Progenitor das Sombras

    Caderno 1 – Sangue de Magma

    Capítulo 2

    Setecentos mil era o número aproximado da capacidade do coliseu, porém, dois terços da população da cidade não eram compostos por nobres que se preocupavam à própria imagem. Vários plebeus se amontoavam, sentavam-se um no colo dos outros apenas para observar o homem que os “protegia”.

    E no fim de seu discurso, Cláudio sempre terminava com as mesmas palavras: “… para a ascensão da nossa cidade, e a continuidade do nosso tempo de paz.”

    Aplausos, gritos e assobios circulavam por toda a arena. Era verídico, todos o adoravam e o admiravam, todos, menos eu. Ele tinha o que eu precisava, algo que eu não podia ter, e por isso o ouvia, mas bastava eu ter a chance, e isso acabaria.

    Respirando fundo, tentei controlar a palpitação desorganizada do meu coração. Na frente daquele homem, tentei nunca demonstrar fraqueza, para ele me ver como um igual; e apesar de não querer aceitar, a forma fria que ele me olhava me dizia a verdade…

    — À tarde, venha ao meu escritório — ele disse se sentando, imponente, olhando tudo e a todos de cima. No fim, eu sabia… sempre fui sua presa.

    Talvez ele quisesse algo relacionado a nosso acordo, ou só me aborrecer, não importava. Hoje, diferente dos últimos três anos, ele estava sério, muito mais sério que o comum.

    Junto à voz do narrador, as lutas começaram, apenas humanos lutaram, mas ainda me incomodei. Focando em apenas um lugar da arena, deixei o tempo correr sem que eu o visse passar, e em minha mente, me imaginei em um mundo diferente desse lugar.

    Com um livro na mão, me sentava embaixo de uma grande árvore. Suas folhas de vidro verde escuro balançavam facilmente contra o vento que quase as carregava. Ah… o som do vento, eu o adorava, e adorava o sol fresco da manhã em minha pele, principalmente embaixo daquela árvore, que parecia filtrá-lo especialmente para mim. Mas enquanto eu viajava…

    — Perca de tempo, devia ter vergonha de si mesmo. — A voz de alguém me acordou do transe, desconcertado, observei a arena vazia.

    Não havia uma pessoa sequer no coliseu, apenas os passos metálicos do guardião prateado ecoavam, e junto a seus passos, a voz mecânica soava enquanto se afastava. — Impuro… — Tinha um tom estrangeiro.

    Me levantando, observei o corredor onde o guardião havia entrado.

    “Impuro…” Pensei olhando minhas próprias mãos, e por um momento achei que eu realmente pudesse ser.

    A parede de vidro que mostrava a arena aos poucos esmaecia, a sala escureceu, e lá estava eu, sozinho naquele lugar.

    Caminhando para dentro do corredor escuro, percebi algo quando ele começou a clarear, pessoas. As vozes calaram com meus passos, me observaram, rostos maliciosos, fechados. Se aproximando, mostraram-me as caixas, presentes, e os sorrisos pretensiosos escondidos sob a feição de um bom olhar.

    — O jovem mestre das sombras está cada dia maior — disse um deles, um senhor. — Aqui, eu sinceramente quero te dar isso. — Ele terminou me entregando uma escultura do tamanho de uma mão, um anjo, belo, esculpido em quartzo cristalino, quase perfeito, o símbolo de perfeição deste mundo.

    A multidão cada vez mais se amontoava ao meu redor, não tinha como os culpar por quererem se aproximar, mas cada ano que passava, se tornavam piores.

    Suas mãos tentando mostrar complacência, corriam por meus ombros e cabelos. Seus dedos venenosos faziam minha pele retorcer em angústia. As belas e falsas palavras proferidas por suas bocas me irritavam, eu não era belo, longe disso, nunca iam me aceitar como genro, e se acabasse acontecendo, eu seria assassinado antes mesmo de poder tocar suas filhas.

    Dava para sentir as intenções nos olhares, não podiam esconder de mim, mas eu tinha um motivo para aguentar, e só havia uma frase que eu podia me usar agora:

    — Eu não sou um Roux. — Empurrando os presentes no caminho, tentei passar pela multidão, não adiantou, cada passo adentrando a floresta de pessoas era um passo sem volta. Dizer isso me ajudou na primeira vez há três anos, mas agora, quase todos souberam a verdade:

    Eu não tinha o sobrenome do meu tio, mas ele podia ser herdado.

    — Que nada, jovem mestre das sombras, não pense assim, haha, é um anjo, sabe, recusar tal coisa traz azar. E mesmo que não seja um Roux, ficarei feliz o suficiente se o aceitar. — As mãos daquela pessoa seguiram meus ombros enquanto atravessei a multidão, e em seu pulso, um botão dourado chamou minha atenção.

