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    — Wooooa! Tem até vinho aqui! — disse Mical, segurando a jarra de barro.

    Sobre a mesinha, estava a bandeja com tigelas de comida: tinha mandioca cozida e temperada com ervas aromáticas, salada de legumes e carne de porco assada. Também tinha algumas amoras maduras, vermelhinhas e de aparência apetitosa.

    Jéssica comeu uma delas.

    — É tão docinha!

    — Ah, que saudade deste vinho! — disse Mical, com as bochechas coradas, enquanto devolvia o copo à bandeja.

    Jéssica riu.

    — Realmente, o vinho artesanal dos Atalaias é uma das poucas coisas que eu senti saudades…

    — Ei, Jés… mas não acha isso estranho? Por que eles dariam isso pra gente? Eles não botariam veneno, né?

    Jéssica, que já estava com a boca cheia, parou de mastigar o suculento pedaço de carne e olhou para Mical de um jeito estranho.

    — Não. Claro que não. Se quisessem nos matar, a fogueira já estaria acesa. Não usariam veneno. Eu acho. Eu espero. — Porém não quis comer mais nenhum pedaço.

    — Precisamos procurar a Pedra Fundacional — disse Mical, com seriedade. — Eu tô pensando bastante onde seria o lugar que eles a escondem.

    — Eu também. Ela, com certeza, está no templo.

    — Sim. E só existem três lugares no templo onde eles poderiam guardá-la.

    Jéssica assentiu.

    — A Biblioteca Central… o símbolo da intelectualidade do Prior. É lá onde guardam alguns dos tesouros mais valiosos de todo o Priorado.

    — A Nave do templo… onde se realiza as missas e cerimônias. É o local que mais se faz necessária a presença de ítens dotados de energia santa.

    — E o terceiro: o centro militar. O local mais protegido do priorado.

    Ambas olharam para o alto, visualizando o quartel general que funcionava na cobertura do templo. Jéssica continuou.

    — Pra falar a verdade, é meu maior palpite. Eu acredito que ela esteja lá em cima, protegida pelos Vigias e Cruzados.

    — Também acho. Mas é o lugar mais difícil pra ter acesso — disse Mical. — Precisamos checar os outros dois antes.

    — Eu concordo.

    A Biblioteca Central ficava no mesmo andar onde estavam, porém nesse andar também ficavam os quartos de alguns soldados e membros importantes da sociedade do Priorado, como o do próprio Prior e outros membros do clero, então elas precisavam ser cuidadosas.

    Rezavam para que sua sensibilidade sobrenatural as ajudasse a prever qualquer pessoa se aproximando.

    Mical pôs a cabeça pra fora do quarto e olhou nas duas direções do corredor.

    — Tá limpo, Jés. Pode vir!

    Elas saíram, cautelosas, e caminharam em direção à biblioteca. Os ouvidos, atentos, captavam o máximo de sons que podiam. Os pés pisavam com cuidado para não  causarem barulho.

    — Tem alguém vindo! — disse Jéssica.

    Jéssica bateu a mão sobre a maçaneta da porta mais próxima e a girou, e, para seu alívio, a porta se abriu, revelando um quarto escuro. As duas entraram rapidamente e fecharam a porta atrás de si, e dentro do quarto, sob a penumbra, a primeira coisa que viram foi o homem dormindo tranquilamente sobre a cama e roncando alto.

    Mical tomou um susto e arregalou os olhos, e quase deixou um grito escapar da garganta, mas ela o deteve no último momento.

    O homem estava sem camisa, ostentando a barriga grande e arredondada, embora o ambiente estivesse geladinho devido ao aparelho de ar-condicionado. Sua batina estava de lado, jogada sobre uma mesinha de cabeceira. Era um padre, não o Padre principal, Prior, mas um importante membro do clero. Se ele as visse ali, com certeza estariam em terríveis problemas.

    Ficaram em silêncio, enquanto ouviam a voz de dois rapazes jovens, possivelmente acólitos, conversando no corredor:

    — … então eu acho essas decisões dele bastante estranhas — disse um deles.

    — Eu também. As razões do Prior Regente estão além de nossa compreensão.

    — Sim. Ele é um homem iluminado por Deus. Dizem até que ele conversa com um anjo! Espero um dia ser como ele e…

    Assim que a voz deles ficou distante o bastante, as duas giraram nos calcanhares, no maior silêncio possível, abriram a porta e saíram do quarto.

    Correram em direção à biblioteca, com pés silênciosos, porém rápidos.

    Quando chegaram, não hesitaram. Jéssica rapidamente segurou a maçaneta e a girou e a porta não abriu. Estava trancada.

    — Droga! E agora?! — Jéssica mordiscou os lábios, um sinal de nervosismo. — É óbvio que estaria trancada!

    — Já sei! — disse Mical. — Aquele padre gordo!

    — O quê? O que quer dizer?

    — Ele com certeza tem a chave! Deve estar numa das gavetas da mesinha de cabeceira ou talvez num dos bolsos da batina! A gente só precisa… entrar lá e pegar enquanto ele tá dormindo!

    — Tá maluca?! Se ele acordar e ver a gente, estamos ferradas!

    — Verdade. Então precisamos ser silenciosas.

    Jéssica considerou a ideia por um segundo, e então tomou sua decisão:

    — Que se dane! Já estamos aqui mesmo. Vamos lá!

