Progenitor das Sombras

    Caderno 2 – Os dois lados

    Capítulo 4

    Pelo que dava para perceber, do lado de fora da sala de controle um sol de meio dia brilhava intenso. Talvez eu não voltasse a vê-lo tão cedo.

    — Você não faria isso… não é?… — Uma voz meio chorosa de Cecília ecoou, qualquer um que a ouvisse – mesmo não estando errado, com certeza se ajoelharia e passaria a implorar por perdão.

    Ela estava planejando algo, eu tinha certeza, e com isso em mente, minha resposta só podia ser uma: — Não, eu não faria.

    Silêncio. Minha voz ecoou como se fosse o único som daquela sala.

    Todos viram o que aconteceu, mas eu negar na cara dura deve ter os deixado sem reação. Porém, ninguém ali respirava conseguia respirar, e o motivo disso foi a resposta vinda da garota: — Eu sabia! — E como se ignorasse todo o acontecido, ela se jogou em cima de mim com um abraço apertado.

    “Suspeito”, pensei ao ver seu modo estranho de agir. Era estressante, eu não tinha nenhum interesse em jogos mentais, e ela era uma profissional. Mas havia algo de bom nessa situação, algo que pude chamar de engraçado: as vozes sussurrantes dos guardas.

    — “Ele está enganando ela, temos que fazer alguma coisa.”

    — “Isso dói meu coração, aquele imundo… como ela pode se deixar enganar assim”

    — “Não tem como uma pessoa pura como ela saber que está sendo enganada.”

    “Vocês estão sendo enganados, até um cego percebe que isso é uma atuação”, pensei, tentando me afastar da garota, mas seus braços se encaixavam perfeitamente, de uma forma quase impossível de retirar.

    Em minha mente só podia me perguntar o porquê de ela manchar sua imagem de nobre assim, ela não ganharia nada com isso, e isso me levou a outra questão: — Cecília, por que está aqui?

    O olhar dela desceu em direção ao meu, um olhar perspicaz. Assim como meu tio, que possuía um olhar parecido, ela também tinha. Não um olhar inteligente de quem lia mentes, mas um olhar de quem está um passo à frente e sabe o que faz.

    “Um olhar perigoso”, pensei, tentando me afastar novamente.

    Ela respondeu com um sussurro: — “Não vou poder sair do colégio por um tempo, a direção teve algumas mudanças. Senti que se eu não viesse vê-lo, você não faria esforço algum por mim.”

    — “Está tentando criar problemas?”

    Junto a minha pergunta, um sorriso se abriu no rosto dela. Ela cochichou em meu ouvido. — “Por que eu faria isso? Eu estou do seu lado, quero te ajudar.

    “Me ajudar? Me colocando contra todos?”, pensei sem dizer nada. Ela continuou: — Eu descobri tanto, mais tanto! Padrinho me mostrou várias coisas, me mostrou o que tem debaixo dessa cidade. Você já viu?”

    Sussurrei uma negação para ela, e um sorriso ainda maior tomou seu rosto. Era claro que ela queria me contar, compartilhar suas novas experiências, mas estava se contendo por causa dos guardas. — “É lindo, é diferente daqui. Isso me fez pensar que o mundo lá fora não é um deserto, não pode ser só isso. E eu quero ir lá.”

    — “Um pensamento precipitado, isso é perigoso.”

    — “Eu sei disso, sei mesmo, mas sei que você também quer sair.

    — Acho…

    Ela me interrompeu: — Ezequiel, não importa que tipo de conto seja, você o lê, como se quisesse entrar naquele mundo. Você faz isso por não poder, mas tanto quanto eu, você quer explorar esse mundo, não quer?”

    Um olhar cheio de antecipação tomou seu rosto. Era isso que ela pensava, que eu apenas queria explorar esse lugar? Se fosse tão simples eu apenas pediria permissão ao meu tio, e não era assim. Ela continuou com plena certeza de suas palavras:

    — “… eu sei que quer, e eu vou te ajudar.”

    — “Como?” — perguntei com certa desconfiança, e sua resposta não me passou nenhuma.

