Capítulo 11: Um avião amarrado em um cometa
Lukin sentiu náusea. Um enjoo tão forte que vomitaria até as tripas se fosse possível vomitar numa situação dessas.
Tudo o que podia ver eram flashes e raios de luz das mais variadas cores, passando por ele mais devagar do que deveria ser possível.
A última coisa que se lembrava era de estar surrando agradavelmente um garoto quando, de repente, aquela súcubo fez um tipo de feitiço de banimento extremamente forte.
Lukin nunca voou colado, do lado de fora, à fuselagem de um avião que estava sendo puxado por um cometa em direção a um buraco negro, mas achou que se isso já tivesse acontecido, a sensação teria sido a mesma que estava sentindo nesse momento.
O demônio quase se desprendeu e saiu do seu corpo, o que seria terrível. Ficar totalmente humano, enquanto era arremessado numa velocidade próxima à da luz, dilaceraria sua carne por completo, faria quase todos os átomos de seu corpo se separarem e jogaria as moléculas restantes por todo o planeta. Não que o planeta fosse sofrer algum dano, mas Lukin nunca mais seria visto. Se tivesse sorte, sobraria a alma. Portanto, ele pôs toda a força que tinha para manter o demônio ainda o possuindo.
E então veio o estrondo. Toda a crosta de gelo em volta se estilhaçou assim que o Mercenário bateu no chão, e ele afundou. A água subterrânea, antes em temperaturas próximas de zero, começou a ferver e a fumaça subiu como um nevoeiro.
Um rugido bestial, inumano, escapou da garganta do Mercenário, e seus olhos brilharam como fogo. E o demônio, mais irritado do que nunca, liberou uma quantidade absurda de energia, e Lukin usou essa energia para impulsionar o corpo para o alto, até emergir do buraco no chão, como um gêiser, sendo arremessado no ar.
Caiu sobre o gelo novamente. Ficou surpreso ao notar que as duas pernas e os dois braços permaneciam colados nele. Ficar em pedaços parecia inevitável, mas ali estava ele, com uma dor infernal indo da ponta dos dedos até a cabeça, mas inteiro.
Estava nu, e o frio começou a incomodá-lo. A paisagem inteira era branca e brilhante, coberta de neve e gelo. O vento glacial tocava sua pele com a sutileza de mil agulhas afiadas.
Não acreditou quando viu as estrelas, principalmente a Polaris, a Estrela Polar, que chamava atenção especial. Sentiu o aroma familiar no vento. Ele reconhecia aquelas montanhas! Crescera com essas águas cortantes!
E, mais importante, reconheceria essa aurora boreal, tingindo o ar com um verde fluorescente, mesmo que se passassem centenas de anos!
— É tão bonito.
Se levantou. Se ficasse esperando, a única coisa que o encontraria seria a morte. Felizmente, Lukin sabia para onde ir. No extremo norte da Russia, no local mais frio onde a civilização já pusera os pés, ele conhecia tudo. Sabia da força das nevascas; conhecia a melhor forma de matar um urso polar; poderia tirar um peixe dessas águas geladas com as mãos nuas! Crescera ali. Era seu lar.
Moveu os dedos com dificuldade. Eles estavam quase congelados. Se não fosse pela resistência sobrenatural, já teria caído duro.
Andou por algumas horas, sentindo o açoite forte da nevasca e o vento frio surrando seus cabelos. O estômago roncava, mas, por azar, nem um maldito urso polar ou uma foca apareceu.
Quase caiu na tentação de se abrigar dentro das cavernas de Bering e esperar a nevasca acabar, mas sabia que morreria antes disso. Cada passo era dolorido. As penas, semi congeladas, se moviam com dificuldade.
Finalmente, viu no horizente os tchuns, casinhas com formato triangular, feitas de peles, como pontinhos negros na neve; e pouco depois ouviu os grunhidos roucos que os rebanhos de renas produzem. Estava definitivamente em casa.
Ignorou a aldeia, onde os poucos membros restantes de sua família moravam, e foi até a caverna Íbis, que ficava aos pés de uma montanha gigantesca que vigiava todo o povoado à pouca distância.
No interior da caverna, com o vento uivando feito lobo pelos vários túneis conectados, Lukin foi até o local do painel metálico instalado numa parede. O painel estava coberto de gelo. Lukin o atingiu com um soco vigoroso, e o gelo se partiu e caiu em vários pedaços.
