Índice de Capítulo

    Renato, no começo, sentiu medo, mas o medo logo passou. Ficou só aquele pequeno resquício de frio na barriga que sempre aparece quando se está em lugares altos.

    Ele se agarrou à súcubo como se sua vida dependesse disso, porque dependia. Ela parecia alucinada. As asas batiam ferozes e suaves, como numa estranha combinação de balé e globo da morte.

    A noite estava exuberante. As estrelas, derramadas sobre o negrume da noite, lembravam pó de vidro. O vento era fresco, friozinho, e bagunçava os cabelos. A lua cheia, soberba e majestosa, completava a paisagem.

    — Dá pra ver quase toda a cidade daqui! — disse Renato, maravilhado com as pequenas luzinhas amareladas lá embaixo.

    — Eles parecem formiguinhas, não parecem?

    — Parecem sim!

    — Um dia, Renato, vou te levar para voar ainda mais alto!

    — Suas asas são lindas! Por que não mostrou elas antes?

    Clara pareceu constrangida. Enrubesceu.

    — Na verdade, essas não são minhas asas.

    — Mas você disse que eram.

    — Eu também já disse que minto compulsivamente, não disse? Pois é!

    — Então como?

    — É uma pena de fênix. Elas podem dar asas para alguém. Por tempo limitado, é claro. A energia mágica acaba depois de algumas horas de uso.

    — Uma pessoa comum poderia usar essa pena para voar também? — Teve de gritar. Um grupo de pássaros barulhentos passou grasnando ao lado.

    — Pff — riu a súcubo. — É claro que não. É necessário ter alguma magia em si para usar itens mágicos. Olha só o que eu sei fazer!

    Clara fez uma manobra brusca e deixou-se cair em queda livre por alguns segundos, depois, deu um voo rasante e, batendo as asas com ímpeto, ganhou as alturas. Renato se lembrou da vez em que foi no brinquedo Kamikaze.

    — Legal, né? — disse a súcubo.

    — É, mas se fizer isso de novo, acho que vou devolver pro mundo toda aquela comida de hospital.

    — Se vomitar na minha roupa…

    — Já sei… já sei… você explode meu pinto.

    — É.

    — E como esse lance de explosão peniana funciona?

    — Como assim?

    — Tipo… tem que ter algum princípio físico por trás. O que realmente acontece com o corpo do coitado que termina com o pinto explodindo?

    — Ah, de forma resumida, o feitiço mexe com o sistema límbico e alguns hormônios, o que altera todo o fluxo de sangue. Faz todo o sangue do corpo ir pro pênis, até os vasos sanguíneos não aguentarem mais a pressão e estourarem. Aí a pressão rasga todos os tecidos em volta. É mais ou menos isso.]

    — Ai! Deve doer!

    — Ah, sim, dói pra caramba! Uns quinze na escala de dor, e olha que a escala oficial só vai até dez. Ei! Ali! Já da pra ver minha casa! Estamos chegando!

    Clara mergulhou no ar e planou, num rasante. Parecia uma ave de rapina. Foi em direção a um predinho de três andares e pousou sobre o gramado verdinho. O jardim era lindo, composto por palmeiras dos mais diversos tamanhos, coqueiros com cocos verdes pendurados  e arbustos podados nas mais variadas formas.

    Caminhos feitos de pedras serpenteavam entre as plantas e chegavam ao belo chafariz com água cristalina e a estátua de um cupido se masturbando.

    Toda a propriedade era cercada por altos muros.

    Renato não quis se aproximar do chafariz. Se tivesse chegado perto, teria visto os peixes ornamentais nadando na água transparente.

    O térreo do predinho não tinha paredes, apenas as grossas pilastras de sustentação. Servia como estacionamento para os carros luxuosos, alguns bem antigos.

    Clara meteu a mão no peito e puxou a pena de fênix. Na mesma hora, suas asas desapareceram.

    — Posso tentar? — perguntou o garoto.

    — Quer ver se consegue voar? — Clara ergueu a sobrancelha, desconfiada, e depois mostrou uma cara de piedade — Pode. É só bater ela contra o peito e mentalizar as asas.

    Renato pegou a pena de fênix e seguiu as instruções. Nada aconteceu. Ele abaixou os ombros, abatido.

    — Eu avisei que precisava ter magia pra conseguir usar.

    — Mas… eu achei que poderia ter. Você mesma disse que tem algo de estranho comigo, não disse? Eu pensei que… que… sei lá… talvez… — Ele desviou os olhos.

