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    — O Diabo truca sem zap! — Renato, num único e repentino impulso, sentou-se no leito do hospital. Depois olhou em volta e, confuso, só conseguiu enrugar a testa. Tinha uma cicatriz de queimadura que descia da têmpora direita, cruzava a bochecha e chegava à lateral do queixo. Também sentiu a mandíbula meio dolorida.

    Mical e Jéssica correram até ele.

    — Você acordou! Finalmente acordou! Rezei tanto por isso! — dizia Jéssica, afobada e atropelando as palavras.

    — Ainda bem — disse Mical, contida, com os olhinhos brilhando.

    — O que… o que aconteceu? Isso é um hospital?

    — Você ficou em coma por três anos, Renato — disse Clara que, como num passe de mágica, apareceu, em pé sobre o peitoril da janela, com as asas abertas presas às costas e o vento frio agitando os cabelos negros.

    Renato só conseguiu ficar impressionado com a beleza daquela garota demoníaca.

    — Eu te vi nos meus sonhos.

    — Eu sei. Fui eu quem te deu os sonhos.

    — Foram três anos que passaram muito rápido.

    — Mentira. Desculpe. Eu minto compulsivamente. Foram apenas três dias. E não foi bem coma. Estava mais para dormindo profundamente, ou algo assim. As garotinhas aí não saíram do seu lado.

    — Obrigado por cuidarem de mim — disse Renato, sorrindo para as duas meninas.

    — Estou feliz que você está bem — disse Jéssica, com a voz mais baixa que de costume.

    Mical só respondeu com os olhinhos úmidos e depois pulou sobre ele.

    — Eu tive tanto medo! Tanto medo — disse ela, chorando, enquanto chacoalhava o atordoado Renato. — Ainda bem que você acordou! Eu vi que você salvou a gente!

    — Calma aí, garotinha — Clara agarrou Mical pelo colarinho e a afastou de Renato —, se você ficar sacudindo esse humano assim, no estado de saúde em que ele está, ele vai acabar morrendo de vez!

    — Desculpe — Mical encolheu os ombros.

    — Tá tudo bem — disse Renato, tentando acalmá-la. — Eu me sinto ótimo mesmo!

    — Mais importante! Renato, seu pedaço de merda! Você acabou de ver minhas belas e magníficas asas pela primeira vez e ainda não fez nenhum comentário de elogio! Você tá começando a merecer ter seu pinto explodido!

    — É que eu fiquei sem palavras diante de tamanha beleza, ó grande súcubo!

    — Se você tirar o tom de sarcasmo da voz, pode funcionar melhor!

    — Eu já disse que você é o pesadelo mais lindo que eu já tive, não disse?

    — Disse! Droga! Não tem como eu ficar com raiva de você. Mudança de planos. Não vou mais explodir seu pinto. Vou fazer outra coisa com ele.

    — Vai fazer o quê? — Renato ergueu uma sobrancelha, interessado.

    — Segredo. Depois eu te conto. Tem gente demais ouvindo. — Clara olhou de soslaio para as duas irmãs.

    — Não é justo! — Mical pulou sobre Renato de novo — Eu também quero fazer coisas com o Renato! — disse, com olhos lacrimejados.

    — Mical! Contenha-se, minha irmã!

    — Mas, Jes! Você não vê?! Se a gente não fizer nada, essa demônia vai tomar o Renato só para ela!

    Jéssica engoliu em seco.

    — Tenho certeza que o Renato não se deixaria tentar por esse demônio. — Uma veia pulsando podia ser vista na testa dela.

    — Esse demônio sabe fazer coisas bem gostosas — provocou Clara.

    —Eu também sei — retrucou Jéssica. — Sei fazer doce de abóbora, doce de banana, porco assado com mel e aposto que consigo replicar aquela receita dos brigadores! Se o caminho para o coração de um homem passa pelo estômago, eu não perco em nada!

    — Não tô falando desse tipo de coisa gostosa, garotinha de Deus. Tô falando de algo mais pecaminoso.

