea gigantesca. Estalactites no teto e estalagmites no chão se projetavam feito lanças ameaçadoras.

    Às costas delas, uma cachoeira de água e areia descia da superfície e caía rumo ao centro da terra.

    Um brilho alaranjado rasgou o escuro. E as garotas viram o anjo. Estava preso por correntes que saíam de dentro das rochas. Suas asas, sem plumas, eram apenas uma projeção de nervos, cartilagens e pele enrugada preso às costas.

    Ele se ergueu e olhou diretamente para as duas. Os olhos eram alaranjados. Lindos, porém carregavam uma expressão triste, dura. A pele estava toda coberta de cicatrizes.

    Estava nu.

    — Ctehê! Arebk háj!

    — O… quê… ? — Jéssica fez uma expressão confusa.

    — Enoquiano — concluiu Mical.

    — Sabe traduzir?

    — Não.

    O anjo as olhou por um tempo, e abriu suas asas lamentosas de couro e nervos, e tentou se aproximar delas, mas as correntes tiniram e o seguraram.

    — Tz há! Tz há! Ex Azael! — disse o anjo, estendendo suas mãos para elas.

    — Acho que ele quer que… nos aproximemos — disse Mical.

    As duas se entreolharam por um tempo.

    Depois olharam para o anjo e não sentiram medo. Tudo o que puderam sentir vendo aquela figura machucada, triste e solitária foi pena. Aqueles olhos eram os olhos de alguém implorando por algo. Não tinham orgulho, nem hostilidade. Apenas tristeza.

    As duas deram um passo a frente e o anjo as tocou.

    Pousou as mãos sobre as têmporas de cada uma delas e fechou os olhos.

    Seus lábios finos e ressecados se moveram, sussurrando:

    — T-hai! Cetum! Satem! Indo-europeu! Latim! Galego-português! Português! Decifrado.

    O anjo se afastou delas. Respirava pesadamente. Parecia cansado.

    — A língua de vocês é… complicada. Muita ramificação — disse o anjo.

    — Você… aprendeu nossa língua!? Já?! — Jéssica parecia chocada.

    Mical assentiu.

    — Aprender dessa forma deve ser bastante útil.

    — Existe a possibilidade de eu ter um aneurisma cerebral, então… tem seus riscos — respondeu o anjo, dando de ombros.

    — Você é… — Jéssica não concluiu sua fala.

    — Sim — respondeu ele. — Ex Azael. Me chamam de O Anjo do Deserto. Mas a verdade é que eu sempre fui o Anjo do Perdão. Sempre trabalhei para levar o perdão de Deus aos humanos. Mas pequei. Me apaixonei por uma humana.

    Jéssica engoliu em seco.

    — Nós tentamos contactar você.

    — E eu procurei por vocês. — ele olhou para Jéssica — A chave; — olhou para Mical — o mapa. Minhas descendentes. Minhas sementes na humanidade. A prova de que amei Txalky! Mas não consegui encontrá-las. O mundo é grande demais e minha consciência não as encontrou. Mas algo mudou.

    — O que mudou? — perguntou Jéssica.

    — Uriel morreu. Quando um anjo morre, acontece uma emanação energética que funciona como um sinal avisando para todos os outros anjos da morte e do local onde aconteceu, como os feromônios das abelhas. Eu senti esse sinal e olhei na direção dele, e vi vocês duas, então puxei suas almas para os portões da minha prisão. Não sabia se conseguiriam vencer o guarda, mas venceram.

    Mical engoliu em seco.

    — Então os outros anjos também sabem da morte de Uriel?

    Ex Azael assentiu.

    — E o  que quer da gente? — perguntou Jéssica.

    — Quero que me libertem. Estive preso por incontáveis milênios. O tempo do meu castigo já tem que ter terminado!

    — …

    — Libertem-me! Ainda tenho duas Bênçãos para ceder! Libertem-me e lhes darei!

    — Bençãos? — Mical ficou pensativa.

    — Poderão proteger uma a outra de maneira mais eficaz. Nem anjos, nem demônios, nem qualquer criatura poderá machucá-las, pois vocês são minha semente. Eu estarei sempre com vocês. Poderão ajudar aquele garoto a vencer a própria Escuridão.

    — Nós teremos poder? — Mical parecia surpresa.

    — Vocês já têm. Eu apenas vou remover os selos que as impedem de usá-los.

    — E como podemos libertá-lo? — perguntou Mical.

    — O sangue de vocês. Uma gota de cada.

    — Nosso… sangue… ? — Mical franziu o cenho.

    — Mical, você é o mapa. O guia. Derrame uma gota de seu sangue sobre minhas correntes e o sangue se moverá para o elo mais frágil. Sinalizará onde a chave deve ser inserida.