O painel não tinha botões, apenas um leitor, onde Lúkin pôs o polegar. Após a leitura da digital, uma porta secreta se abriu. Ele entrou. A porta se fechou logo em seguida.
O Mercenário Possuído suspirou aliviado. O interior era quente e aconchegante. Havia várias bugigangas esparramadas. Alguns ítens tecnológicos; outros mágicos. Ele foi até o centro de controle e pegou o comunicador via satélite. Precisava falar com alguém.
*
— Eu juro! Isso é tudo o que eu sei!
O homem, que estava algemado com os braços para trás e de joelhos, abaixou o rosto, encarando o piso de madeira. Vomitava as palavras uma atrás da outra, atropelando-as; engasgava, tossia, gemia. Seu corpo carregava muitas marcas de ferimentos feitos com pregos e de um açoite que Kath carregava sempre na bolsa da Louis Vuitton. Os cabelos haviam sido raspados, e os lábios foram dilacerados com alicate.
— Esse cara… eu não vi ele muito. As poucas vezes eu… que eu vi ele… foi quando eu estava trabalhando para a mineradora. Eu já falei tudo o que eu sei! — Essa última parte ele gritou tão alto que suas cordas vocais arderam.
Kath se abaixou, inclinando-se, olhou o pobre homem bem de perto como se sentisse pena dele.
— Eca! Esse catarro no seu nariz tá nojento.
A câmera fotográfica profissional, capaz de captar os mínimos detalhes de um moribundo, estava presa ao pescoço de Kath. Sua franjinha, alinhada como sempre. Era uma garota magra e baixinha. Tinha de altura, no máximo, por volta de um metro e cinquenta e cinco.
O olhar de pena que ela fez logo se transformou em nojo e surgiu um sorriso de desprezo no canto da boca.
— Ok! Vamos ver… vamos ver…
Ela se virou e, tranquila, caminhou até a cozinha do homem que agonizava no quarto.
Apertou o interruptor para acender a lâmpada e olhou em volta, cantarolando uma música alegre sobre um alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado.
— Ei! Onde estão os talheres aqui? — Ela gritou da cozinha.
— Hã? O quê? — inquiriu o homem, tossindo.
— Os talheres? Onde estão? — Ela pôs só a cabeça pra dentro do quarto.
O homem hesitou por alguns segundos e abaixou a cabeça, tentando pôr os pensamentos em ordem. Por um momento teve esperança dela demonstrar alguma compaixão se ele colaborasse de alguma forma.
— Na primeira gaveta do armário, por quê?
— Obrigadinha.
Ela voltou à cozinha, foi ao armário, abriu a gaveta e pegou uma colher. Passou o dedo sobre a superfície metálica, sentindo-a gelada. Era firme. Ia servir!
Quando passava pela porta, voltando ao quarto, seu celular tocou.
— Alô? Lúkin? Olha quem ainda tá vivo!
— Seu dia de mandar nessa organização ainda não chegou — respondeu ele de forma amigável. Ela percebeu que ele estava respirando pesadamente e parecia cansado.
Kath apoiou as costas na parede e olhou para o homem de joelhos e amarrado a sua frente, que chorava e recitava baixinho algumas palavras, talvez uma oração ou uma despedida. Ela sentiu um calor entre as pernas.
— Feitiço de banimento? Mas seu pingente não deveria impedir que esse tipo de feitiço funcione?
— Deveria — disse Lúkin. — Deve ser um feitiço novo. Sabe como é, né? Eles inventam um feitiço novo, a gente cria um antídoto, aí eles criam outro feitiço e a gente cria outro antídoto. É como a corrida dos antivírus contra os vírus de computador.
— Sei como é. Você deveria ter esperado eu e o Andrei terminarmos essa missão do cristal para irmos todos juntos! Teria menos chance de dar problemas.
— Sabe como eu sou. Gosto de pôr logo a mão na massa.
— Foi irresponsável.
— Eu sei, mas o que passou, passou. Eu tenho um pedido pra te fazer.
— Sabia que queria um favor! Você nunca liga assim só para matar a saudade, Lúkin!
— Ei! Isso não é verdade. Teve aquela vez que eu liguei só para saber como você estava, Kath.
— Você estava bêbado e com tesão. Aí não conta.