    — Tipo uma receita de carne assada na sexta-feita santa? — Jéssica parecia horrorizada.

    Clara meteu a mão no bolso e pegou o celular. Depois de alguns toques na tela Touch Screen, entregou o aparelho para Jéssica.

    — Tô falando desse tipo de coisa.

    As imagens no vídeo foram intensas demais para uma garota virgem, que cresceu num monastério, cristã, e que jamais vira algo tão estimulante. Jéssica percebeu seus batimentos enlouquecendo. Ela arregalou os olhos e pôs a mão sobre a boca.

    — M-meu Deus! M… m… ele está… esse homem está…!

    — Calma. Não tô te entendendo. O que acha disso que está vendo?

    — Eca! Não! Isso é nojento. Ai, Jesus, olha onde ele tá colocando a língua! Não! Não! Não põe a boca aí, moça! Vai precisar lavar a boca depois disso!

    — Nojento? Não! Isso é bonito! É arte!

    — Não! Aí não! Essa parte do corpo não é pra isso! A gente usa isso pra… ah, chega! Onde tem uma igreja próxima? Eu preciso mesmo me confessar!

    — Eu quero ver! — disse Mical, em alto e bom som.

    — Não, minha irmã! Você é nova demais para ver esse tipo de coisa! Acabei de conhecer a face podre a humanidade — disse Jéssica, dramática — e vou te poupar disto!

    — Mas eu quero! E você viu! Não é justo só você ver!

    — Qual é? Deixa a garota ver — disse Clara. — Ela tá curiosa.

    — Não… é uma boa ideia. O que acha, Renato?

    — Acho que quanto mais você superprotege alguém, mais essa pessoa tende a ir pro caminho errado. Se ela conhecer logo o que tem de esquisito por aí, mais anticorpos ela vai desenvolver.

    — Eu não sei o que são anticorpos.

    — Anticorpos são tipo defesas, sabe? Se ela já souber o que tem de bizarro, já se protege contra a bizarrice.

    — Então você acha que eu deveria deixá-la ver esse vídeo que a súcubo me mostrou?

    — Sinceramente, eu acho — respondeu Renato. — A Mical quer ver. Além do mais, um xvídeozinho na vida do ser humano não faz tanto mal assim.

    Jéssica suspirou.

    — Pelo bem dos anticorpos!

    Entregou o celular para Mical.

    A garotinha dos olhos verdes assistiu por poucos segundos, até desmaiar, caindo sobre o chão. Renato pôde jurar que viu fumaça saindo dos ouvidos dela.

    — Que tipo de vídeo você pôs, Clara? — disse ele, enrugando a testa.

    — Então… — disse a súcubo — sabe… é que eu não coloquei o Xvídeos. Eu coloquei o Motherless.

    — Entendi — Renato assentiu. — Vamos aproveitar que estamos num hospital para tentar conseguir um psicólogo para Mical.

    — Mas eu peguei leve. Eu nem cheguei perto do Two Girls One Cup!

    Renato suspirou.

    — Gostos peculiares o caramba! Você é doida pra cacete mesmo!

    Mical se levantou do chão, com a ajuda de Jéssica.

    — Nunca mais nos mostre esse tipo de coisa safada! — disse a irmã mais velha. — Veja como Mical está traumatizada!

    — Hum, desse jeito não vai ser difícil pegar o Renato só para mim — disse Clara, provocadora. — Homens gostam de safadezas, sabia? Se vocês se manterem tão puras assim, vão perder!

    Jéssica pigarreou e desviou os olhos.

    — Eu disse que você não podia nos mostrar, mas se o Renato quiser mostrar, então… talvez… aí pode ser difirente… — ela disse sussurrando, e as últimas palavras foram ditas tão baixas que soaram ininteligíveis.

    — Bom… — Clara disse com seriedade na voz — agora que finalmente estamos todos aqui, acho que tá na hora de finalmente colocarmos algumas cartas sobre a mesa.

    — Do que está falando? — perguntou Renato.

    As duas irmãs pareciam desconfiadas, na defensiva.

