Índice de Capítulo

    Renato desceu as longas escadas que, estranhamente, pareciam familiares. Chegou em uma grande sala, tão grande que era impossível ver suas paredes, mas sabia que estavam lá, em algum lugar, talvez a anos-luz de distância.

    O local era quase todo azul clarinho, mas tinha muitas manchas amareladas, vermelhas, brancas e pretas. As pretas eram muito maiores do que as outras. As manchas pareciam se mover e se mesclar, formando novas cores.

    E bem no centro de tudo havia dois homens gigantescos, sentados em cadeiras que, para espanto de Renato, lembravam muito cadeiras de bar. Era possível até que aquele amarelo sobre o vermelho atrás do encosto, de proporções estratosféricas, fosse a palavra Skol.

    E entre os dois homens havia uma mesinha com um montinho de cartas de baralho empilhadas e duas outras cartas viradas com as faces para cima.

    Um dos homens, com a aparência que era uma mistura de galã de novela com protagonista de filme de super-herói, lançou para rapaz, por sobre as duas cartas de baralho que segurava nas mãos, um olhar desconfiado.

    Renato sentiu aquela vertigem e tontura típicas que se sente quando se encara torres ou prédios muito altos. Porém, dessa vez foi como se os prédios o encarassem de volta.

    — É a segunda vez que esse garoto vem até aqui

    — Terceira, na verdade. Ele desceu há bem pouco tempo de novo, só que não conseguiu chegar nesse andar — respondeu o segundo homem gigante, também olhando por sobre o par de cartas que tinha na mão. Não dava para distinguir sua aparência. Era mais como um borrão. Mesmo assim parecia um bocado gentil.

    — Terceira, então. Deveríamos deixar ele continuar? É perigoso. Dessa vez o moleque pode mesmo conseguir chegar à jaula dele.

    O outro homem deu de ombros.

    — O que tiver que acontecer, vai acontecer.

    — É só isso? Você não liga? Você, o criador de tudo, não se importa com a catástrofe universal que pode acontecer se aquele cara encontrar o condutor? Não liga se a sua preciosa criação for destruída e todos os átomos serem reduzidos a simples especulações quânticas?

    O homem borrão estalou a língua.

    — Eu sou quem mais se importa, Lúcifer. Eu sou quem mais trabalha pra manter tudo em ordem! O que tiver que acontecer, vai acontecer, já disse!

    — Se você não liga o bastante para fazer algo a respeito, eu ligo! Eu sou parte de sua criação também, Deus, e a ideia de desaparecer da existência, junto de todo o resto, não me agrada nem um pouco! — retrucou o Diabo, jogando as cartas sobre a mesa, com as faces voltadas para baixo, é claro. Depois começou a se levantar. — Eu mesmo vou pisar nesse primata como o inseto que ele é!

    — Sente-se, meu filho. Deixe o humano em paz, pelo menos por agora. Temos um jogo para terminar.

    O Diabo lançou mais uma encarada tenebrosa para Renato. Depois suspirou e voltou a se sentar. Pegou as cartas de volta, sorriu de forma desafiadora e encarou seu criador.

    — Truco!

    Deus deixou uma gargalhada escapar da garganta.

    — Você pode ser o pai da mentira, mas eu criei a verdade. Eu reconheço um blefe quando vejo, mesmo que seja um bom blefe. Desce carta!

    O Diabo engoliu em seco. Seu olhar continuou altivo e confiante por alguns segundos, mas logo mudou, e os ombros caíram.

    — Merda!

    Deus só conseguia dar gargalhadas.

    Renato, um tanto atônito, continuou andando. Andou, andou, andou, até não ter mais chão para ser pisado, e o rapaz caiu no vazio e continuou caindo, talvez, por milênios.