    — “Apenas confie em mim.”

    Se afastando, ela puxou minha mão em direção a saída. O verde do lado de fora me chamou atenção, árvores, o sol, por algum motivo aquilo não parecia real. Tanto que por um instante me perguntei se ainda não estava preso naquela cela, apenas imaginando novamente estar em outro mundo.

    Não tinha como ser um sonho, sentia o calor abrasador que vinha da mão grudenta de Cecília, provavelmente por minha culpa, mas em nenhum instante ela pareceu se importar com isso. Era estranho e nojento, mesmo assim…

    “É quente…”, pensei, tentando ajeitar um certo desconforto na mão, sentindo logo em seguida um desconforto ainda maior. A voz da menina soou:

    — Apenas aguente, você seguiu esse tempo todo sozinho, não foi? Nunca foi divertido, nem agradável. — Com o nosso caminhar a luz do sol se intensificou, fazendo o chão de concreto frio sob meus pés descalços se tornarem um pouco mais suportáveis. Virando-se para mim, Cecília continuou: — Eu sei que não vai ser agradável, nem divertido. E é por isso que escolhi ir com você.

    — Eu não entendo, o que está tentando fazer? Você é como um livro em branco, tendo seu conteúdo escondido por magia. Não consigo te ler.

    — Não Ezequiel, você é assim. Você é todo confuso, errado e estranho.

    — Pensei que estava tentando me convencer, se fosse com qualquer outro não funcionaria.

    — E funciona com você? — Ela disse em um tom zombador, porém, amoroso, se aproximando ainda mais de mim. Era estranho ter que levantar a cabeça para observá-la, mas não tinha o que fazer se eu era mais baixo. Me afastei um pouco para continuarmos a conversa:

    — Quando você invadia minha casa não podiam nos ver. Olhe para você agora, estamos sendo observados por milhares de guardas e você está toda suja. Não é uma nobre? Sua imagem está em risco…

    — Não é para tanto — ela disse cortando minha frase: — O máximo que fariam é me chamar de idiota e ingênua, o que não deixa de ser verdade. Então, por que se preocupar?

    Senti o toque de sua mão se afrouxar, fazendo desaparecer aquele sentimento de desconforto. Ela finalizou: — Eu não me preocupo com nada disso, não vou deixar me afetar. E sei que pode ser difícil no início, mas, Ezequiel, deixa eu te guiar, eu vou te tirar daqui, vou te apoiar, e em troca eu só preciso de uma coisa, coisa que só você pode fazer.

    — O quê?

    Eu esperei por uma resposta, mas pude ver o receio em seu rosto. Sem conseguir me olhar, ela se aproximou, escorando seu corpo no meu. Senti sua respiração quente em meu ouvido, seu coração acelerado, e com um sussurro, ela terminou: — “Me proteja…”

    Por algum motivo senti uma dor em meu peito, mas era diferente da dor física. Por que ela não se movia? Por que não dizia mais nada? Tudo isso apenas tornava as coisas mais difíceis para mim. Não esperava por nada disso, principalmente o sorriso meio sem graça no rosto da menina ao se afastar.

    “Ela está arrependida”, pensei ao vê-la desviar o olhar de mim. Por um instante eu até me perguntei se ela era realmente a Cecília que eu conhecia, e logo percebi algo: “Ela disse ‘padrinho’? E é alguém que pode levá-la ao subsolo, quem é esse homem para ter tanto poder?” Mas se eu pensasse bem, apesar de ela me contar muitas coisas, nunca havia dito sobre seus familiares.

    A voz cansada dela me tirou a concentração: — … não vou insistir, não quero que se force a algo por mim, mas eu não vou ter medo se você estiver comigo…

    — Por que confiar tanto assim em mim?

    — Porque sei que se for você, mesmo que precisasse enfrentar um deus, você faria. 

    “Ela vai apenas trazer problemas, como todos os outros trazem”, um pensamento surgiu em minha mente, seguido pela resposta conflitante: “Tente dar uma chance, como saber se ela diz a verdade se não tentar?”

