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    E, assim que chegaram às casinhas ao lado do templo, Hernandes abriu uma delas e empurrou Jéssica em direção à porta.

    — Entre! — disse ele.

    A garota deu um passo hesitante em direção à entrada; Mical a imitou.

    Hernandes deteve Mical, segurando-a pelo braço.

    — Você não.

    — Ei, o que pretende fazer com minha irmã, seu…?! — gritou Jéssica, indignada.

    — Vocês serão examinadas, porém em quartos separados. É óbvio. Entra. Sua irmã estará no quarto bem ao lado do seu.

    Jéssica, ainda descontente, entrou no quarto, ao passo que Hernandes passou a chave na porta, trancando-a no escuro. Os feixes de luz, como fios dourados e brilhantes, que entravam pelas frestas do barro e da madeira, eram a única iluminação que tinha.

    Mical engoliu em seco. Odiava ficar separada de sua irmã dessa forma, mesmo que por poucos metros.

    Hernandes a empurrou pra dentro do quarto ao lado e trancou a porta. No quarto dela, ao contrário do de sua irmã, não tinha nenhum feixe de luz se projetando na sombra, então ficou no completo escuro.

    O cheiro era de mofo e terra úmida. O nariz coçou, talvez por causa das partículas de poeira flutuando no ar, e a garota espirrou.

    Tump! Tump! Tump!

    Alguém bateu na parede do outro lado.

    — Mica! Você tá aí?

    — Jés! Eu… eu tô aqui! S-será que vão nos deixar aqui por quanto tempo?

    — Eu não sei. Vou procurar uma saída… um local mais frágil no teto, que dê pra cavar e abrir uma saída, se for necessário.

    — Tô sentindo falta da minha bazuca… daria pra abrir uma saída com ela facinho!

    Jéssica riu.

    — É, daria mesmo.

    — Parece que tem alguém vindo! — disse Mical, nervosa.

    A porta se abriu, e entrou uma mulher velha, de pele enrugada e cansada, e um vestido preto surrado, meio desbotado. Seus cabelos brancos estavam cobertos por um véu da mesma cor do vestido, e descia pelos ombros. 

    Sobre o peito, um crucifixo prateado brilhava, e era a única coisa nela que não parecia desbotada e sem vida. Ela segurava um lampião aceso e cheirava a naftalina.

    Assim que entrou, fechou a porta atrás de si e o lampião se tornou a única fonte de luz no local.

    — Magna Madre!

    A velha bufou.

    — Tire a roupa — disse ela, colocando o lampião sobre uma mesinha.

    — O quê?

    — Tire a roupa. Preciso te examinar para saber o quão contaminada pelo mundo você foi. Saber se ainda tem salvação.

    Mical engoliu em seco.

    — Contaminada?

    — Tire logo a roupa! Ou eu vou chamar alguns acólitos do templo para segurá-la e tirar sua roupa à força.

    Aquela sensação de aperto no peito de Mical era uma sensação que ela conhecia bem, embora não a sentisse há bastante tempo. Ela tinha se esquecido como era. Ter seu corpo e mente totalmente controlados pelos outros; que a olhavam com desconfiança, com nojo, com indiferença.

    Pelo menos dessa vez sua mente estaria a salvo! Poderiam tocar seu corpo, amarrá-lo, castigá-lo, fazê-lo sangrar, mas sua mente estaria fora do alcance daquelas mãos ressequidas e cheias de ódio. Não fariam nada a ela! Mesmo que tentassem muito!

    — Certo — respondeu.

    O anel no dedo manteria sua marca de nascimento oculta. Enquanto eles não a vissem, ela ficaria bem. Marcas na pele, para o Atalaias, eram o mesmo que uma declaração de pacto com o Diabo, e isso significava fogueira.

    Engoliu em seco e começou a se despir.

    — Vai rápido, garotinha! Não tenho o dia todo! — disse a velha impaciente.

    Mical tirou a roupa e, tímida, estava com os ombros caídos e cobrindo os seios com os braços, como se abraçasse a si mesma.

    — Vamos, estique os braços!

    Mical obedeceu, hesitante, com movimentos lentos. Apertava os lábios uns contra os outros, por causa do nervosismo.

    A velha se inclinou com dificuldade, para observar cada centímetro da pele de Mical, começando pelos pés e tornozelos.

    A garota, com os braços esticados, moveu os dedos, tentando manter o anel escondido. Mas ela sabia que era inútil. Magna Madre veria aquele anel e a faria tirar. Talvez, não notasse a marca ressurgindo em sua coxa, mas talvez notasse. Seria um golpe de sorte. Por isso, quando viu a chance, enquanto a velha ainda estava inclinada prestando atenção em seu tornozelo, a garota fingiu que bocejou e levou a mão à boca, cobrindo-a, e com um movimento rápido do polegar, empurrou o anel para sua boca, e o escondeu embaixo da língua.

