Progenitor das Sombras

    Caderno 1 – Sangue de Magma

    Capítulo 09

    A cama macia sob seus dedos a puxava como nunca, se pudesse, com certeza voltaria a dormir, e com isso em mente, ela sussurrou: — Ah não… se o despertador ainda não tocou, não deve estar na hora.

    Na mansão de Ezequiel, a empregada chefe despertava calmamente de seu sono. Seus olhos aos poucos se abriam, enquanto percorriam lentamente o quarto escuro – quase completamente vazio.

    Ajeitando o travesseiro entre seus braços, ela o apertava como um amante, enquanto se encolhia na maciez do cobertor. Seus olhos se fechavam, lentos, como se apreciasse cada segundo daquele calor quase imoral.

    Fechada, a janela do quarto estava em seu campo de visão, mas nenhuma luz passava pelas frestas, significando ainda ser noite. Não importava, o silêncio havia tomado o quarto, mas dessa vez, ela queria aproveitá-lo.

    Há muito tempo aquela mulher vinha tendo problemas com o sono, não sabia o motivo, mas sempre era acordada por um pesadelo, e pela primeira vez em anos, tinha conseguido dormir bem, e, enquanto ainda tivesse essa chance, ela desejava aproveitar.

    — … estranho… — ela disse ao sentir certa moleza no próprio corpo ao tentar se levantar.

    Pela segunda vez ela acordava, sua barriga estava roncando, mesmo assim, o despertador não havia tocado. Olhando para a cabeceira da cama, ela observava incrédula o monitor do despertador, que estava desligado.

    Se sentando, algo como um grito baixo chamou sua atenção, ela escutou com cuidado o silêncio do quarto, porém, o som desapareceu, deixando para trás um vazio abafado. Sem conseguir tirar isso de sua mente, ela levantou.

    Indo até a janela à esquerda da cama, ela observava o lado de fora por uma fresta na janela, estava escuro, mas era óbvia as silhuetas demoníacas perambulando pelo jardim sob o manto da noite.

    “Mestre…”

    Desviando da cama, ela correu na direção contrária à da janela. Seus passos ecoaram fortes na madeira antiga, e com pressa, ela puxou a maçaneta, mas sem fazer ideia de que uma das criaturas ali a esperava.

    — AHH!!

    Suas pernas fraquejaram e, enquanto caía, ela observava os olhos vermelhos da criatura fixarem em si. Não via sua forma, mas pode perceber as enormes mãos sombrias que se aproximavam de seu rosto.

    — Não!!

    Woosh~

    Silêncio…

    Abrindo os olhos com receio, ela viu suas mãos estendidas na tentativa de afastar o monstro, que já não estava mais em sua frente.

    Dentro da escuridão do corredor, manchas escuras de um líquido viscoso escorriam pelas paredes, descendo lentamente à medida que se espalhavam pelo chão, não havia sobrado um membro sequer da criatura, apenas seus restos.

    Suspirando, a mulher tentou controlar o batimento eufórico de seu coração, assim como sua respiração. 

    — Energia do vento, fuh…  — Lançando um sopro ao ar, a mulher estendeu a mão direita e, como se a respondesse, a fumaça condensada de sua respiração se agitou. Rajadas de ar percorreram o quarto, sacudindo os cabelos e a camisola da empregada, até finalmente desaparecer em uma pequena brisa. Uma algazarra começou, o grunhido de criaturas ecoou tanto de dentro, quanto de fora da mansão.

    — Diabos, o que é isso?… — Tampando a própria boca, ela se lembrou de coisas que Ezequiel a disse no passado. 

    Entre monstros, demônios e espíritos, os que se espalhariam primeiro com certeza seriam os demônios, eles podem voar, e tem uma boa audição.

    “Mas nem ferrando que aquela criatura era um demônio, era bem maior que um humano comum” Respirando profundamente, a empregada lançou novamente sua respiração ao ar, que se condensou em uma fumaça esbranquiçada. “E ele ainda deve estar lá fora…”

    O ar esbranquiçado se dividia em dois, girando em torno das mãos da mulher, que gesticulava controlando o poder.

    Fhh~~shhhhh! Um som baixo, como um chiado, ecoou pelo quarto.

    Dois anéis feitos inteiramente de vento circulavam em alta velocidade ao redor das mãos da empregada, ela suspirou na tentativa de manter o controle daquele poder, mas seu peito pulsava forte, fazendo os anéis perderem aos poucos sua forma circular.