    Não dava para voltar atrás se eu escolhesse errado, futuramente eu apenas desejaria não ter feito ela, mas como eu poderia saber qual era a escolha certa? Não tinha como, não até ela dar errado. Mas…

    “E se as duas decisões estiverem erradas?”, e junto a minha pergunta, senti os dedos dela escorregarem por minha mão. Apesar de me puxar desesperadamente com a ponta de seus dedos, ela estava me soltando. Não queria me soltar, mas estava.

    Uma questão de repente tomou minha mente, me fazendo esquecer de todas as outras: “Se essa pessoa fosse sua única saída, o que você faria?”, e milhares de pensamentos se espalharam por minha mente, tantos ao ponto de me fazer perder a fala. Mas apenas um prevaleceu, um que apenas ‘Ezequiel’ conseguiria formular.

    — Tudo bem, eu vou te proteger. — Pude ver a felicidade emanar do sorriso dela com minha resposta. Eu segurei sua mão, me permiti ser puxado para seu lado, mas de alguma forma ainda sentia parte de meu corpo na escuridão.

    “Não me importo se você quiser me perdoar, vou seguir o caminho que acredito, que fui criado para trilhar…”

    Nós caminhamos por um tempo. Árvores tomaram nossos arredores e, sem prestar atenção em mais nada, conversávamos. Às vezes ela se aproximava de mim, observava como eu reagia a sua aproximação e se afastava, mas sem nunca soltar minha mão.

    Essa era a Cecília que eu a conhecia, mais do que qualquer outra pessoa nesse lugar, ela era viva, sorridente, era interessante de observar. Eu me perguntava se ela sabia que estávamos andando em círculos, com certeza devia saber, já que era ela quem nos guiava. Porém, mesmo andando em círculos, sua confiança em me levar realmente me fazia pensar que chegaríamos em algum lugar.

    Ela era esperta, sabia que olhares incômodos se voltariam a nós no momento que vissem o estado imundo de seu corpo – principalmente por estar comigo. Mas em nenhum momento ela deu indícios de ter isso em sua mente.

    Eu a ouvi contar suas histórias diárias, coisas tristes e felizes – muitas delas por termos ficado bastante tempo longe. E o momento que mais chamou minha atenção foi quando sua voz feliz me contava sobre uma tal de Hellen, uma amiga que ela fez no colégio.

    — E você fique longe dela, okay? — ela disse com um sorrisinho no rosto, não pude deixar de soltar um também.

    Em algum momento, em que o silêncio já havia tomado nosso caminho, um sussurro ecoou de sua boca: — “Você mudou nos últimos anos Ezequiel, você se tornou bom” — Junto ao toque firme, porém, ainda mais gentil e amoroso de sua mão.

    — Disse alguma coisa? — perguntei, fingindo não ter ouvido.

    — Hum… eu só estou feliz.

    — Não acho que fizemos algo diferente do comum. Por quê está feliz?

    — Você só está se fazendo de bobo, quer tanto assim me ouvir dizer? — Ela perguntou com um semblante malicioso. Não pude responder, assim que percebi, estava me perguntando a mesma coisa. E quando a olhei novamente, ela sorriu como se estivesse satisfeita.

    Largando minha mão, ela deu alguns passos para trás escondendo as mãos atrás do corpo. Ela continuou: — Como disse antes, se as leis do colégio mudarem, não vamos nos ver por um tempo. Não sinta minha falta, ainda estou chateada com você.

    “Não parece”, pensei sem dizer nada, mas imediatamente ela fez um biquinho:

    — … consigo ver em seu rosto. Não sei o que pensou, mas é melhor tirar da cabeça, estou realmente chateada com você.

    — Sei.

    — Eu estou falando sério! Tsc! Nem adianta, não vou te convencer. Você sabe onde fica o jardim dos nobres, não sinta minha falta, mas se sentir, venha me ver.

    Antes que pudesse dar uma resposta, ela deu a língua, correndo logo em seguida floresta adentro. Ela já sabia minha resposta:

    — Vou pensar sobre isso.

