Progenitor das Sombras

    Caderno 1 – Sangue de Magma

    Capítulo 1

    “Nada dói mais que
    lembrar de coisas que
    um dia vieram a te
    machucar.”

    O sol brilhava do lado de fora incomodando minha visão. Um quarto vazio, ou quase, nada além de tatames e cobertores no chão. Alguns livros repousavam próximos a meus pés, já havia terminado de lê-los, mas era sempre bom os reler, já que cada vez descobria algo novo.

    — Aniversário… — Lembrando que dia era hoje, me levantei. Uma brisa gelada percorreu o quarto arrepiando os pelos em meu corpo. Indo até à janela à minha esquerda, observei o lado de fora.

    Um jardim verde irradiava sua beleza junto a presença dos empregados da mansão, eu estava no segundo andar, um lugar onde apenas eu podia repousar. Acenando com a mão, um dos empregados me cumprimentou.

    Knoc! A maçaneta da porta do outro lado do quarto estalou. De fora do quarto, uma mulher não tão jovem de cabelos esbranquiçados me reverenciou.

    — Trouxe suas roupas.

    — Quero algo que uso diariamente — eu disse ao ver o conjunto de roupas dobrado em seus braços, um terno.

    — Seu tio tem algo a te dizer, e o conhecendo, com certeza fará você participar do evento. Use apenas por hoje, pelo menos até o evento acabar.

    Depois de um breve silêncio acenei com a cabeça em concordância, mas aquilo me incomodava.

    Indo até o corredor atrás dela, peguei o caminho da direita, caminhando direto ao banheiro no fim do corredor. O som dos passos da empregada na madeira antiga ecoava atrás de mim, era irritante, um rangido alto que ecoava em minha mente, não havia o que fazer, era uma mansão velha, a mais barata nessa merda de cidade.

    Abrindo a porta do banheiro, percebi quando a mulher tentou entrar. — Posso tomar banho sozinho — afirmei tentando barrá-la.

    — Não permitirei, ainda mais hoje.

    — Empregada chefe…

    — Por favor, não torne meu trabalho ainda mais difícil — disse ela sem mudar o tom.

    Não era apenas difícil discutir com essa mulher, era impossível, e pior, havia coisas que não tinha como eu negar, ela estava apenas cumprindo parte de seu voto para comigo. Sem conseguir impedi-la, admiti sua entrada.

    Assim que me virei, as paredes e o piso de mármore refletiram a luz branca que vinha de cima. À direita da sala, um enorme espelho percorria a parede junto a um balcão escuro, onde a empregada se encontrava. Do outro lado da sala, um vidro separava o vaso e o chuveiro do resto do cômodo, e no fim do banheiro, uma enorme banheira tomava o resto do espaço.

    Ignorando minha imagem borrada no espelho, segui para o chuveiro. Estava prestes a ligá-lo quando a empregada apareceu segurando uma navalha.

    — Venha, sente-se — ela disse trazendo consigo um banco de madeira que ficava escondido embaixo do balcão — e não adianta dizer que você mesmo o cortará, sempre que faz isso fica horrível.

    — Todos os dias é a mesma coisa, hoje não será diferente, e amanhã você também o cortará, de que adianta?

    — É pessimista pensar assim, vamos, sente-se. — Se aproximando, ela tocou meus cabelos. Suas mãos molhadas eram gentis, tanto que era difícil não sentir cócegas.

    Não era sua primeira vez fazendo isso, na verdade, ela fazia todos os dias, dizia que me deixaria ainda mais bonito. Olhando minhas próprias mãos, não conseguia acreditar, finas, desnutridas, e não apenas elas, eu era assim, desejava ser bonito, mas não importava o quanto comesse, meu corpo não crescia.

    Assim que ela terminou, me empurrou para debaixo do chuveiro. A água quente deslizou pela minha pele fazendo meus cabelos grudarem em minha nuca. Nas minhas costas a bucha áspera circulava de forma gentil, sem pressa, não era obrigação dela, mesmo assim ela fazia dizendo ser sua obrigação.

    Sua insistência era irritante e muitos mal entendiam sua intenção, eu não, pois ela sempre sorria quando terminava e dizia o quanto tinha melhorado com a navalha. Assim como suas mãos, seu sorriso era caloroso, gentil, não arrogante ou lascivo. E eu sabia o que ela verdadeiramente desejava…

    Às vezes era como se o tempo parasse, suas mãos não me tocavam, mas eu sentia que a bucha levemente movia o sabão em meu corpo. Ela me observava, contava as cicatrizes em minhas costas, uma a uma, meus pés, braços, pulsos, todos os dias. Havia muitas, muitas, era quase impossível de contar já que a maioria se sobrepunha, ela tinha tempo, eu nunca a apressava. Seus lábios contraídos emanavam certo amargor, os olhos expunham dor, ela sentia cada marca no próprio corpo.