    Distraído, senti algo forte empurrar um dos meus pés, que se prendendo ao outro, me fez perder o equilíbrio. Estendendo minhas mãos tentei me segurar a alguém, todos se afastaram, como se antecipando minha mão.

    O chão aos poucos se aproximava, parecia estar em câmera lenta.

    Paf!

    Leves cochichos chegavam ao meu ouvido, risos baixos, zombavam de mim, diziam para eu culpar a mim mesmo por ter rejeitado um símbolo de sorte.

    — Se eu tivesse quebrado a perna, isso seria azar… — sussurrando enquanto me levantava, sentia algo escorrer de meu nariz. — Merda… — Apoiando o nariz na dobra do braço esquerdo, eu limpava os pingos que caíram no chão com o direito, na tentativa de impedir ainda mais sangue se derramar.

    — Menino, você está bem?! — Cortando caminho entre a multidão, alguém se aproximou, uma mulher, sua postura nobre se quebrou completamente em frente àquela situação. Ajoelhando-se, ela tentava me amparar.

    — Afaste-se, não preciso de ajuda — eu disse em um tom simples – para uma parede, pois a mulher simplesmente ignorou.

    Suas mãos me ajudaram a levantar, e foi quando tive certeza. Seu belo rosto demonstrou um sorriso de alívio que lentamente se abriu de felicidade pelo meu bem-estar, uma pessoa boa, mas escondido sob seu sorriso, pude sentir o nojo da mulher ao me tocar.

    “Impuro” A palavra me veio à mente ao ver a mulher mexer a mão de forma desconfortável. Ela se afastou, não muito, apenas o suficiente para alguém limpar suas mãos atrás das costas de forma discreta.

    Em seu peito um broche prateado no formato de flamingo me chamou atenção.

    — Sou Mettyanne Grindlof — disse ela tocando o broche prateado em sua roupa ao perceber meu olhar. — Conheço seu tio de alguns eventos…

    — Não perca seu tempo. — Interrompendo a conversa, voltei a fazer meu caminho.

    Não importava se eram nobres da facção mercantil. Apesar de ter poder, não chegavam nem perto dos governadores, e por isso precisavam de mim.

    “Mesmo que me implorem, Roux é um nome que nunca vou aceitar.”

    Receber seus presentes seria o mesmo que me acorrentar às suas famílias, principalmente o anjo, símbolo da criação de laços e da paz.

    “Malditos símbolos” pensei atravessando a multidão, quando de repente algo puxou meu pé. Por estar preparado acabei não caindo, mas percebi tudo.

    Aqueles malditos sorrisos zombeteiros… queria destruí-los, meu sangue fervia, eu o sentia ferver, algo subia pela minha garganta.

    Engolir e respirar, essa era minha única opção, eu os odiava, mas não podia manchar a imagem de Claudio, eu precisava dele. Mantendo a mente firme, voltei a atravessar a multidão.

    Tapas, pontapés, puxavam meus cabelos tentando me parar, e quando eram ignorados, cada um deles descontava a raiva. Provavelmente era de tarde, eu não sabia por quanto tempo tinha “dormido” naquela sala, mas não pouco, já que o guardião de Cláudio tinha vindo me acordar.

    Apenas mais alguns poucos passos e a multidão terminaria, quando alguém parado à minha frente me impediu de passar. Levantando a cabeça, vi seus olhos azuis brandos. Um adolescente, jovem, estava uniformizado em preto e dourado.

    Seus olhos caídos em mim demonstravam superioridade, arrogância, e com minha baixa estatura, eu nem ao menos eu podia antagonizar.

    — Vergonha… Pfft… — alguém cochichou em voz alta, não tentou ser discreto, mas fez todos os presentes rirem de mim. Não por algo que fiz, mas por algo que não tive escolha.

    Fiquei firme em frente ao jovem de olhos azuis e cabelos acinzentados, abaixar a cabeça não era uma opção. E apesar de seu rosto singelo…

    Tch!

    Fechando os olhos, senti algo escorrer por entre eles, os limpei. O líquido transparente escorreu por meus dedos, cuspe.

    Maldito fosse, me olhava de cima, como se eu fosse um verme. Minhas mãos tremiam de raiva, era instintivo, queria socá-lo, queria ter pulado em sua garganta e o acertado com toda força. Me empurrando com o ombro, ele passou por mim.

    Os nobres pareciam satisfeitos, eles sorriam, meu peito ardia ao vê-los achar graça. Voltando a caminhar, apertei o passo. Alguns ainda me seguiram, mas nobres não correm, eles tinham uma imagem a zelar.

    — Próximo Capítulo – Grandioso —

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