    — E a chave sou eu?

    — Sim, Jéssica. A chave é você. Você deve derramar sua gota de sangue no elo da corrente onde o sangue de Mical parar. Assim, eu estarei liberto. Foi profetizado que seria dessa forma.

    — Jés, foi pra isso que nascemos. Ouvimos histórias sobre ele desde pequenas.

    — Eu sei, mas… Depois não tem mais volta, né? Melhor pensar um pouco.

    — Do que você tem medo? — O anjo ergueu uma sobrancelha.

    — Por exemplo, senhor Anjo do Deserto, o que você pretende fazer depois que estiver livre?

    — Vou descobrir meu lugar no mundo. Talvez viajar pelo universo. Sempre quis conhecer a galáxia de Andrômeda, mas nunca tive tempo. Ouvi falar que lá existe uma civilização alienígena com seus próprios deuses e monstros. Parece… interessante.

    — Parece mesmo — respondeu Mical.

    — É nossa predestinação, Jés.

    Jéssica suspirou.

    — Acho que é mesmo…

    As duas fizeram assim como instruído por Ex Azael. Mical usou um pequeno grampo de cabelo, que tinha  a ponta afiada, para fazer um furinho no dedo.

    O anjo começou a cantar. Era um cântico numa língua esquisita, com notas longas e melancólicas, que se misturavam em reverb. O som era grave e vinha do fundo da garganta. Era o tipo de música que poderia tocar numa igreja gótica antiga, daquelas com salões frios e tumbas no subsolo.

    A gota de sangue caiu da ponta do indicador de Mical sobre um dos elos da corrente.

    O metal da corrente rangeu e tiniu, como se sofresse, e o sangue se moveu através dos elos, até um ponto específico.

    Jéssica jogou sua gota de sangue sobre a gota de Mical.

    Toda a caverna estalou, como se as pedras estivessem sendo destruídas. As águas do Nilo pararam de cair em cascata.

    Foi como se todo aquele mundo perdesse a cor e ficasse desbotado.

    — Está consumado — disse o Anjo do Deserto.

    A corrente se tornou pó.

    Ex Azael, finalmente com seus braços livres, ergueu as duas mãos, e duas bolas de energia na cor de seus olhos brilharam em suas mãos.

    — Alegrem-se, filhas de Quemuel. Filhas de Azazel. Serão as portadoras do Perdão e da Justiça. Abençoadas sejam!

    E empurrou as bolas de energia em direção às duas meninas. A energia se chocou contra Mical e Jéssica, e as duas foram arremessadas contra uma parede, destruindo algumas estalagmites no percurso, e caíram no chão.

    Jéssica tentou se erguer, mas lhe faltou forças. Seu corpo inteiro formigava e ela não sentia as pernas. A visão estava turva. Mical, ao seu lado, estava inconsciente.

    — Ex Azal… — disse Jéssica, com voz fraca —, o que…

    — Podem me chamar de Azazel. Somos próximos agora. — Ele olhou para o alto e, através dos vários metros de rocha maciça, do rio que corria na superfície, e através da própria barreira dimensional que selava essa dimensão prisão, ele viu o Céu. O Paraíso. Ergueu suas asas de pele e nervos; e seus olhos brilharam orgulhosos. O rosto se encheu de dignidade pela primeira vez em mais de mil anos.

    — Vingança também é bom.

    E voou, desaparecendo através do teto, como se todas aquelas pedras não tivessem matéria alguma em sua constituição.

    *

    No Priorado, Jéssica e Mical ainda flutuavam, girando uma em volta da outra.

    — É bruxaria… — disse um dos camponeses.

    — Misericórdia! Esse pesadelo nunca termina!

    — Precisamos fazer alguma coisa! Ou seremos punidos por Deus ainda mais!

    — Se afastem! — disse Renato, com firmeza. — Não quero que fiquem em cima, dessa forma, feito um bando de abutres! Fiquem longe!

    De repente, as duas simplesmente caíram no chão. A magia que as mantinha levitando foi desfeita.

    Renato as tocou no rosto, sentindo a respiração delas. Suspirou aliviado ao ver que estavam vivas e, reagindo ao seu alívio, o céu se iluminou, sendo tomado pela luz do sol que rasgou a escuridão de antes.

    — Renato é mesmo especial — falou Tâmara, sentada no parapeito, no alto do templo, olhando para baixo e balançando as pernas alegremente.

    — Você não sabe o quanto…. — disse Clara, que estava sentada ao seu lado.

    — Sobre as meninas… o que acha que é?

    — Não sei — Clara tomou um gole de seu copo de uísque com gelo. —  Mas com certeza não é bom.

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