Capítulo 23: Troca
Progenitor das Sombras
Caderno 2 – Os dois lados
Capítulo 5
Um mundo coberto por cinza e preto onde pessoas não caminhavam, apenas seres feitos de rabisco. Tudo ao meu redor se tornava assim quando aquela habilidade era ativa e eu caminhava pelas sombras. Como chamar aquilo? Era apenas uma visão diferente do mundo à minha volta ou realmente outro lugar?
“Se ninguém pode me ver, deve estar em outro lugar”, pensei comigo mesmo, tendo em mente um nome para aquele mundo.
— Mundo de preto e branco! — Gritei no ouvido de um transeunte que passava ao meu lado, sendo completamente ignorado. Apesar de eu poder tocar nas pessoas e me envolver com o aquele mundo, ninguém ali podia me ouvir. Voltando a caminhar, afirmei em minha mente: “É perfeito, esse com certeza é o melhor nome que já escolhi”
Eu ainda estava no colégio. De acordo com Cecília, a invasão de monstros deixou várias marcas nas pessoas, ela disse que muita coisa havia mudado e, por um instante eu parei para averiguar. Mas depois de algum tempo, apenas percebi que um dos lugares que deveriam estar mais vazio – o portão leste. Era onde mais alunos estavam se agrupando, principalmente nobres, correndo e estudando aleatoriamente por aí. Fora isso, nada parecia incomum.
A voz ofegante de um aluno soou: — Arf… arf… meu santinho das pernas, estou morto. As aulas da tarde nem começaram, por que temos que correr?
Parando de correr, o aluno que o acompanhava respondeu: — Você ainda é apenas um brasão de bronze, quando conseguir um brasão prateado vai conseguir informações mais rápido… — Ele engoliu a saliva antes de continuar: — … meu tio possui um brasão dourado e, ele me contou que o corpo armazena mais “Elemento” se bem treinado.
— SÉRIO!? Então não me chamou à toa?! — O primeiro aluno gritou, chamando atenção dos demais.
— Sh!! — O segundo aluno fez para que o primeiro se calasse, completando: — Essa informação não veio de dentro das muralhas, meu tio comprou de um brasão rubro, que comprou de um “Vagante”.
— Espera, “Vagantes” não são aqueles caras que saem da muralha? Eles não são apenas exploradores que fazem troca na cidade?
— Você está errado, meu amigo. — Se sentando no chão, o segundo aluno esticou o corpo antes de continuar: — Por decreto, os que vêm de fora (Vagantes) só tem permissão de vender itens. Eles são proibidos de usar seus poderes na cidade ou vender informações falsas, a questão é, toda informação vinda de fora é considerada falsa. Mas sabemos que Styx é apenas uma das sete cidades, quanto conhecimento eles não devem ter sobre rotas seguras e criaturas? Se brincar, podem saber bem mais que nós sobre essa coisa… — Junto ao movimento de seus dedos, as gotas de suor no seu rosto se juntaram e começaram a flutuar pouco acima de sua mão. Vendo aquilo, o primeiro estudante bateu com a mão no ombro de seu amigo.
— Eu te entendo cara, por mais que você seja brasão de prata, é um inútil. Só pode se tornar um curandeiro ou um bruxo com o controle de água. Bom, pensa pelo lado bom, você ainda é um nobre, depois do batismo… — Vendo que seu colega estava depressivo, ele parou de falar. Ser um moldador de água era quase um desperdício comparável a ser um controlador de vento.
Enquanto aqueles que controlavam o vento não podiam fazer mais que criar uma brisa, os moldadores de água, ou Séros, como eram chamados, podiam pelo menos usar táticas curativas. Por existir medicamentos, muitas vezes curandeiros deixavam de ser úteis e, ser um bruxo levava a olhares de revolta e desconfiança.
— Tá decidido! — o primeiro aluno gritou, levantando o amigo pelo braço. O segundo parecia estar prestes a dizer algo quando o primeiro continuou: — Seja um rumor ou não, vamos tentar. Se você se tornar mais forte, pode acabar descobrindo algo que ninguém saiba. Imagina ser o primeiro Séros de batalha? Que título, viu, só de imaginar dá orgulho. Vou ter que me esforçar, senão você me deixa.
O segundo estudante riu envergonhado, ele disse: — Falta quatro meses para meu batismo, cinco para o seu. Se eu pegar uma extensão de um mês podemos sair juntos, o que acha?
— Feito!