    Até que atingiu o chão, com uma pancada forte. Cuspiu areia da boca e tossiu. Se ergueu. Estava no centro de uma grande arena, parecida com um estádio, feita de pedra. O sol, que parecia maior e mais avermelhado que o normal, brilhava com força e fazia a areia sob seus pés parecerem o assoalho de uma frigideira. Arquibancadas, no momento vazias, se erguiam em direção ao céu. Uma brisa fedida irritava o nariz e dava vontade de vomitar.

    Foi quando as areias começaram a descer, em redemoinho, como se estivessem fluindo por um grande funil no chão, e Renato estava bem em cima do funil.

    As areias já o cobriam até a cintura. Ele, no entanto, não sentia vontade de fugir. Ele sabia, de alguma forma, que aquelas areias o levariam até onde precisava chegar.

    Embaixo da terra, seus pés não sentiam nada a não ser uma sensação gelada.    Quando mergulhou por completo, as areias sumiram e Renato caiu no vácuo do universo. Tudo o que podia ver eram as estrelas distantes num imenso vazio escuro. Alguma coisa continuava puxando-o, como o resquício de uma gravidade ou talvez um sopro contínuo. Se deixou levar, como alguém que para de nadar e apenas flutua sobre a superfície da água.

    Estava descendo em direção a um gigantesco círculo preto. A cada segundo, a descida ficava mais rápida e não demorou para parecer uma queda. Sentiu todo o corpo se esticando e ficando parecido com um espaguete.

    Viu um pequeno feixe de luz caindo ao seu lado, acompanhando-o. Esticou o braço e tocou o feixe, atravessando-o com os dedos. Viu, através da luz, uma criança pequena no colo de uma mulher. Reconheceu os belos cabelos negros e o rosto delicado, e olhos amorosos cheio de ternura.“Mãe!” pensou e tentou tocá-la. Derrubou alguma coisa, talvez um brinquedo, e a mulher olhou em sua direção e, assombrada, deu um grito. Renato tirou a mão do feixe de luz e novamente ficou sozinho.

    O círculo negro estava ficando cada vez maior. Teve a impressão de ver o tempo, finalmente, se separando por completo do espaço. O gigantesco círculo negro estava em toda a sua volta agora. No fim, Renato entendeu como fazer uma divisão por zero. Quando acabou, ele estava cercado pelo nada.

    Nada, exceto a grande jaula de grades brilhantes e transparentes. A palavra “diamante” passou pela cabeça de Renato. Dentro da jaula, preso por correntes douradas, havia uma figura que, de início pareceu um leão, depois ficou longo e rastejou, como uma cobra. Finalmente, a figura começou a se parecer com uma pessoa.

    Renato estava flutuando ao lado da jaula. Não havia mais nada, nem um brilho distante de uma estrela fraca, nem o  menor resquício de temperatura. Não havia frio nem calor. Até o escuro não era como o escuro da terra. O escuro a qual ele estava acostumado ainda era alguma coisa, mas ali estava o vazio completo.

    — Você finalmente conseguiu chegar. — A coisa dentro da jaula falou e sua voz era artificialmente humana.

    — Chegar onde? O que é esse lugar? É para cá que vem aqueles que morrem?

    A coisa riu.

    — Não. Você é o primeiro humano a vir até aqui. E isso só foi possível porque eu te chamei, te mostrei o caminho e quebrei todas as barreiras dimensionais do percurso.

    — Você… eu ouvi sua voz na minha cabeça! Vi coisas que você me mostrou. Vi a destruição.

    — Você gostou do que viu, não gostou?

    — Você não respondeu minha pergunta. Que lugar é esse?

    — Aquela súcubo, respondendo todas as suas perguntas, te deixou mal acostumado. — A coisa riu de novo —Pense no universo como um grande tecido elástico. Coisas muito pesadas distorcem esse tecido para baixo e é isso que vocês humanos chamam de gravidade.

    — Já vi um vídeo sobre relatividade que falava algo assim.

    — Sim, certo. A ciência humana descobriu algumas coisas, sim. Mas esse tecido tem que estar apoiado sobre alguma coisa, não concorda? Embaixo do universo, o que acha que existe?