    Havia uma marca em meu pescoço, garras que desciam desde minha nuca ao meio de minhas costas, ela sempre às tocava, meu corpo tremia, eu odiava, e todos os dias ela dizia a mesma coisa enquanto voltava a me ensaboar: — Perdão, não foi minha intenção. — Eu a ignorava, sabia que amanhã faria a mesma coisa.

    Nos conhecemos há quatro anos, e apesar de estar incomodado, eu sou grato. Ela não apenas cuida de mim, mas nunca me pergunta de onde vem marcas tão destrutivas. É doloroso, e mesmo cicatrizadas ainda doía, e para mim, nada doía mais que… lembrar…

    ***

    Olhares de admiração e adoração percorriam certo corredor, estava escuro, enaltecendo a imagem imponente do homem que por ali caminhava. O som de seus passos chamava atenção, o observavam, como um ser a qual eles deviam se espelhar.

    Seguindo o homem de perto o usei como escudo para os olhares cheios de antecipação, todos aqueles desejavam me incomodar, e a maioria segurava caixas, presentes, provavelmente para mim, mas não é como se eu desejasse algo, principalmente vindo daquelas pessoas que eu nem ao menos conhecia.

    No fim do corredor uma armadura prateada repousava de pé ao lado de uma grande porta, se movendo, abria passagem para o homem passar, mas não para mim, e descendo rapidamente, uma lança azul e prata me impediu de andar. O homem à minha frente não parecia se importar, nem ao menos olhou para trás para ver se eu o seguia.

    Ao longe vi a sala de dentro, grande, luxuosa, uma das paredes era totalmente composta por vidro, e próximo a ela havia três tronos, o central sendo o maior, onde o homem estava sentado.

    A vista dos tronos dava direto para uma arena, estávamos no Coliseu, eu já conhecia esse lugar, era bonito, apesar de servir apenas para derramar sangue.

    Inconscientemente meus pés começaram a bater no chão, e depois de quinze batidas a lança do guardião subiu permitindo minha entrada. Era uma lei, ninguém podia entrar primeiro ou ao mesmo tempo em uma sala que o governador.

    Ignorando o assunto, caminhei em direção ao meu lugar, uma cadeira antiga de madeira no canto da sala, mas a voz do homem soou me fazendo parar.

    — Sente-se à minha esquerda — disse a voz fria ecoando pela sala.

    Sem criar discussão, caminhei em direção ao trono, não era algo que eu pudesse negar. Sentando-me, logo percebi que a vista era melhor, praguejei, sempre odiei sangue, e diferente da minha pequena cadeira de madeira, dali vi toda a arena.

    O som de passos metálicos ecoou para dentro da sala, era a armadura prateada. E como um fiel guardião, ele caminhou em direção ao trono central, imóvel, ficou ao seu lado direito.

    No alto da arena quatro telões começaram a funcionar, opostos uns aos outros em formato de cubo. Estampado em cada um, o rosto sombrio do homem ao meu lado agitou a multidão. O observando, via a seriedade que emanava de sua feição. O narrador dizia algo sobre Claudio Roux, o Mestre das Sombras, meu tio, e nessa cidade, o homem com o poder de dominar o mundo.

    — … nosso tão adorado Governador…

    Tão escuros quanto a noite, seus olhos reluziam em contraste com o negro do trono de obsidiana. Seus cabelos também eram escuros, mas em um tom acastanhado, e sua pele branca, impecável, não havia marca alguma, muito menos olheiras.

    Muitos acreditavam que ele era um ser imortal. Governava há dez anos, mas tinha a aparência de um homem de trinta anos. Eu não duvidava, o conhecia de perto, sabia o quanto ele estava à frente de seu tempo, e não é algo que um homem em seus trinta anos era.

    O narrador terminou sua apresentação, e foi quando ele se levantou, Claudio.

    Paf!

    O som de seu passo ecoou, lento, como uma gota de água caindo em um lago sereno, criando ondas, rajadas de escuridão que invadiram a arena, tornando o céu azul em algo escuro; e como uma miragem, ele atravessou o vidro, caminhando no ar até o centro da arena, no ar!

    A plateia sussurrava palavras intensas: “Glorioso” “Um verdadeiro deus” “Salvador”. Sorriam e glorificavam, o coração de todos palpitava, o meu não era exceção, mas não de admiração…

    [Medo]

    Sentia aquilo como parte do meu próprio corpo, cada um dos meus membros tremia, tudo por causa daquela escuridão quase sem fim, fria e solitária. Eu odiava aquilo, aquela situação… eles não sentiam, não podiam sentir, mas eu sabia…

    — Uma respiração… e todos nesse lugar morrem.

    — Próximo Capítulo – Mentiras —


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