    — Mas eu nunca disse que vi magia em você. Você é mais tipo um grande borrão onde não dá pra ver quase nada. Quero dizer, nada além dessa roupa de carne que vocês humanos vestem.

    — Hum… — Renato franziu o cenho. Estava frustrado. Ele descobriu em tão pouco tempo a existência de tantos poderes, entretanto, continuava sendo tão pequeno. Se sentiu um peixinho perdido no oceano profundo.

    — Ei, não fica assim! Existe uma forma de você ficar forte, sabia? — Ao notar o interesse do rapaz, Clara continuou: — Você já atirou antes?

    *

    O primeiro tiro passou longe do manequim com alvo desenhado no peito. Estavam num grande estande de tiros, localizado no primeiro andar do predinho de Clara. Havia várias divisórias, com vários alvos, feitos para atirar e também descarregar a raiva em momentos de tpm demoníaca.

    Na parede oposta às divisórias, havia prateleiras com armas dos mais variados tipos, tamanhos e calibres. Desde fuzis capazes de derrubar um helicóptero até bestas em modelo medieval.

    Renato usava um revólver 38, de um cromado brilhante que poderia ser usado como espelho, o qual escolheu porque já conhecia o modelo.

    — Você precisa firmar mais a mão! — aconselhou Clara. — Qualquer pequeno movimento que fizer, muda completamente a direção da bala. Tenta de novo.

    Renato respirou fundo e apontou a arma para o manequim que estava a trinta metros. Fechou um dos olhos para ajudar na mira. Puxou o gatilho e… errou. Renato estalou a língua e xingou em pensamento.

    — Foi ótimo! — disse Clara, batendo palminhas com animação.

    — Mas eu errei!

    — É, mas seria estranho se não errasse! É seu segundo tiro e pra um segundo tiro foi ótimo! Você até chegou mais perto do alvo do que na primeira vez. Mais alguns treinos e vai ser o gatilho mais rápido do centro-oeste!

    Renato sorriu e assentiu com a cabeça. Naquele momento ele decidiu que seria um bom atirador. Se empenharia para isso. Apontou a arma e continuou treinando. Algumas vezes foi pior, outras chegou bem perto de acertar o alvo.

    Foi quando o celular de Clara vibrou. Ela o pegou e olhou a mensagem na tela.

    — Que ótimo! — disse — elas chegaram. Agora eu posso mostrar meu brinquedo novo.

    *

    — Ah, estávamos só treinando tiro — disse Renato.

    Por algum motivo que ele desconhecia, Jéssica estava meio mau humorada. Até Mical parecia incomodada com alguma coisa.

    — Você sempre passa muito tempo sozinho com ela, então… — a voz de Mical foi sumindo — Não é justo…

    Os olhos  dela lacrimejaram.

    — Ah, que fofinha! — disse Clara, encarando os brilhantes olhos verdes da menina — pena que não tem coragem de fazer nada a respeito. Não adianta nada desejar uma coisa, menininha de Deus, se não tem coragem o bastante para pegar.

    Mical bufou sem paciência.

    — Pois saiba você que os filhos de Quemuel nunca fogem de uma disputa! — berrou Mical para Clara, em seguida apontou para Renato — Renato! Se prepare que eu vou… eu vou…eu vou te b-beijar agora mesmo!

    — Eita preula!

    Mical avançou sobre Renato, pegou-o pelo colarinho e o pressionou contra a parede. Estava com as bochechas coradas. O coração batia forte. Ela o encarou, dramática, e deu-lhe um selinho na boca.

    O beijo durou uns dois segundos, então a garota se afastou um pouco. Estava ainda mais vermelha e tinha medo. Medo de ser rejeitada. Medo dele empurrá-la para longe, chamando-a de louca, e que nunca mais iria querer vê-la. Entretanto, recebeu um olhar cheio de ternura e carinho, que aqueceu seu coração e chutou o medo para longe.

    — Você é realmente muito linda — disse Renato.

    A garota gemeu e suas pernas tremeram. Ela quase caiu no chão, mas conseguiu se manter em pé. Sorriu com genuína felicidade. Foi a primeira vez que Jéssica viu a irmã tão feliz em muito tempo.

    Foi quando Mical sentiu um sopro gelado no pescoço. Ela deu um pulo, assustada, e se escondeu atrás de Renato.

    Uma garota pálida, dos olhos e cabelos da cor do gelo, ria gostosamente.

    — Oi, Mical.

    — V-você?! Quem é você? Eu não te conheço!

    A garota pálida fez beicinho, chateada.

    — Conhece sim! Já nos vimos antes! Lá no banheiro do hospital! Ou será que foi só eu que te vi? — Ela parou para pensar a respeito, tentando se lembrar dos detalhes.