— Então vamos continuar, não dá para ganhar um brasão dourado apenas com força aquisitiva. E não quero por falta de opção, me tornar um bruxo, mas…
— Não tem essa de ‘mas’, nem mais, nem menos. — Batendo no ombro do amigo o primeiro aluno continuou: — Você não vai se tornar um bruxo, se acabar acontecendo, então também vou me tornar.
— Você é um Gaein, como vai virar um bruxo?!
— Duvida da minha perspicácia? Não me importo se precisar me tornar um Vagante e passar incontáveis dias em busca de uma forma. Se esse é o caminho que meu amigo vai seguir, sei que vai valer a pena o acompanhar. — Um sorriso se abriu no rosto do outro estudante ao ouvir essas palavras, ele estava tão envergonhado que parecia querer esconder a cara.
Eles voltaram a correr, deixando várias questões estagnadas em minha cabeça. Não apenas questões sobre os acontecimentos, mas sobre amizade.
“Então é isso que chamam de brotheragem?”, perguntei a mim mesmo enquanto voltava a caminhar.
Por já estar no lado Leste do colégio, não foi preciso muito tempo até encontrar o grande portão de saída, estranhei o fato de ele já estar aberto. Já que os alunos não podiam sair, imaginei que tinham conhecimento de minha presença. Só que era realmente estranho, há apenas duas semanas eu caminhava por essa mesma rota, era meu aniversário e eu vinha para o Coliseu encontrar meu tio. Estar aqui me passava um sentimento de angústia, de estar fazendo sempre a mesma rota. Às vezes eu me perguntava: “Quando as coisas começam a mudar?”, mas nunca cheguei a uma conclusão.
“Fazem quatro anos desde que cheguei aqui… o quanto as coisas mudaram?”, mesmo que usasse toda minha memória, não conseguia pensar em nada. O problema dessa questão era um fator essencial, algo que eu não tinha certeza ter, e que todos chamavam de: “humanidade”. Uma palavra complicada, que, enquanto eu caminhava pela cidade, a estudava naquelas pessoas ao redor.
Tudo era muito comum, pessoas conversando, caminhando, usando seus dispositivos e ouvindo música. Não eram músicas desse lugar, apesar de estar longe eu podia ouvir a canção Mahrnna. Uma música de ritual em uma língua estranha, vinda de outra cidade que, assim como a língua, eu não conhecia.
Não sabia o motivo de eles gostarem tanto assim dessas músicas, mas era comum nas pessoas desse lugar. E enquanto caminhava, o ritmo ia se prendendo em minha memória. Os tambores, as flautas, era como se estivéssemos em uma floresta, e uma caçada estivesse prestes a começar.
“Tum, tum, ta. Tum, tum ta. Tum…” As vozes de coro surgiam aos poucos, como lamentos, choros aos deuses pela falta de algo essencial para a vida daquelas pessoas. E quanto mais clamavam e mais dolorosas se tornavam as vozes, menos delas podiam ser ouvidas, pois deixavam de clamar. “Tum, rum, rum, tum, rum, tum…” Uma mudança drástica, vozes fortes masculinas agora cantavam, caçavam, jogavam suas lanças para proteger suas crias. O que eles diziam? Eu os ouvia, meu peito acelerava junto a batida, e suas vozes me alcançavam:
“Se os deuses não nos querem, nós, tornarèmos deuses”
O portão da minha casa, eu o observava sem entender. Olhando para trás apenas via uma rua meio sem nada. Algumas pequenas casas simples à direita e apenas a floresta à minha esquerda. Como eu havia chegado lá? Não sabia, já estava escuro, era uma caminhada de duas horas até minha casa, mas não dava para dizer que levei esse tempo nessa caminhada.
Vendo que o portão não estava trancado, apenas o empurrei, fazendo um rangido ecoar de forma estridente.
“Espera, eu estou ouvindo?”, perguntei a mim mesmo ao ver que algo estranho estava acontecendo. E de repente, meu mundo em preto em branco se quebrou. A escuridão da noite tomou meus arredores, porém, iluminada por uma luz esbranquiçada. Olhando para cima observei a lua, que emanava um brilho celestial. Não era uma luz criada pela barreira que protegia a cidade, ela realmente vinha da lua, coisa que até algumas semanas era impossível nesse lugar amaldiçoado.
— Mestre Ezequiel?! — Cheia de angústia e pesar, uma voz que eu conhecia bem ecoou chamando minha atenção. A imagem que eu vi foi de uma mulher mais velha, não pela idade, mas pela angústia e a preocupação. No momento seguinte, ao realmente entender minha presença, seu rosto enrugado se tornou jovem junto ao sorriso que ela me entregou, e, cheia de alegria, ela correu em minha direção. Não era uma mulher de nobreza, usava apenas um longo vestido simples verde escuro e um longo cabelo cor de prata, bem simples, mas se tratando dela, não era preciso mais do que isso.