    “Eu já passei por coisa pior…”

    Indo até o corredor, ela observou os arredores com cuidado, seus pés descalços tocaram o líquido viscoso espalhado no chão. Parecia como pisar na lama, mas a textura gosmenta e o cheiro de fezes tornava aquilo uma poça de esgoto.

    Você deve sair do segundo andar, isso é uma ordem.

    “Por quê? Eu escolhi ficar para te ajudar, não quero ir para os fundos da mansão.”

    Faça o que quiser, mas se algo acontecer, não culpe a mim, está avisada.

    Na tentativa de esquecer a voz de Ezequiel, ela balançou a cabeça e, se concentrando nos arredores, olhou à direita, vendo a porta do banheiro aberta. Isso chamou certa atenção, Ezequiel nunca gostou de deixar portas abertas, além disso, ele era o único a usar aquele lugar.

    Dando um passo em direção ao banheiro, ela sentiu o sangue da criatura a acompanhar, grudado na sola de seu pé, nojento, mas ela não se incomodou e continuou.

    “Por quê?” perguntando-se, ela deu mais um passo. “Por que estou andando naquela direção?!”

    Seus pés se moviam contra sua vontade, havia um cheiro estranho no ar, não o do sangue da criatura, mas algo único, que ela reconheceria mesmo de olhos fechados.

    “SOMBRAS!!”

    Fechando os olhos com força, ela segurou a respiração. Os anéis de ar em volta das suas mãos desapareceram, mas o controle de seu corpo voltou.

    Virando-se rapidamente, ela tentou fugir, quando seu pé escorregou nos restos da criatura morta.

    Tuf!

    — AHH!!! — ela gritou, fazendo esforço para se levantar.

    Apesar de ainda escorregar naquela estrutura barrosa, ela conseguiu se apoiar no antebraço esquerdo, até perceber certa dor em seu tórax. Olhando para baixo, a empregada viu um osso fincado no lado direito de seu corpo.

    — … merda… ah…

    Gyi…! Ahhh!

    O rugido de uma criatura ecoou, um demônio, vinha da parte baixa da mansão.

    Ezequiel sempre a repreendia por ela ficar no segundo andar, dizia não ser seguro, e caso algo acontecesse, seria bem mais difícil fugir, e ele estava certo.

    “Eu não vou morrer…” insistiu a mulher na própria mente.

    Ela segurou a respiração para evitar o fedor do sangue, e se deitando de barriga para baixo, começou a se arrastar entre as vísceras da criatura na tentativa de sair daquele lugar.

    Apesar de ter mais atrito com o chão dessa forma, ela sentia uma dor agonizante em seu tórax toda vez que forçava sua perna direita.

    Paf~~

    Um passo soou, chamando a atenção da mulher, mas de quem? Ela não sabia, e não estava disposta a ficar ali para descobrir. Respirando com dificuldade, ela jogou o ar para fora.

    — Fuh… — Suas narinas arderam ao serem preenchidas com o fedor do sangue do monstro, seus olhos se encheram de lágrimas, mesmo assim, ela moveu os dedos controlando o ar ao seu redor. Fechando os olhos, ela se concentrou…

    Paf~~

    O rosto da empregada chefe se tornou amargo por não conseguir se concentrar, ela sentia estar perdendo o controle de si mesma, e apesar de não saber quem ou o que, ela sabia que algo estava interferindo em seus pensamentos.

    “O mestre me ensinou…”

    — Tome controle de seu vazio, ou ele irá a controlar.

    “… a controlar minha própria mente…”

    — … respire e jogue o ar, torna-o parte de si…

    Ela bateu com a testa no chão e respirou profundamente, o fedor a incomodou, mesmo assim, ela continuou…

    FUSH!!

    Uma rajada de ar explodiu, fazendo os restos da criatura serem empurrados até as extremidades do corredor. A empregada levantou, revelando a parte frontal de seu corpo ainda coberto pela estrutura barrosa.

    “Você falou sobre aquelas criaturas, mas eu sei que tem mais um tipo.” Balançando a cabeça, ela tentou tirar a própria voz dos pensamentos, porém, sem sucesso algum.

    — Criaturas das sombras são um caso à parte, nenhum poder pode atingi-las, e se algum dia encontrar algo assim, não corra, não vai conseguir fugir delas mesmo que tente.

