Capítulo 04: Razão
Progenitor das Sombras
Caderno 1 – Sangue de Magma
Capítulo 4
Poder nessa cidade é algo bem diferente do que é em outras cidades, eu vivi em duas, e apesar de ter passado pouco tempo na outra, percebi que lá, apenas dinheiro é o suficiente para sobreviver.
— Por quê?! Não está na minha hora, acabei de completar quatorze… — eu disse aumentando o tom de voz, mas parei ao perceber que não adiantaria.
A expressão fria no rosto de Claudio mostrava o quão desinteressado ele estava, era o que parecia, me incomodava, mesmo eu sabendo que esse era seu rosto comum.
— Não me entenda errado, “sobrinho”, estou fazendo o melhor.
— O melhor para mim? Haha, você… — Incrédulo, limpei o rosto, senti uma inquietação em meu peito, ele tomou a decisão, não iria mudar.
— O “melhor” — ele disse dando certa ênfase na palavra — se conseguir um benefício, pode dizer que foi para você. O saldo em sua conta está na margem dos dois milhões, de fome você não vai morrer.
— Eu preciso do emprego, além disso, só tem esses livros para me entregar? — me levantando, perguntei sobre uma parte importante do nosso acordo.
Era bem simples, eu trabalhava para ele e, em troca, ele me daria todo conhecimento que possuísse sobre rituais e civilizações antigas; duas coisas que ele mesmo parecia ter dificuldade de encontrar. Fora isso, ele devia usar seu poder para buscar alguém que a quatro anos me incomodava.
— Não encontrei, já pode ir. — De grosso modo, ele terminou a conversa.
Além de estar sem emprego, perderia meus direitos como cidadão. Eu poderia consegui-los de volta se passasse pelo batismo, mas não tinha idade o suficiente para ser obrigado a isso.
— Não completei dezesseis anos, você não pode tirar meus direitos — eu disse tentando usar a lei a meu favor.
O batismo era para aqueles que desejavam ter mais poder que uma pessoa comum, havia outra forma de conseguir direitos, mas era uma possibilidade que eu nem ao menos conseguia enxergar.
— Case-se.
— O que?!
…
Por um instante o silêncio tomou o ambiente, e apesar de Claudio caminhar, não emitiu nenhum som. De frente para o vidro, ele observou a vasta cidade de cima, nunca o entendi, e provavelmente não iria.
“Me casar? Ha…” Era simples, apenas uma questão de decisão. Se eu aceitasse, poderia viver o resto da minha vida em paz, mas…
…
Saindo da mesa, caminhei até seu lado. Vendo-o de perto, só conseguia pensar em uma palavra: Alto, ele era um gigante, não apenas de altura, mas tudo que o compunha remetia ao quão poderoso ele era.
“Família…” Essa palavra me veio à mente, e ignorando o homem ao meu lado, observei a cidade com o mesmo olhar de seu rosto. Não apenas a feição, copiei sua postura, respiração, e tudo mais que pude perceber.
Na sala mais alta do prédio mais alto, ele observava todos de cima. Poder, eu não entendia, até que por um instante me peguei fissurado naquele lugar. Os prédios mais altos da cidade tinham nove andares, não eram comparáveis a esse lugar, que transformava tudo lá embaixo em um mundo de formigas.
Era estranho, eu queria observá-los… as pessoas caminhando quase inexistentes, as luzes que em alguns pontos pareciam mais claras e quanto mais se afastava, menos existiam. E o mais estranho de tudo, o vazio, a sensação de imensidão que estar aqui me dava.
“É por isso que ele tanto os observa?” Me perguntei, mas se eu dissesse que sim, estaria apenas especulando.
— Não é solitário?… — perguntei sem me dar conta, e logo em seguida me arrependi.
Não é como se algo tão banal pudesse o atingir, eu via isso em seu olhar, ele desejava mais, algo acima de si, mas o que? Ele era a pessoa que nesse mundo estava no topo, tinha algo mais a se almejar? — … esquece. Olha, tudo bem tirar meus direitos, mas tem que ter uma razão.
— Razão? — A voz fria e monótona soou. Senti minha alma tremer quando seu olhar firme tomou minha direção. — A cerimônia do fogo, o evento mais importante dessa cidade, e meu sobrinho, a quem segura minha imagem, nunca participou.
— Eu não sigo sua religião.
— Se não for motivo o suficiente, os nobres a anos tentam se aproximar, mas você apenas os ignora e os rejeita.
— Se aproximar?! Você não sabe o que eu…
— E acima de tudo — Ele não gritou, mas sua voz ecoava de forma estranha fazendo a minha se calar. — Mesmo tendo tal idade, nunca participou uma vez sequer das aulas obrigatórias. Você é um humano ou um animal selvagem?