    Com o maior cuidado do mundo, abriram a porta do quarto e entraram. E, para a surpresa delas, o padre não estava mais dormindo. A cama estava vazia, com uma marca de amassado no colchão onde ele estivera deitado, devido ao peso.

    Então ouviram o som da descarga vindo do banheiro e, logo em seguida, o som de chuveiro.

      — Rápido! — sussurrou Jéssica. — Eu olho a mesinha e você a batina!

    Jéssica correu e começou a vasculhar as gavetas da mesinha rapidamente; suas mãos tremiam, e a respiração estava descompassada, frenética. O coração batia forte e ela podia sentir a pulsação batendo nas artérias do pescoço. Precisava achar aquela chave antes de o padre terminar seu banho.

    Mical, por outro lado, estava mais calma. Embora determinada e com a mesma agilidade, não estava tão nervosa. Talvez porque acreditava que tudo terminaria da melhor forma possível. Tinha fé, afinal.

    Os bolsos da batina eram longos e largos, se estendendo até onde ficariam os joelhos. A garotinha meteu a mão dentro deles e começou a tatear procurando pelo molho de chaves.

    Quase pularam de susto quando alguém bateu à porta.

    — Senhor Eusébio!

    — Sim, Asafe?! O que foi? — gritou o padre barrigudo de dentro do banheiro, mal humorado. 

    — O Prior Regente deseja vê-lo!

    — Ah, merda! — murmurou e em seguida pigarreou, limpando a garganta. — Certo! Certo! Avise o Prior Regente que estou indo!

    Após responder, ele tossiu uma tosse seca, daquelas que parecem que vão arrancar metade da garganta, e deu uma escarrada que poderia ser ouvida à distância.

    — Puta merda! O que será que esse Isaías quer comigo agora? — murmurou para si mesmo. — “Prior Regente” o cacete! É só a porra de um acólito!

    Terminou rapidamente seu banho e saiu do banheiro, voltando para o quarto. Pegou sua batina, que estava jogada sobre a mesinha e a vestiu rapidamente, um tanto desajeitado, precisando dar uma encolhida na barriga para caber, e logo depois de ter saído de seu quarto, passou as chaves na fechadura, trancando-o no escuro.

    As duas garotas, que estavam escondidas debaixo da cama, se entreolharam, assustadas.

    Mical curvou os lábios num sorriso de orelha a orelha, e então mostrou para Jéssica a chave que segurava entre os dedos. Nela havia uma pequena etiqueta onde estava escrito “Biblioteca Central”.

    — Eu arranquei do molho de chaves a tempo! — disse, orgulhosa. — Fala pra mim se eu não sou demais?! Hã? Eu sou demais ou não sou? É claro que eu sou demais!

    Jéssica assentiu.

    — Fez bem, minha irmã. Mas lembre-se: a humildade é uma virtude!

    Mical bufou.

    — Eu sou humilde, mas também sou esperta o bastante para reconhecer que sou demais!

    — Ah, é? Então fala pra mim, “senhorita demais”, como é que a gente sai desse quarto agora?

    — Ah, como, é? Então… é claro que tem um jeito… er… sabe como, né…

    — Estou ouvindo!

    — Tente ser um pouco “demais” também, Jés! Não seria justo apenas sua irmã menor fazer tudo né? Aliás, seria vergonhoso para você, minha irmã. O que o Renato pensaria se soubesse que você deixa todo o trabalho para sua irmãzinha?

    Jéssica engoliu em seco, suprimindo a vontade de dar uns bons cascudos em Mical, e começou a pensar, procurando por uma solução.

    — Já sei! Precisamos de algo fino e longo, como um lápis ou um prego. Me ajude a procurar!

    — Certo…

    Começaram a vasculhar as gavetas da mesinha de cabeceira.

    — Aqui! Achei uma… caneta. Será que serve?

    Jéssica pegou a caneta e a olhou por um momento.

    — Acho que serve sim. Vamos testar!

    Jéssica foi até a porta e enfiou a caneta dentro da dobradiça, com a ponta voltada para a ponta inferior do parafuso interno, e deu pequenos petelecos com o dedo. O parafuso se deslocou um pouco para fora, e a garota segurou a extremidade superior com os dedos e puxou, removendo todo o parafuso.

    — Uau! Jés! Você é uma especialista em arrombar portas! Poderia ser uma ladra muito eficiente!

    — Isso… isso… — Jéssica estufou o peito, orgulhosa. — Espere! Uma ladra?! N-não… Eu não seria uma ladra… 

    — Eu seria… hehehe… Gatas e ladras, como no filme… — disse Mical, com um sorriso malvado no rosto.

    — Vamos, me ajude a remover os parafusos das outras dobradiças! Depois eu te dou o castigo apropriado por ter tais pensamentos!

    — Jés! Isso não é justo!

    Assim como fizeram com a primeira dobradiça, removeram os parafusos das outras duas, e então a porta simplesmente se desprendeu da parede.

    — Vamos! — disse Jéssica, correndo em direção à biblioteca.

    Assim que chegaram, Mical meteu a chave dentro da fechadura, mas antes que tivesse a chance de girá-la, uma voz masculina falou próximo de seus ouvidos:

    — O que vocês duas estão fazendo aqui?

    As meninas se viraram, no susto, e viram o soldado, com a mão sobre a pistola no coldre. Era um homem grande e forte, de pele escura e cabelos muito curtos, em estilo militar.

    — Vocês duas?! São as filhas de Quemuel?! O que fazem aqui? Venham comigo agora!

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