— Aí eu perdi no argumento…
— E qual seria o favor, chefe?
— Você poderia, gentilmente, pegar um dos nossos aviões e vir me buscar?
— Buscar? E onde você está?
— Começa com “ca” e termina com “sa”.
— Caça? Eu não entendi.
— Casa. Com som de z.
— Ainda não entendi. Como assim casa? Você está em uma de nossas bases?
— Casa, sabe? Parece um cubo de gelo, tem umas renas, uns ursos e uma galera teimosa que adora viver no frio. Ah, e foi onde você matou pela primeira vez e decidiu que queria uma foto de lembrança. Lar, doce lar. Casa.
— Você tá na Rússia? No povoado de Vassily? — Kath franziu o cenho.
— Acertou, miseravi.
— Para de falar assim. Tá parecendo um tiozão na crise da meia idade.
“Uurg”
— Isso que eu ouvi foi um gemido? — disse Lúkin.
— Foi sim — respondeu ela, com a voz faceira, como alguém contando um segredo divertido.
— Tá trepando?
— Não exatamente. É que eu sou muito proativa, sabe? Tô aqui trabalhando enquanto o Andrei tá visitando o puteiro da região.
— Tá torturando alguém?
— Sim — ela sorriu. — Estou prestes a remover um par de olhos castanhos de uma cabeça expelidora de catarro usando uma colher. Legal, né? — Ela parecia realmente animada. — Eu te envio as fotos depois.
— Não precisa. Nem todo mundo aprecia fotos de mutilações, Kath.
Ela fez beicinho, chateada.
— Nem todo mundo aprecia um bom trabalho artístico erótico, você quer dizer.
— Vai se tratar, Kath. Você é doente.
— Eu sei. Custa ser doente comigo, poxa?! Tô tão solitária!
— Aff — Lúkin suspirou —, certo! Pode trazer umas fotos que eu dou uma olhada. Então capricha nelas!
— Oba! — ela chegou a dar pulinho de alegria. — Então, até mais tarde! Se prepare para as fotos mais incríveis que você verá!
Desligou e guardou o celular no bolso. Olhou para o homem amarrado. Ela ergueu a colher.
— Obrigadinha por esperar — disse, com um sorriso simpático no rosto. — Acho que você ouviu o que vem agora, né?
Ela pressionou a palma da mão sobre o peito dele e o empurrou, o fazendo cair de costas no chão. Ele se debateu, tentando se soltar. Seus pulsos e pés estavam presos por algemas, e uma corda mantinha as duas pernas unidas e dobradas. Estava completamente imobilizado.
Kath aproximou a colher do olho direito dele. O homem se debatia em vão.
— Calma. Eu preciso que você fique paradinho.
— Por favor! Não faz isso! Por favor! Não! Não! Socorro! Alguém! Alguém me ajude!
— Não adianta gritar, bobinho. Estamos no meio do nada. Ninguém vai ouvir. Só um segundinho e acaba, tá bom? Não precisa se preocupar.
Kath tocou a colher na parte de baixo do olho e pressionou, fazendo-a penetrar na órbita. O grito do homem saiu agudo e falhado, cortado pela saliva que desceu através da laringe e o fez engasgar e tossir.
Nessa hora, aproveitando que ele não conseguia mais demonstrar resistência, Kath aproveitou para pegar o celular do bolso e, usando a câmera frontal, tirar uma selfie de cima para baixo, onde mostrava ela segurando a colher pelo cabo e a parte côncava dentro da órbita daquele homem. É claro que ela sabia sorrir para as fotos.
Depois da selfie, ela finalmente terminou de tirar o olho. Se afastou, analisando o que tinha feito.
— Hum… falta alguma coisa pra ficar perfeito.
— M-me — gemeu — m-me mata, por favor!
Ela fez um olhar de pena.
— Tá bom. Mas antes vou tirar umas fotos de você ainda vivo, certo? Não se importa, né?
Dessa vez usou a câmera que estava presa por uma alça a seu pescoço, pois tinha uma qualidade melhor. Tentou vários enquadramentos, mas não estava satisfeita.
— Droga! Se ao menos ele fosse mais fotogênico!
Se cansou. Desistiu de tentar melhorar as fotografias. Foi até a cozinha e pegou a faca. Afinal, ela não podia demorar muito. Lúkin precisava de sua ajuda.
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