    “O que eu faço então? Mestre Ezequiel?”

    —… As sombras são… solitárias, assim como as criaturas que nela vivem… vão te observar, não podem te machucar fisicamente, mas se prenderão a ti se alimenta-las, apenas, não sinta medo.

    A porta do banheiro rangeu, o coração da mulher palpitou , ela não olhou, não quis olhar… seguindo para as escadas, ela desceu sem pressa.

    Seus passos soavam na madeira como se saíssem de uma caixa de som, agora ela entendia o motivo de Ezequiel chamar aquilo de irritante, pois ela estava prestes a chegar no primeiro andar e via uma sombra se movendo na escuridão da sala.

    Respirando profundamente, ela usou seu poder…

    — Fuh…

    Fhh~~shhhhh!

    Um chiado ecoou baixo, chamando a atenção da criatura, mas antes dela poder se virar para olhar, o som abafado de sua cabeça caindo soou pelo lugar.

    Em torno da mão da empregada chefe, uma corrente de ar tentava manter uma forma circular, e sem sucesso, se tornava brusca, como se fosse a condensação de um sentimento primitivo de seu ser.

    Seguindo em direção a porta de saída, ela observou os arredores, mas mudou sua rota ao ver um cristal transparente na mesinha de centro. O que chamou sua atenção não foi o cristal em si, mas o que estava embaixo dele, um cartão. Pegando os dois, ela saiu em direção ao jardim.

    Criaturas voavam na direção que ouviam passos, e lá estava, um alvo, pela ausência da luz vermelha eles podiam vê-la muito bem, mas quando ia gritar para avisar seus companheiros…

    Swoosh! Swoosh!!

    Um seguido do outro, demônios caiam sem cabeça. E apesar de ser ineficaz matá-los dessa forma, pois eles não morriam instantaneamente, os impedia de gritar.

    — Eu preciso encontrá-lo… — disse a mulher ao ler a mensagem deixada por Ezequiel, e assim que terminou, a jogou no chão.

    [Não precisa se preocupar, quando acordar, tudo isso terá acabado, e deve estar confusa, mas, para resumir, Cláudio fez alguma merda. Se acontecer alguma coisa, vá até ele, mas se nada acontecer, continue na casa, nada nem ninguém vai te tocar enquanto estiver ai]

    Enquanto caminhava, ela esfregava a testa, várias coisas a incomodavam, e a voz de Ezequiel em sua mente não parava. Sem saber o que fazer, uma pergunta saia inconscientemente de sua boca.

     — O que estou fazendo aqui? — Ao seu redor, altos prédios tomavam completamente sua visão, ela não sabia onde estava, nem tinha ideia de como voltar para o lugar de onde vinha. — Eu tenho que encontrá-lo…

    “… mestre Ezequiel, por que está me ensinando isso?”

    — Você disse que não se importava, que iria estar comigo, é o mínimo que devo fazer.

    A mulher segurava a própria cabeça, a apertava, como se ela doesse ao ponto de explodir.

    — … porque… porque tenho que encontrá-lo?! Por que ele sabe tanto dessas coisas?! Ele devia estar brincando, como uma criança!!

    E em sua mente, a imagem daquele menino a incomodava.

    — Eu já não te falei?… — Entre meio a um sorriso sem graça, na memória daquela mulher, o rosto melancólico de Ezequiel chorava, mas sem lágrimas, pois ele as guardava no fundo, onde mesmo ele não conseguia alcançar. — Eu também… sou uma dessas criaturas…

    … 

    — Ah… belo, eu quero mais… — Soou uma voz rouca.

    Estava escuro, em um quarto quase completamente vazio, uma sombra observava com cuidado a mulher que repousava em sono profundo. Lágrimas escorriam pelo rosto dela, provavelmente estava tendo um pesadelo.

    — … então seu nome é Ezequiel… — disse a sombra ao se levantar da cama, indo em direção à porta do corredor. Mas antes de sair, ele olhou novamente para a mulher. — Eu realmente desejo levá-la para mim…

    Atravessando a porta como um fantasma, a sombra caminhou pelo corredor até a escadaria para o primeiro andar, sumindo dentro da escuridão.

    — Próximo Capítulo – Prelúdio —


    NOTAS: Comente para eu saber se a obra está agradável. Espero que tenha gostado <3

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