Inacreditável. Era deslumbrante. Kaen jamais esteve em uma cidade grande ou capital. Na verdade, nunca saira de sua pequena e endogâmica vila, ou seja, estava admirado com a magnitude dos prédios e casas.

    A bagunça sonora gerada pelo conjunto das buzinas, motores e dos pneus dos carros e caminhões rasgando o chão, acabava incomodando-o de certa forma. Mas, não sobrepunha a beleza, para ele, futurista e diferente da megalópole.

    Ao seu lado, seu pai e sua mãe caminhavam. O odor de combustíveis fósseis aliado aos agradáveis cheiros de churros e delícias em barraquinhas rondava os recém-chegados. O casamento não era dos melhores, inversamente, era atormentador. Porém, precisavam fingir que se amavam, afinal, era aniversário de dez anos do garoto.

    A mãe vivia em uma lúdica fantasia emocional, desejava que seu marido lhe desse o mínimo de valor, sonhava com esse momento em família há muito tempo.

    Por outro lado, seu esposo era corroído por sua consciência, não queria ser considerado um pai ruim, ao menos tentara ser decente no aniversário de seu filho. Tirou uma parte da renda mensal e passeou com a família que, infelizmente, havia formado.

    Kaen percebia tudo isso, sabia o pai que possuía. Ele o odiava. Odiava tudo o que já tinha-lhe feito. Porém, no fundo, só queria sentir o gosto de ser uma criança com uma vida comum. Mesmo que irreal.

    Caminhavam pela cidade.

    — Mãe, para onde vamos? — perguntava Kaen, deslumbrado.

    — Seu pai que sabe.

    — Começou.

    — O quê, querido? Você não me disse nada, achei que sabia onde íamos.

    — Você quer que eu faça tudo. Já trabalho o dia inteiro, tirei dinheiro de onde não tinha para virmos e ainda quer que eu diga o lugar, Misaki?

    O estômago de Kaen se revirava ao escutar, porém, apenas conseguia se manter calado. Sentia-se acorrentado, como se sua boca estivesse coberta por fita.

    — Tá, então vamos no Uli. Pode ser, Kaen? — dizia Misaki, sorrindo e tentando desviar o foco de Kaen da discussão.

    — Pode — respondia, mesmo sem saber o que diabos isso significava.

    — Pode ser, Joe?

    Joe olhava apenas para frente, inexpressivo.

    — Tá.

    Os três caminhavam por algum tempo, Kaen começava a se acostumar levemente com o barulho. Então, avistaram Uli. Uma bonita e requintada sorveteria. As paredes alternavam entre as cores rosa e branco, por fora, era possível ver o leiteiro da loja — ULI — rodeado por três artísticas e bem-desenhadas bolas de sorvete de morango.

    Ao entrar no estabelecimento, Kaen sentira a brisa gelada e refrescante do ar condicionado que ditava o clima desestressante do local. Visava as criativas mesas em formato de casquinhas e os meigos uniformes dos funcionários. As janelas estavam por todo o estabelecimento, eram transparentes e higienizadas, logo fazia-se possível ver a movimentação urbana por meio delas. Era uma boa vista.

    Estava mais cheio do que o comum, porém, a atmosfera era leve, as pessoas degustavam seus doces lentamente e saborosamente, enquanto conversavam em um tom baixo, quase silencioso.

    Joe permanecia inexpressivo.

    — Gostou, Ka? — perguntava Misaki.

    — Gostei.

    O trio sentava-se numa daquelas mesas, Misaki tomava o cardápio para si, tentando lê-lo.

    — Qual vocês vão querer? Olha só — dizia, apontando para as sobremesas.

    — Esse aqui — respondia Kaen, indicando um milkshake de chocolate com morango. Ele parecia bem-feito e saboroso no cardápio. Joe observava e franzia o cenho.

    — Não quer escolher um sorvete mais caro? Lembre que não somos ricos.

    — Precisa falar assim, Joe? É aniversário dele.

    — Não comece a me vilanizar. Só estou falando que não temos dinheiro para comprar isso, se você tivesse escolhido um lugar menos burguês, ele poderia comer o que quisesse.

    Misaki engolia em seco. Já fora insultada e culpada.

    — Ka, você se interessou por mais algum?

    Kaen absorvia, de cabeça baixa.

    — Esse — dizia, apontando para um sorvete de casquinha, parecia menos apetitoso que o milkshake, mas, ainda era melhor do que sair sem provar nada.

    — Pronto, vamos comprar esse.

    Joe ficara em silêncio.

    Em seguida, um moço se aproximara. Era bastante jovem, mas parecia ser funcionário do local. Provavelmente, novato. Usava o uniforme aconchegante e minimalista da empresa, portando uma caneta e um pequeno bloco de notas. Parecia ser estrangeiro, era loiro e possuía vívidos olhos azuis. Seu crachá no peito deixava mais provável a possibilidade de ser de fora. Timofey.