    — Vocês duas… já esconderam isso da gente por tempo demais. Eu planejava continuar fazendo vista grossa, mas a coisa mudou de figura. Então, por que não contam pra gente a razão de vocês serem tão valiosas?

    — Do que está falando? — Jéssica enrugou a testa e deu um passo para trás.

    — Eu tô falando, servinha do Senhor, que contratar o Mercenário Possuído não é barato. É bem caro, na verdade. Se a Cruz do Atalaia contratou ele para buscar vocês, significa que vocês duas têm um certo valor. Para falar a verdade, estou curiosa para saber o que eu descobriria se dissecasse seus corpos e almas.

    — E por que será que isso seria da sua conta?

    — Porque eu tive que lutar com o Possuído, sabe? E não foi nada legal. E a culpa, bom, meio que foi de vocês. Aliás, o Renato também lutou com ele. Adivinha? Ele quase morreu por culpa de vocês também. E eu nem preciso falar do incêndio que destruiu a casa dele, aquela casa onde vocês alegremente se hospedaram por alguns dias. E vocês devem saber que ele veio parar no hospital como consequência direta disso, não sabem? Então, por causa de tudo isso, acho que é da nossa conta também.

    Jéssica ficou hesitante por alguns segundos, sem saber o que fazer. Mical pôs a mão eu seu ombro.

    — Por que não, Jes? Por que não contamos logo?

    — Porque… porque não devemos! Ninguém entenderia!

    — Acho que eles entenderiam.

    — Mas… o Priorado nos ensinou que… não… devemos… contar… para ninguém…

    — É. Também nos ensinou que castigar uma garotinha, amarrada a uma árvore, com chicotadas, é aceitável. O Priorado nos ensinou muita coisa, lembra? A maioria deveríamos esquecer.

    Jéssica relaxou os ombros e abaixou o olhar.

    — Tudo bem. Querem saber, eu conto.

    — Sou toda ouvidos — disse Clara.

    Jéssica suspirou, resignada.

    — Ex Azael, o Anjo do Deserto. Somos o mapa e a chave para encontrá-lo e libertá-lo. É por isso que o Priorado, que toda a Cruz do Atalaia, precisa de nós e não vai hesitar em fazer qualquer coisa para nos ter de volta.

    — Anjo do Deserto? Ex Azael? Eu conheci muitos anjos, a maioria tinha nomes asquerosos e fetiches nojentos, mas nenhum deles se chamava assim.

    — Há muito tempo, ele foi o anjo encarregado de levar os pecados dos homens para apresentá-los diante de Deus e interceder pelo perdão. Mas ele tinha uma fraqueza inaceitável para um anjo. Ele sentia genuíno afeto. E, depois de visitar os humanos tantas vezes, ele descobriu o amor numa mulher humana. Ele se apaixonou por ela e isso o levou a quebrar a maior regra do céu: ele se deitou com ela e teve um filho híbrido, a quem chamou de Quemuel. Um dia, Deus, num ápice de ira ao ver tantos pecados nojentos acumulados diante de si, ordenou que Ex Azael destruísse todo aquele povo numa tempestade de fogo e areia. O anjo desobedeceu. Ele implorou a Deus que o punisse no lugar daquelas pessoas, pediu que poupasse a mulher e seu filho, e o Senhor mostrou misericórdia. Entretanto, o anjo foi banido para uma prisão de areia no meio do deserto e esteve preso lá por todos os milênios que se seguiram. Havia, entretanto, uma certa cláusula na punição. Os descendentes de Quemuel poderiam encontrar o anjo preso no deserto e libertá-lo de seu tormento. A informação da localização e a forma de abrir a prisão está escondida na alma dos descendentes. Por isso, é dito que eu e minha irmã somos o mapa e a chave. A Cruz do Atalaia tem protegido e aprisionado os descendentes de Quemuel por séculos! Somos o maior tesouro deles.

    — E suponho — arriscou Clara — que ao libertar o tal anjo, ele seria extremamente grato?

    — Sim.

    — Uma gratidão do tipo que concedes bençãos divinas?