    Renato franziu o cenho. Estava confuso. A coisa vasculhou a mente dele, revirando memórias, atrás de informações que pudesse facilitar a comunicação. Achou uma coisa útil e prosseguiu.

    — Se lembra de quando baixou o Unity e tentou criar um jogo de computador?

    — Como sabe disso?

    — As coisas que você criava, as formas que colocava no game, é como o universo criado. Aquele vazio cartesiano que existe por baixo é mais ou menos parecido com o lugar que estamos agora.

    — Então estamos embaixo do universo?

    — Em sentido figurado, sim.

    — Quem é você e o que quer comigo?

    — Para responder isso, vou precisar contar uma pequena história.

    — Sou todo ouvidos.

    — No princípio, havia um ventre. E esse ventre gerou dois deuses gêmeos: Mazda e Arimã. Mazda era o irmão favorito, predestinado a nascer primeiro, e, assim, ganhar os direitos de controle sobre a existência e criar o universo. Arimã, descontente, enfrentou o próprio destino e forçou um nascimento prematuro, cumprindo os requisitos para ganhar o controle de tudo.

    Não importa os meios, não é? Nascer primeiro é nascer primeiro. Entretanto, Arimã foi traído e confinado numa prisão eterna para que seu irmão governe no lugar.

    — Então você é…?

    — Sou Arimã. Aquele que, por nascimento, tem direito ao universo inteiro.

    — Então você é tipo Deus?

    — Não. Sou algo melhor. Alguém com mais bom gosto estético, no mínimo.

    — E Mazda… seu irmão…?

    — Ele sim é o que vocês chamariam de Deus.

    — E o que você quer comigo?

    — Eu não sou feito da mesma matéria que seu universo, Renano Yakekan. Se eu me libertasse de minhas correntes, e meus átomos entrassem em contato com os átomos da sua realidade, eu explodiria, junto de todo o seu sistema solar. Mas a pior parte é que seu universo nem sentiria e seguiria existindo normalmente. Acho que os cientistas humanos diriam que eu sou feito de antimatéria. E é aí que você entra, jovem humano. Você é o primeiro ser consciente do universo que consegue manter uma conexão mental estável comigo. Preciso que você me represente, que conduza minha consciência para o universo, que seja meu condutor. Em troca, você terá acesso ao meu poder. Quanto mais forte se tornar sua mente e corpo, mais do meu poder você poderá usar. Se ficar forte o bastante, poderá, com facilidade, derrotar até mesmo os deuses.

    — Deve haver riscos, imagino.

    — É claro que há. Tudo na vida, ou anti vida, envolve riscos. Mas que escolha você tem? Você não poderia derrotar aquele mercenário nem se fosse o maior especialista em artes marciais do mundo, nem mesmo com as melhores armas. Mas, se estiver em conexão comigo, você pode. Ele não seria páreo para você, Renato. Quer salvar suas amigas, não quer? Sabe o que aqueles fanáticos fariam com elas? Dissecariam toda a carne delas enquanto elas gritam e rezem em vão. Eles vão estuprá-las para gerar a próxima geração de filhos de Quemuel e depois queimá-las como bruxas na fogueira. Se quer evitar isso, toque na minha mão.

    Arimã estendeu o braço. Não ultrapassou as barras da cela, mas chegou bem perto delas, a ponto de Renato poder alcançá-lo.

    O rapaz hesitou um pouco. Se aproximou e tocou na mão da coisa disforme aprisionada. Algo saiu de Arimã, se rastejando, sibilando, e subiu no braço de Renato. Conforme subia, ia desaparecendo, afundando sob a pele. Até que todo aquele fluido gelatinoso desapareceu totalmente dentro de Renato. Arimã recolheu o braço.

    — Agora, uma parte da minha alma habita dentro da sua. Nossa conexão mental ficará ainda mais forte. Poderemos nos comunicar com facilidade e meu poder estará ao alcance de suas mãos. Vá, humano, e torne aquele universo um lugar muito mais interessante!

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