    — Boa tarde! Como podemos ajudar vocês? — perguntava, seu sotaque complicara a compreensão do que dizia, mas ainda era entendível.

    — Boa tarde, vamos querer três casquinhas, dessa aqui — respondia Misaki, sinalizando no cardápio.

    — Uma — interrompia Joe.

    Timofey entendera. Estranhava e sentia repulsa, mas, disfarçara.

    — Sim. Desculpa, moço. Uma casquinha só.

    — Certo — dizia, anotando o pedido. — É para o garotinho?

    — Sim! — dizia Kaen.

    Timofey abaixava-se.

    — Olha só! Você já tomou nosso sorvete? — perguntava, amigavelmente.

    — Não.

    — Posso te dizer uma coisa?

    Kaen assentia.

    — Nosso sorvete é o melhor que você vai provar na vida. Quer vir comigo escolher as coberturas? Como é só essa casquinha, você mesmo pode escolher.

    — Sim! — respondia, eufórico.

    Misaki hesitava em permitir, porém, Timofey direcionava sua cabeça ao espaço das coberturas e sabores, sinalizando onde ficava.

    Estava perto da mesa, logo, permitira.

    Timofey estendia sua mão para Kaen, que a apertava e descia da cadeira.

    Nesse instante, sentira seu estômago revirar. Tinha dificuldade de entender o motivo disso. Um medo incessante, crescente, uma ansiedade que bambeava suas pernas. Olhou em volta. As pessoas estavam assustadas, com os olhos arregalados, como se esperassem algo. Não era apenas ele que pressentia algo. A tensão tomou conta daquela área, a atmosfera pesava.

    Imediatamente, um grito soou. Alto, estridente. Fora do local. Buzinas ecoavam, ouvia-se uma mistura de barulhos difíceis de distinguir.

    Todos se levantaram, rapidamente, perturbados.

    Os funcionários largaram o balcão e, com alguns clientes, olharam pela janela para ver o que se passava. Algumas pessoas corriam, os gritos começavam a se espalhar. Kaen não entendia.

    Joe já havia saído da mesa e ido observar pela janela, com os outros.

    Misaki se aproximara de seu filho, segurando fortemente sua mão. Timofey se afastara.

    Justamente ali, Kaen tinha seus ouvidos dilacerados pelo som dos vidros se partindo. Todos gritavam. Uma moto estava dentro daquele espaço. Acima dos corpos de dois jovens. O automóvel os esmagara. Um deles era Timofey.

    A poça de sangue era visível abaixo de seus cadáveres, seus braços estavam deslocados do lugar, os ossos de suas pernas emergiam para fora. Não houve tempo de reação. Por que aquilo havia acontecido? Como? pensara Kaen.

    Começara o tumulto.

    Pessoas eram arremessadas para dentro do Uli, explodiam as janelas, se chocavam contra a parede, quebravam seus crânios. Com o impacto, partiam as mesas – em formato de sorvete – ao meio.

    Misaki apertava a mão de Kaen e corria, junto à ele, para fora da sorveteria. Joe os seguia.

    Ao sair, se inseriam num amontoado de correria.
    Os carros eram arremessados e implodiam ao solo, alguns caminhões estavam cravados nas paredes dos prédios. Estilhaços pelo chão, cadáveres humanos e animais espalhados pela rua, carros capotados e um barulho ensurdecedor.

    Sequer imaginavam qual era a ameaça. Não sabiam para onde correr. Apenas corriam. Desesperados. Em morte.

    Kaen olhava para trás ao movimentar-se. Não gritava, pois, o que acontecia não era palpável a ele. Parecia irreal, lúdico, onírico. Avistara algo. Em meio ao alvoroço, um homem caminhava calmamente, com as mãos nos bolsos. Era alto, cabelos longos e negros, vestia roupas justas, uma capa preta por cima. Não conseguia ver com clareza.

    O homem saltara mais alto do que era concebível e explodira ao solo, atravessando seus pés pelas costas de um senhor. Agarrara o falecido pela canela e o atirava à aglomeração, acertando uma quantidade considerável de indivíduos, partindo o corpo do morto em pedaços.

    O braço desencaixado do finado atingia Kaen. Ele colapsava, a ficha caía. Lágrimas escorriam pelo seu rosto e se esvaíam ao movimento, porém, se parasse de correr, seria pisoteado.

    Mais uma explosão irrompia na parte baixa de um prédio à esquerda. Kaen, Misaki e Joe eram arremessados. O reflexo dos vidros estilhaçados ao ar emitia o quadro apavorante de um massacre. Aquilo estava longe de ser humano.

