Capítulo 08: Solitude
Progenitor das Sombras
Caderno 1 – Sangue de Magma
Capítulo 8
“Os lugares mais sombrios
são aqueles onde não
podemos nos ouvir
chorar”
Os demônios sobrevoavam a área, podiam me ouvir, mas não me ver, já que o vermelho do céu os cegava.
Escorrendo por meu corpo, o sangue barroso das criaturas já mortas secava criando crostas em minha pele, o fedor as assustava, e apesar de saberem onde eu estava, não tentavam se aproximar.
Meus passos eram lentos, já não aguentava a dor que se espalhava por meus ossos, e o som de algo se rachando ecoava vindo do meu corpo.
No alto do céu, os demônios voavam esperando pacientemente, criaturas inteligentes, eles viam o quanto eu estava cansado, sabiam que um humano não podia simplesmente passar tanto tempo sem ao menos repousar.
Eles eram rápidos, mas quando iam atacar, planavam, dando logo em seguida um mergulho na tentativa de agarrar sua presa.
Tchap! Arremessei a haste de metal em minha mão direita, acertando em cheio a criatura.
O som da besta caindo ecoou pelo lugar, ela se debateu, tentando firmemente arrancar a haste de metal de sua clavícula. “Tarde demais”, pensei, vendo a criatura aos poucos parar de se debater.
Como uma lagartixa, a cauda do demônio se desprendeu de seu corpo, retorcendo em agonia por ter perdido a ligação com o hóspede.
Se a cauda morrer, o demônio também morreria, e por isso eu sempre os matava tão facilmente; acertava um certo nervo, que percorria todo o corpo da criatura, mas tinha seu ponto principal em um lugar específico na clavícula do monstro, logo acima do coração. A cauda podia não estar morta, mas o parasita no coração da criatura não saberia dizer se isso era verdade, já que não tinha mais uma ligação entre eles.
Olhando para a longa cauda negra, com escamas de jade e uma defesa quase impenetrável, me virei para a criatura, retirando de seu corpo a haste de metal, o meu querido arpão.
Não havia melhor arma de matar que aquela.
Suspirando, me sentei próximo ao corpo do demônio, por causa do cansaço, cada segundo em pé fez meu peito arder. Pode parecer estranho, mas é algo comum para mim, onde mesmo respirar gasta uma grande quantidade de energia.
— Hum? — A criatura ao meu lado acabou se mexendo, chamando minha atenção.
“Memória muscular” pensei ao observá-lo com cuidado, estava morto.
Olhos côncavos, pele acinzentada, cabelos crespos e desorganizados, membros finos por desnutrição. Se não estivesse descrevendo o monstro, talvez eu tivesse me descrevendo.
Deitando-me ao lado da criatura, percebi ter a mesma altura que ela, no fim, acabei rindo de mim mesmo.
“Imagina se alguém me mata por engano, que vida de merda” Com exceção dos olhos côncavos e seu rosto meio humanoide demoníaco, éramos completamente iguais. Não… talvez fossemos mais parecidos do que eu imaginava.
— O que ele está fazendo?
— Sei lá, deitado?
— Isso eu estou vendo, seu idiota.
— Eu também… mas, por que ele parou?
— Não sou eu que vou perguntar.
“Eu estou ouvindo” Fechando os olhos, repousei, recuperando minhas energias, até mais vozes começaram uma “algazarra”. Apesar de conversarem baixo, eu os ouvia.
Ao invés de correrem para os portões internos e fugirem das criaturas, procuraram ficar perto de mim.
Crack!
“Fudeu” pensei ao sentir algo vindo das minhas costas, um estalo, não… o som foi o de ossos se rachando. Tentei me sentar, e consegui com alguma dificuldade, porém, uma dor aguda se espalhou pelo meu corpo.
Algo quente escorria de meu nariz, sangue, pude ver ao tocá-lo, mas não um sangue comum, brilhava em um tom de laranja, como o magma.
Minha respiração se tornou eufórica e, aos poucos, um ardor se espalhou por meu peito, queimando minhas veias e meu coração, que pulsava forte, dizendo que cada segundo podia ser o último.
Ajeitando os arpões entre minhas pernas, fiquei em posição fetal.
Estava zonzo, minha garganta tampada não permitia a entrada de ar e, aos poucos, sentia minha consciência se esvair.
Minha mente trabalhava a medida que conseguia:
“Respira, você não está respirando… vamos! Respira…!” eu disse a mim mesmo, tentando puxar o ar de forma desesperada. Tarde demais, meus membros se congelaram e, mesmo de olhos abertos, percebi estar perdendo a visão.