— Ani… mal? — Cerrando os dentes, senti minhas mãos tremendo de raiva.
“Animal selvagem, é… é justamente assim que fui criado…” Senti um gosto metálico se espalhar pela minha boca…
— Faça como quiser, não importa mais… se você não me ajudar, vou fazer isso por mim mesmo. — Indo até a mesa, peguei os livros e rumei em direção a saída, mas antes de eu sair, a voz de Cláudio me parou.
— Nesse mundo, apenas o poder prevalece, e isso não é algo que você possa ter.
Impotente, minhas mãos tremiam. Ele estava certo, diferente dele, não sou ninguém, um sem fama nem poder, e sem isso…
— Não passo de uma falha — respondi aceitando minhas limitações —, mas se você depende dos outros, realmente pode chamá-lo de “seu” poder?
Continuando a caminhar sai da sala, desejei nunca mais vê-lo, algo impossível. Não o chamaria assim, mas família é família, e de uma forma ou de outra nossos caminhos se entrelaçariam.
Mas…. nunca imaginaria que seria tão cedo, ou da forma como aconteceria.
***
Atravessando o jardim da velha mansão, entrei pela porta da frente.
Sentada no sofá, a empregada chefe segurava um cristal esverdeado. Ela se levantou assim que me viu.
— Ezequiel, está tudo bem? — perguntou ela deixando o cristal em cima da mesa de centro.
Por um momento pensei ter escondido bem o fato de estar chateado, mas não, ela percebeu.
— Eu… — Sem saber como dizer, desviei o olhar.
A sala não tinha muitos móveis, era simples, apenas o sofá e a mesa de centro; e na parede central, uma escadaria levava ao segundo andar. Havia outra sala à direita dessa, estava vazia, e à esquerda era a cozinha. Dava para ver a mesa de madeira antiga que lá repousava, e além dela, materiais já abertos para a construção da casa.
“Meu tio não me deu nada, me esforcei para conseguir isso.” Eu preferia morar na rua a receber um presente daquele homem, mas não podia deixar a empregada chefe, alguém que tanto se preocupava comigo embaixo de uma ponte.
Trabalhei para Cláudio em troca de informação, foi nosso acordo, e com a bonificação, comprei essa velha mansão.
— Com exceção de mantimentos, corte o máximo de gastos que der — eu disse esperando um questionamento, mas ela apenas sorriu e acenou com a cabeça. Muitas vezes me perguntei como poderia existir alguém tão compreensível.
Caminhando até a mesa, peguei a joia que a empregada chefe a pouco deixou.
— Você está treinando bem? — perguntei observando o cristal.
Ele era do tamanho de uma mão, mas comigo não mudava de cor. A jogando para a empregada chefe, vi novamente a cor mudar, verde marinho, parecia ainda mais brilhante que antes.
— Estou fazendo o que posso, mas ela usa muito da minha capacidade.
Acenando com a cabeça, me virei em direção a escada para o segundo andar. Deixando a jóia de lado, a empregada chefe me acompanhou.
— Não precisa me seguir, já vou sair.
— Para onde? — com um rosto de estranheza, ela perguntou.
— Caminhar — respondi subindo as escadas.
Todos na mansão dormiam, apenas a empregada chefe que não.
— Uma hora dessa? E para ter chegado tão tarde…
— Estou saindo, então pare de me seguir. — Podia ser um pouco rude, mas… — Seu rosto está horrível, pare de passar maquiagem e vá dormir, esse pó não me engana.
Subindo as escadas, apenas meus passos ecoaram na madeira antiga, e no segundo andar, uma moldura na parede me chamou atenção.
Um arpão, que apesar de estar no escuro, brilhava em um dourado fosco, era a iluminação, já que eu não permitiria que ele enferrujasse.
Seguindo para o quarto, localizei os dois livros que li na noite anterior: “Ossos e espinhos” e “O império de Arthroth”.
Levando os livros comigo passei pela empregada chefe, e saindo para o jardim, busquei os outros dois livros que recebi a pouco – estavam em um banco.
Poucos minutos passaram desde que saí da mansão…
Tuuii…uuu!!
Ecoando pela cidade, um barulho de sirene me fez tapar os ouvidos. Inicialmente não entendi o que aconteceu, quando uma voz feminina meio robótica explicou a situação.
[Queridos cidadãos, devido a um mal funcionamento na barreira, a cidade entrará em alerta constitucional. Por favor, dirijam-se aos portões internos em busca de refúgio…]
— Próximo Capítulo – Imprevisto —
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