    ***

    Olhando ao redor, eu observava as árvores daquela floresta artificial lentamente florescerem. O verde vibrante das folhas sendo atravessadas pela luz solar, o calor que aquilo emanava, eu gostava. Mas havia algo entre as fibras daquelas árvores que tornava aquele ambiente calmo em algo vazio, quase ao ponto das vozes sussurrantes daqueles que um dia passaram por ali serem ouvidas.

     O eco de uma voz soou entre as árvores: — E ele disse: ‘Que o mundo caia sobre as águas da perdição’

    Um tom lento, misterioso, eu reconhecia aquela voz. Olhando ao redor, logo vi um homem alto recostado em uma árvore à minha esquerda. Seu rosto era jovem e sério, seus cabelos escuros e sua postura requintada me lembravam a lua. Uma comparação estranha, mas se encaixava bem para aquele ser nobre e misterioso.

    — Senhor Zhao? — perguntei ao ver que na verdade o homem estava recitando uma passagem do livro em sua mão.

    A capa de couro escuro me atraiu, nunca tinha visto um modelo assim, mas realmente me interessei no momento que estranhas letras douradas na capa brilharam chamando minha atenção. Não consegui as reconhecer, era outra língua? Não existiam muitas nesse lugar, apenas três. Duas delas eu conhecia, sabia apenas os símbolos da terceira, mas não se parecia com nenhuma delas.

    — Me faz parecer como um ancião quando nem passei dos trinta. O que houve com você para ficar tão audacioso? — Os olhos dourados do homem se dirigiram a mim, olhos sérios e cheios de honra, assim como sua voz.

    — Quem sabe, as aparências enganam, talvez você seja um dragão de um milhão de anos vivendo no reino dos humanos. — O homem riu com minha resposta.

    — Bobagem, estamos no mundo real, não existem dragões, deuses apenas em sonhos. Mas vejo que não perdeu sua aura de sonhador. O que está fazendo aqui? Espera, acho melhor deixar essa questão para outro dia.

    — O cheiro te incomoda? — perguntei percebendo o olhar indiferente do rosto dele.

    — Não o cheiro, me sinto desconfortável ao ver essas coisas grudadas em seu corpo, sinto como se estivesse no meu. — Desencostando seu corpo da árvore, ele caminhou floresta adentro, concluindo antes de partir: — Quando possível passe na biblioteca, aqueles que buscam conhecimento sempre serão bem vindos. Mas atenha-se a sua aparência antes de vir, um cientista não é um cientista sem seu jaleco.

    Sem perceber, soltei um grito ao ver o homem partir: — Bibliotecário Zhao! — E junto a um aceno com sua mão, ele continuou sua leitura:

    — ‘Conforme o tempo se esvai, ele continua a caminhar. Amaldiçoado, sem saber de onde vinha, ou onde iria acabar…’

    Ciumento, ele fingia não ouvir quando sabia que iriam pedir suas coisas, principalmente quando se tratavam de livros. Olhando ao redor, me perguntei o que fazer.

    “Ir para a mansão vai me levar até aquela mulher, não quero vê-la agora, vai ser problemático”, pensei me lembrando da empregada chefe, mas não havia nenhum outro lugar para lavar meu corpo.

    De repente uma ideia veio como um raio: “Burro, usa o caminhada nas sombras. Vão poder sentir seu cheiro, mas não te encontrar.” Estava decidido. Voltando a caminhar, atravessei a floresta.

    Conforme eu caminhava, uma parede branca subia no horizonte, e aos poucos, a alta construção adornada em vitrais azuis com imagem de santos logo se tornou um robusto castelo celestial.

    O colégio, o único lugar nessa cidade que realmente valia a pena explorar. Nem em mil anos eu imaginaria que a prisão ficava no subterrâneo do Coliseu, e apenas não descobri antes porque eles me desmaiaram antes de me prender. Mas saber disso me gerou um incômodo, uma coisa que mesmo agora eu sentia estar acontecendo:

    “De alguma forma, tudo isso está conectado”.

    Ignorando esse sentimento, me dirigi a aquele lugar. Mas antes de chegar em casa teria que ouvir mais algumas vozes enjoadas…

    — “Ele está fedendo, que horror…!”


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