    Era um demônio.

    Kaen e Misaki estatelavam-se para dentro de uma joalheria, fazendo as jóias desabar e romper. A dor do impacto era absurda, mas, fora minimizada graças a adrenalina. Para não serem vistos, se escondiam atrás de um balcão de tamanho grande. Em volta, havia alguns pedaços de madeira esfacelados, vidros e manequins joalheiros surpreendentemente intactos no chão.

    Joe acordara do desmaio na parede de fora. Quando deu-se por si, rastejara para dentro da bijuteria, onde sua família estava. Se reunira com eles atrás do balcão.

    Misaki estava pálida, Kaen, desesperado.

    Ambos tremendo-se.

    O caos se desenrolava lá fora.

    Joe, ofegante, se aproximara de sua esposa e filho.

    Kaen percebia que ele não tentara os confortar, já se acostumara.

    Joe direcionava seu olhar, avermelhado, pulsante, à Misaki.

    — Eu sabia! — gritava. — Eu sabia que não tinha como isso dar certo, não com você, Misaki! A culpa é sua! Por que teve de escolher essa merda de lugar? Por que nos arrastou para isso?

    Sua eloquência era agressiva. A saliva, ou escorria por sua veia no pescoço – que estava pulsante – ou jorrava na cara de Misaki.

    Kaen escutava, mas estava acanhado. Eis que lembrara de Timofey. Recordava do estado intragável e sangrento que seu corpo se encontrara. Ele foi gentil comigo, por que isso aconteceu com ele? pensava. O coração de Kaen passava a bater mais rápido. Sua visão ficara turva, os gritos de seu pai e o choro da sua mãe pareciam silenciar-se, tudo ao redor se emudecia.

    A fúria passara a crescer, saía de um lugar desconhecido, talvez em uma região que ele havia escondido por anos. Todo o ódio reprimido que ele havia sentido parecia ser desbloqueado naquela joalheria.

    Seus ouvidos esquentavam-se, suas veias, aparentes, latejavam e fervilhavam. Até que apanhava o pedaço craqueado do tronco ao seu lado e o quebrara na cabeça de seu pai. A viga se avermelhara de sangue. Joe desabava sobre o balcão, desmaiado.

    Misaki gritara, mas Kaen não escutava, estava completamente tomado pela ira.

    Um arrepio surgia na espinha de Kaen. Tudo pairava. Kaen olhara ao lado. A joalheria estava com sua frente totalmente obliterada, dando visão para o que acontecia à fora. Algo estava ali. Imóvel.

    Ele.

    Não parecia, mas era ser humano. Os incêndios e a fumaça gerada eram seu pano de fundo.

    Kaen fitava-o com seu olhar possesso. O homem, encharcado pela cor vermelha, via o sangue pingando da madeira. Observava o senhor, com uma ferida na cabeça, debruçado em cima da banca. Entendia.

    — Você tem coragem, garoto. Vou me divertir um pouco contigo.

    Seu sorriso se alargava.

    Kaen empunhava seu tronco e se lançava ao homem.

    Porém, um enorme impacto manifestava-se ao redor daquele monstro. Uma neblina empoeirada surgia, os estilhaços do asfalto voavam e passavam pelo rosto de Kaen, que ergueu seu antebraço horizontalmente para proteger os olhos. Kaen apertava sua vista, tentando enxergar o que se passava. Avistara outro homem.

    Era alto, forte, seus braços eram musculosos e cheios de cicatrizes. A roupa, estilosa e com alguns acessórios tecnológicos. Seus punhos portavam dois materiais cinzentos, aparentavam ser de aço ou peltre. No seu peito, havia um crachá. Era um Operador.

    — Vou te matar — dizia o Operador.

    — Não conseguiu nem me acertar, quem dirá mat..

    O Operador agarrava a cabeça do homem. Saltava. Para longe. Sumia ao ar. Uma cratera se formara no solo.

    Kaen ficava estático, digerindo o que acabara de ocorrer. Sua mãe o abraçava por trás, aos prantos. Não tinha mais força nas pernas. Soltara a madeira e se ajoelhava. Seu pai ainda não havia levantado.

    Mais tarde, madrugada, Joe abandonara sua família. Sentiu-se fraco, humilhado. Precisava ficar mais forte.

    Na calada da noite, Kaen o espiara. Enquanto sua mãe dormia, via a porta de seu pai fechar e nunca mais abrir novamente.

    Ali, sua vida mudara.

    Kaen voltara a si, com Ryo, a classe, e Nakamura o fitando curiosamente, instigado e ansioso para ouvir o que tinha a dizer.

    — Gostaria de contar essa sua experiência para nós, meu jovem?

    Kaen olhava para baixo.

    — Não.

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