    — Foi você! Você explodiu o espelho! E ainda ficou me seguindo por todo lugar com esse seu frio do mal!

    — Meu frio não é do mal — ela pareceu ofendida.

    — Irmã — Soll, a garota dos cabelos de fogo, disse —, por que tanto bullying com a coitada? A Clara só pediu para ficarmos de olho nelas.

    A irmã deu de ombros.

    — O que importa é que foi legal.

    — Eu não achei — disse Mical, entredentes.

    — Lua! Que bom que também se juntou a nós! — disse Clara. — Eu já ia contar meu plano de ação.

    — Lua? — Mical ergueu uma sobrancelha, achando que tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto.

    — Sim. Somos as irmãs Soll e Lua.

    — O pai de vocês, por acaso, era astrônomo? — Renato franziu o cenho.

    — Não — respondeu Lua —, nosso pai era um elemental infiel que adorava visitar os diferentes clãs na surdina.

    *

    — Então, basicamente, isso vai detectar a presença do Mercenário Possuído? — Lua olhou incrédula para a antena.

    Clara os havia conduzido até o terraço, de onde se podia ver ao longe a paisagem noturna da cidade. Bem no centro existia uma piscina com várias cadeiras e mesas em volta, e um bar pessoal.

    A súcubo tinha pegado a antena de dentro do bar e conectado-a a uma tomada.

    Também a conectou a um notebook via cabo USB, digitou alguns comandos estranhos, e então as duas antenas com formato de parabólica começaram a se mover, girando num ângulo de 180 graus cada. As duas, unidas, cobriam os 360 graus. A antena maior, fina e com formato cilíndrico, se erguendo como uma haste, não se movia, entretanto era a mais importante.

    — Exatamente! — disse Clara, orgulhosa. — Isso é um detector de possessões demoníacas que cobre uma área de 15 quilômetros de raio. Foi feito por um alquimista experiente. Eu configurei as antenas para notificarem só em caso de possessão com controle simbiótico, que é o caso do Lúkin. Se ele apitasse pra qualquer possessãozinha com domínio absoluto, ele não ia deixar a gente em paz.

    — Saquei — disse Lua.

    — Dessa forma, ele não vai mais pegar a gente de surpresa. Assim que aquele maldito filho da mãe puser os pés na cidade, nós saberemos. E seremos nós a fazer a emboscada dessa vez!

    Jéssica, Mical e Renato permaneciam calados.

    Soll suspirou.

    — E depois? Hã? E depois o que vai fazer? Pular heroicamente sobre ele, dando socos, chutes e pontapés para, no fim, morrer? Você já teve melhores instintos de preservação, Clara.

    — Por que simplesmente não foge? — disse Lua, com preocupação.

    — Não adianta fugir! Ele viria atrás! Nos perseguiria! É melhor esperá-lo e pegar esse desgraçado com a guarda baixa!

    — Ele nunca fica com a guarda baixa, Clara — disse Soll. — Além do mais, tem a Kath, aquela doida da franjinha que acompanha ele por todo lado. Ela é esperta! Acha que eles não conhecem os alquimistas e suas bugigangas?

    — É nossa melhor chance — retrucou Clara. — Ele não é o demônio aqui! Eu sou! Vou mostrar o inferno àquele merda! E com a ajuda de vocês duas, seríamos ainda mais imbatíveis.

    Lua riu, como se acabasse de ouvir uma piada divertida.

    — Uma vez eu prendi ele dentro do gelo e descarreguei um fuzil no maldito. Sabe o que aconteceu? Ele saiu de dentro do gelo como se não fosse nada, segurou meu fuzil com as mãos e o quebrou como se ele fosse feito de isopor.

    — Não é só a força sobre-humana — disse Soll. — Não é só o demônio dentro dele que o torna perigoso. Ele carrega vários amuletos contra ataques mágicos e tem tecnologia o suficiente para bater de frente com nossos poderes. Uma vez ele me acertou com um tipo de substância química e eu fiquei sem poder controlar e produzir fogo por dois meses. Foi obra da Kath, é claro. Ela é uma psicopata da pior estirpe, mas é uma excelente estrategista.

    — Então, basicamente, duas elementais poderosas com poder sobre o fogo e o gelo estão com medo de um cara que vendeu a alma e uma mulher de 50 quilos?

    Soll suspirou.

    — Desculpe, Clara. Essa luta não é nossa e o risco também não precisa ser. Mas acredite em mim quando eu digo, eu realmente torço para que você sobreviva.

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