Eu apenas esperei que ela viesse até mim, mas assim que ela se aproximou, parecendo estar pronta para me abraçar, ela parou. Eu não tinha certeza de que tipo de olhar eu estava fazendo, só tive certeza que foi esse olhar.
— E-Eu fiz a janta, se quiser tomar um banho antes de jantar.
É, não foi o olhar, por um instante esqueci o estado do meu corpo por causa de Cecília. Se mesmo a empregada chefe não conseguia aguentar o cheiro de minha presença, como ela aguentou? De toda forma, agora não importava.
Me levando para dentro de casa, de forma apressada ela me apresentou um prato de comida. Uma comida estranha, de um tom amarelado e difícil de mastigar. Ela disse que era um prato estrangeiro e que faria bem para minha saúde. Não me importei com os itens em cima da mesa, utensílios de cozinha, principalmente as afiadas facas de cortar carne. Era a prova de que ela mal teve tempo para os guardar.
Desde que eu me lembre a empregada chefe sempre foi uma presença difícil, ela gostava de tentar coisas novas e fazer descobertas, mas apenas quando era para me beneficiar. Com um sorriso gentil no rosto, ela disse: — Coma tudo, você ainda está em fase de crescimento, só vai crescer se comer.
— E você? — perguntei ao sentir incômodo por ser observado. Apesar da mesa grande, apenas nós dois nos sentávamos. Essa podia não ser a melhor mansão de todas, mas além da empregada chefe haviam muitos empregados. Percebendo a falta deles, completei: — Os outros não virão?
— Não quero agora, eu comi mais cedo. Já os outros eu não sei, há apenas alguns minutos eles estavam aqui — ela respondeu, parecendo não ter mentido. Eu a conhecia bem, sabia quando não estava em seu melhor estado. Porém, algo ainda me incomodava naquele lugar.
Algum tempo depois ela se ofereceu para preparar a banheira enquanto eu esperava passar uma hora da comida. Apesar de já saber a razão do problema, ainda não queria acreditar. Me levantando, observei alguns traços incomuns naquela casa, coisas que não deviam estar lá.
Não haviam objetos no chão ou coisas jogadas, apenas marcas como a de um objeto que foi empurrado ou poeira. Para uma casa com tantos empregados, algo como isso nunca passaria.
Subindo para o segundo andar, percebi a poeira incrustada no corrimão da escadaria. E olhando para baixo, observei de cima a sala de estar, a qual a escada era conectada. Na mesa de centro ainda estava a carta que eu havia deixado para a empregada, mas não o cristal que eu havia lhe presenteado. Além disso, ainda pude ver meu terceiro arpão dourado atrás do sofá.
Subindo para o segundo andar, andei pelo corredor em direção ao banheiro. A porta já estava aberta, a luz acesa, mas o longe eu via a maçaneta quebrada. Não foi algo que aconteceu quando eu estava aqui, não ouvi um barulho sequer vindo de cima desde que entrei em casa.
Olhando melhor, uma porta antes do banheiro, em frente ao quarto da empregada, pude ver algum tipo líquido viscoso congelado. Sangue de criatura, eu conhecia bem, só não sabia de que criatura era, mas tinha certeza de uma coisa.
— Qualquer criatura que tentasse entrar aqui, morreria antes mesmo de conseguir respirar. A não ser um tipo de criatura, revela-se, criatura das sombras.
— Hahahaha, foi como ele disse. — Uma voz desagradável surgiu junto a uma silhueta coberta por um manto, atravessando a porta fechada do quarto da empregada. Não era possível ver o rosto ou o corpo daquela coisa, apenas um pouco de suas mãos cobertas por luvas escuras.
Uma criatura das sombras com forma humana, algo que nunca e de forma alguma deveria se realizar. A voz surgiu novamente, estridente, ainda mais desagradável pela sua calma e lenta pronúncia: — Ahh… o quanto esperei para te encontrar. É como disseram, eu não consigo sentir sua presença. Mas você pode me ver, significa que encontrei a pessoa certa. — Levantando uma das mãos, ele fez um gesto de entregar. Um fogo azul de repente se espalhou por suas luvas sem queimar, revelando a imagem de uma pessoa, a mulher que a pouco me atendia. Soltando uma risada maligna, ele fez sua oferta: — Que tal fazermos uma troca? E como é a primeira oferta, eu coloco, essa alma.
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