Preso no próprio corpo como uma consciência, dentro de um vasto vazio de solidão, sentia afundar nas águas frias de um mundo silencioso, onde paz, vazio e trevas se misturavam, num mar de escuridão inexpugnável.
Nada podia me atingir, nem machucar, não naquele lugar. Era triste e solitário, porém, eu gostava.
Todas as vezes era assim, tinha a chance de experimentar a paz, mas logo algo me puxava, uma correnteza, que levava meu corpo imaterial de volta ao lugar onde ele devia estar.
…
— Cof… arhh… — Tossindo, senti certa dificuldade ao respirar. Aos poucos meus olhos se abriram e, olhando de relance, vi o demônio esparramado ao meu lado.
Não sabia quanto tempo tinha se passado, mas olhando para a pele do monstro, sabia que muito… ela apodrecia.
— Olha lá, ele parece ter se mexido, jogue mais — vinda de trás de mim, uma voz sussurrou.
Acertando logo atrás de minha orelha, a pedra rebateu, repousando não muito longe de mim. Uma dor aguda se espalhou pelo lado direito da minha cabeça, enquanto sentia meu cranio dilatar pela batida.
Suas vozes eram baixas, mas eu podia ouvi-las: “Joguem mais, vamos!” “Parece errado” “Quem se importa se está errado” “Quando você acha que terá outra chance como essa?”
Alguns não queriam fazer aquilo, mas, independentemente de seus motivos, uma seguida da outra, mais e mais pedras voavam em minha direção.
“Apenas aguente, é sua maldição” eu disse a mim mesmo, sentindo partes do meu corpo ficarem doloridas pelos impactos.
Podia me levantar, ir até lá e quebrar os ossos de cada uma daquelas pessoas, podia cortar suas cabeças, jogá-los aos monstros e rir de suas efêmeras vidas, mas… não valia a pena. O preço era alto demais para eu me incomodar, além disso, havia algo que eu acreditava firmemente, por isso, eu não fiz nada.
Gyii… Ahhhh!!
O grito de uma criatura ecoou, chamando a atenção daquelas pessoas, as pedras cessaram. Olhando por debaixo do braço, pude ver o rosto de alguns se deformarem, como se os portões do inferno se abrissem.
Sombras tomaram o ambiente vermelho criado pelas esferas de energia no céu, tudo escureceu, e, apesar de não olhar, pude perceber o que aconteceu.
Formando um domo ao redor daquela área, os demônios se amontoaram, impedindo a luz vermelha de invadir o lugar.
O bater de asas ecoava como um aviso, não uma ou duas, eram milhões, assim como as criaturas que agora os cercavam.
Criaturas folgadas, que desciam ao chão e caminhavam como gente no meio da rua, podia vê-los, e vi mais, os vi cercar aquelas pessoas, sem a mínima preocupação de serem interrompidos.
Não tentaram me atacar, ao invés disso, quase fizeram um contrato comigo. Eu não me envolveria, e, em troca, eles me deixariam em paz.
O que dizer? Nada, não havia nada a ser dito. Não, havia algo…
— Culpem a si mesmos, por eu não poder me envolver.
Gritos, pedidos e lamentações. Não sabia quantas pessoas ali estavam, ou quantas morreriam, mas minha mente gritava junto ao choro de cada uma.
…
Silêncio, a marca inegável da ausência de vida. No alto do céu, o vermelho ainda brilhava forte, e ao meu redor, corpos estilhaçados num mar de sangue espalhado pela rua.
— … eu não pude salvar ninguém.
Minhas mãos estavam manchadas… não por um sangue que derramei, nem pelo sangue daqueles que recusei a ajudar, esses nunca importaram, não valeram meu tempo, mas aquelas pessoas… mesmo me atacando, elas valiam a pena salvar.
Crack!
Saindo da minha pele, algo parecido com uma casca se desgrudava aos poucos, era rígida e transparente.
“Se eles não tivessem jogado as pedras…” pensei, me virando em direção à saída da cidade.
Era possível ver a muralha de onde eu estava, maior, e mais imponente que a interna, mesmo assim, eu sabia ainda estar a algumas horas de finalmente chegar lá.
Meu corpo não doía, estava recuperado, mas se eu fosse mesmo lutar, isso não duraria por muito tempo, já que aos poucos ele mesmo se destruiria, até o ponto em que tudo isso voltaria a acontecer.
“Não é da minha conta, de qualquer forma…” Aceitando o acontecido, continuei meu caminho.
Meu objetivo era reunir conhecimento, mas agora, minha única forma de fazer isso se foi, não havia mais nada que fazer nesse lugar.
— Eu espero que viva bem, empregada chefe…
— Próximo Capítulo – Vigia —
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