    — Provavelmente.

    — Hum… — Clara mostrou uma careta cética. — Não sei…

    — Acredito nela — a voz veio de trás e, assim que todos olharam na direção, viram a garota surgir, como se tivesse saltado de algum lugar invisível no teto e pousado ali no quarto.

    Tinha os cabelos ondulados e vermelhos, mas não o vermelho ruivo dos cabelos de Mical. Era o vermelho do fogo, com algumas mechas alaranjadas e amarelas. Os olhos eram algo entre o vermelho e o laranja. Renato teve a impressão de sentir a temperatura subir.

    — Soll! — alegrou-se Clara —, que bom que decidiu se juntar à conversa! Mas eu devo perguntar: por que diz que acredita nela? É uma história bastante louca, não acha?

    — Você nunca ouviu falar no Anjo do Deserto, não é? Muito menos em seu filho Quemuel e toda a prole problemática que ele deixou.

    — Não. E, modéstia à parte, eu tenho um amplo conhecimento sobre essas tretas sobrenaturais. O que me deixa com um certo ceticismo.

    — Não tem como saber de tudo, Clarinha — disse Soll. — Principalmente quando se trata de um segredo tão bem guardado. Eu mesma só sei da história porque esbarrei em alguns salamandras bem velhos, quase tão velhos quanto a própria Terra. Uma coisa tão quente assim na vizinhança, é óbvio que os salamandras ficariam sabendo — ela deu de ombros. — Mas uma garotinha humana aleatória assim? Sem chance de saber, a menos que esteja diretamente envolvida.

    — Algum demônio pode ter contado para ela — sugeriu Clara.

    — Você, Clara Lilithu, é o primeiro demônio a saber da história de Quemuel. Até mesmo os anjos tiveram a memória apagada.

    — Apagada por quem? — Clara franziu o cenho.

    — Oras, por quem? Por Deus, é claro. Só da gente estar conversando sobre isso agora, já deve ser um pecado intergalático.

                — Hum — Clara ficou pensativa —, mas algo ainda me intriga sobre isso. A Cruz do Atalaia amarrou essa menina num poste e a açoitou com o azorrague, e depois procurou marcas pelo corpo dela. Sabe o que fariam se encontrassem alguma marca, não sabe? Acho que se lembra da caça às bruxas da Santa Inquisição. — Ela bufou — Como se fossemos deixar algo tão tosco quanto uma marca!

    — É, tenho uma ideia do que fariam — respondeu Soll.

    — Então… se elas são assim tão valiosas, eles não a matariam, matariam?

    Soll riu.

    — Ora, Clara, pra um demônio, você está sendo muito inocente. Eles precisam da linhagem dela; não dela. Acho que você consegue pensar em como eles resolveriam o problema.

    Clara fez uma careta azeda.

    — É… faz sentido. E sua irmã, onde está? Quero saber se ela tem algo a acrescentar sobre essa história.

    — Minha irmã disse que ficou entediada de olhar essas duas e saiu para tomar sorvete. Mas, sendo franca, antes de sair ela disse que sentiu algo tão ridiculamente angélico nessa garotinha menor, que sentiu náusea.

    Clara sorriu.

    — Ora, ora… parece que esbarrei em algo valioso dessa vez.

    — O que vai fazer com a gente? — Mical tinha os típicos olhinhos brilhantes.

    Clara meteu a mão no bolso e tirou um molho de chaves, o qual jogou para Soll, que o aparou em pleno ar.

    — Meu carro tá lá embaixo. Leve essas duas para minha casa, por favor.

    — Certo.

    — Renato, tá afim de ver estrelas?

    Assim que Renato se segurou, com um abraço apertado, em Clara, ela bateu as grandes e belas asas, e ambos desapareceram pela janela.

    Soll percebeu o olhar de ciúmes nas duas irmãs.

    — Sabem que se não forem mais ativas, e não fizerem algo a respeito, ela vai ficar com ele só para ela, não sabem?

    Jéssica só bufou. Mical pareceu realmente preocupada.

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