    — Fique quieta, garota! Antes que eu perca a paciência!

    — Desculpe, Magna Madre.

    A velha fez uma careta de desprezo e bufou.

    — Ainda não sei se te aceitaremos de volta. Vou falar com o Prior Regente sobre isso. Só precisamos de sua linhagem! Eu mesma poderei escolher um acólito para pôr a semente em teu ventre, ou no ventre de tua irmã. A que for mais adequada.

    “Isso não vai acontecer” pensou Mical. “Não vai mesmo! Antes disso, eu explodo tudo isso com a bazuca!”

    — Muito bem! Sem nenhuma marca maligna, aparentemente.

    A velha pegou o lampião, girou nos calcanhares e saiu, deixando Mical novamente sozinha no escuro.

    A garotinha pôde ouvir as movimentações no quarto ao lado, quando sua irmã também foi examinada por Magna Madre.

    *

     Depois de examinar Jéssica, Magna Madre, antes de sair, se virou e disse:

    — Tome muito cuidado. Não comece a pensar que é importante só por causa dos privilégios que vier a receber.

    Logo em seguida, deixou a garota sozinha.

    Jéssica ficou meio confusa com as palavras dela, mas não se importou. Bateu na parede lateral para chamar sua irmã:

    — Mica, tá aí ainda?

    — Tô sim.

    — Magna Madre acabou de sair. Não sei o que acontece agora.

    — Aquela mulher me dá arrepios.

    — A mim também.

    — Vamos dar um jeito de achar logo a pedra pra dar o fora daqui o quanto antes, Jés.

    — Sim.

    Então a porta se abriu e mais alguém entrou.

    Era um homem de mais ou menos 50 anos, barrigudo, de bigode e cabelo escasso.

    — Isaias?

    — Jéssica! Que saudades! — Ele foi até ela e a abraçou. Foi um abraço longo e apertado, daqueles que parentes que ficam muito tempo sem se ver dão.

    A garota, porém, não retribuiu, mantendo seus braços colados ao corpo.

    — Há quanto tempo?! — disse ele, com um sorriso, após finalizar o abraço.

    — Sim.

    Jéssica estava atônita, com a visão e mentes confusos, anuviados. Seu coração disparou.

    Tudo o que ela podia pensar era em Isaías sorrindo vendo ela sendo torturada sob o azorrague do carrasco.

    Ele tinha sido um amigo íntimo de sua família. A conheceu quando era um bebê e a viu crescer. Como acólito do templo, ministrou cerimônias religiosas para sua família, aconselhou seu pai, consolou sua mãe.

    E mesmo assim, naquela hora em que ela estava sofrendo, amarrada ao poste, levando chicotadas ferozes do Executor, tudo o que ele fez foi sorrir de prazer. Mesmo que não fizesse nada para ajudá-la, como todos os outros, por que ele sorriria? Ela não entendia.

    E mesmo assim ele teve coragem de abraçá-la dessa forma! E pior: insinuar que teve saudades? A confusão mental que se abateu sobre Jéssica era feita de puro ódio misturado com um medo assustador. Ele era como o Bicho-Papão das histórias de Mical.

    Jéssica respirou fundo, escondeu o que estava sentindo no fundo do coração e sorriu o sorriso mais amável que conseguiu.

    — Desculpe pela Madre — disse Isaías. — Sabe como é, né? É o procedimento.

    — Eu sei.

    — Sabe, vou providenciar um quarto incrível pra você e pra sua irmã. Posso até dar um jeito de permitir que leiam aquelas revistas de fora que seu pai tinha escondido. Eu posso fazer isso agora. Bom, é claro que algumas não poderão ser disponibilizadas para leitura devido ao conteúdo, mas…

    — E o padre? Ele concordaria com isso? Lembro muito bem do que ele pensava sobre as revistas.

    — O padre está muito doente e não pode mais exercer a função de Prior. Eu sou o Prior Regente agora. Nada mais justo, afinal, eu era o acólito mais empenhado!

    — Você?!

    — Sim — disse ele, com orgulho. — Sou eu quem toma as decisões agora. Controlo os vigias, os Cruzados e todo o Priorado. O General Kézar sempre foi tão arrogante, não se lembra? Agora ele tem que me obedecer! Acredite, se eu quiser, ele não será problema pra vocês.

    Jéssica abaixou a cabeça. Não existiam palavras para exprimir o que estava sentindo.

    — Os acólitos vão te acompanhar até alguns aposentos no templo. Tomem banho, descansem, porque mais tarde teremos um espetáculo. Vou exorcizar um demônio diante de todo o Priorado! Será incrível!

    — Você vai exorcizar um demônio? Um espetáculo? Exorcismos são tudo, menos espetáculos.

    — Agora as coisas são diferentes. Espere e verá. Ah, e tente se comportar. Me pergunto sobre o porquê de sua irmã ter escondido aquele anel.

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