Progenitor das Sombras

    Caderno 2 – Os dois lados

    Capítulo 6

    Ao ver a chama azul fluorescente com o rosto da empregada chefe, senti meu peito se congelar. Mas apenas por um instante.

    Assim que olhei para dentro do cômodo à minha frente, percebi a silhueta de uma mulher sentada na beirada da banheira. Ela não parecia ter percebido minha presença, nem a daquele ser que segurava a chama, dizendo ser uma alma. Ela apenas brincava com a água que lentamente saia da torneira.

    Me voltando àquele ser encapado, observei novamente a chama azul em sua mão. Pensei: “Essa não é a cor de uma alma, é apenas uma síntese. Ele fez uma alma artificial da minha empregada, por quê?”

    Vendo a dúvida em meu rosto, o ser estranho continuou: — Perdão, é falta de educação negociar sem se apresentar. Eu sou…

    — Não importa, vá embora. Não tenho nada a tratar com uma criatura das sombras, principalmente se tratando da que invadiu minha casa. — O interrompi, segui em direção à banheira. Nada de bom sairia de uma conversa com uma dessas criaturas.

    Se dando conta de meus passos, a empregada se virou, me recebendo com um sorriso no rosto e uma esponja na mão. Eu não tinha certeza de como a maçaneta do banheiro estragou, mas, pelas marcas de lâmina, era visível terem sido feitas por um Zefir. Não conseguia imaginar o que tinha acontecido nas últimas duas semanas. Desde que tudo começou, não voltei uma única vez para casa, mas não devia ter acontecido algo assim.

    “E as coisas parecem ainda mais decadentes, como se ninguém cuidasse desse lugar a semanas”, pensei, guardando uma certa ideia do que tinha acontecido no fundo de minha mente.

    Assim como sempre, a empregada me levou para debaixo do chuveiro e até mesmo tentou cortar meu cabelo. Não era incomum ela fazer isso, mas hoje, diferente de outros dias, sua persistência deixou de ser algo agradável.

    — Eu vou cortar seu cabelo, apenas fique quieto.

    — Afaste-se, não encoste em meu corpo — avisei à empregada que tentava de qualquer forma me arrumar.

    — A bucha é pequena, é impossível não te tocar. Nem terminei ainda de te ensaboar, como vou cortar seu cabelo sem te tocar?

    — Corte do tamanho de sempre, não pedi que cortasse menor. — Um sentimento frio de repente se espalhou por minhas costas, junto a voz da empregada, que usava sua mão para tirar a espuma do meu corpo:

    — Há marcas de criaturas, garras, e cortes lisos, que apenas facas fariam. Quem fez isso com você?

    — Quem se importa, só tira a mão de mim —- eu disse me afastando, já estava me incomodando. Qual era a dificuldade de cuidar de mim sem me tocar? Mas a voz da empregada apenas aumentava.

    — Três anos e você ainda não se acostumou?! — Puxando meu pulso direito, ela tentou me agarrar. — Se você pelo menos conseguisse cuidar do próprio corpo, eu não precisaria te ajudar a banhar!

    — TIRA A MÃO DE MIM!! — Virando bruscamente, afastei as mãos da empregada. Mal pude perceber seu corpo cair para trás, pois foi como se ela já estivesse preparada para desviar daquilo.

    Olhando para a mulher caída, vi que suas roupas não haviam sido molhadas pelo chuveiro, mas pela água que já repousava no chão. Mesmo assim ela não se preocupou em se levantar. Pensei: “Ela está pior”, ao ver a situação deplorável em que ela se encontrava.

    Apesar de estar tampando seu rosto com as mãos, era possível ver seus olhos de onde eu estava. Olhos abertos, fixos, como se tentasse enxergar dentro da escuridão. Ela havia parado, tanto de se mover quanto de pensar.

    Havia um ditado, algo que ouvi a muito tempo, dizia: “O que os olhos não veem…”, ou alguma coisa assim, não me lembro bem. Era exatamente isso que estava acontecendo com ela. Seus olhos estavam abertos, vigilantes, como se pudessem olhar para todos os lados sem precisar piscar, mas na realidade, sua visão tinha sido alterada.

    “O que está fazendo? Não disse que ia me proteger? Por que não responde agora? Sua idiota…” Era inevitável. Me aproximando, fiquei na frente de seu olhar. Nem por um instante ela se moveu, até o momento que toquei de leve sua mão e segurei a ponta de seus dedos, confirmando aquilo que eu pensava. Seu corpo tremeu e ela tentou se afastar, era como se estivesse perdida, como se estivesse cega.

    A voz irritante daquele ser de manto ecoou atrás de mim: — Eu não sei o que essa garota passou, mas quanto mais você tocá-la, mais ela vai o envenenar.

    Não é como se eu não soubesse que isso ia acontecer, só que eu precisava ajudá-la. Me aproximei, sendo imediatamente bloqueado pelas mãos dela. Seus braços sem força me empurravam, resistência inútil, só mostrava o quão frágil ela estava. Eu a elogiei por isso: — Continue assim, significa que mesmo sem forças você está tentando, não desista.

    A voz daquela criatura ecoou novamente: — O elemento no corpo dos humanos é venenoso para você. Não consigo nem imaginar a dor que está sentindo apenas por tocá-la, tem certeza que irá continuar?

    — Dor? — repeti a palavra meio que sem pensar. Minha pele não era escura, mas olhando para minhas mãos entrelaçadas com as dela, percebia que aos poucos as veias do meu braço se tornavam esverdeadas ao ponto de escurecer minha cor. Eu expliquei: — Há coisas que doem, outras ferroam, vê-la assim é o que me machuca. Estou acostumado a isso, todos os anos sempre foram iguais, não precisa se preocupar.

    Me aproximando, passei uma de minhas mãos por de trás de seu pescoço e a outra em suas costas, lhe abraçando, de forma que eu dificilmente faria com outra pessoa. Porém, como se estivesse tendo um ataque, ela tentou me afastar de forma brusca e silenciosa…

    — Você não é minha empregada? — Assim que ouviu minha pergunta, pude ouvir a respiração dela voltar. Ela ainda não devia ter certeza, pois não conseguia enxergar, por isso perguntou:

    — Mestre Ezequiel, é você?

    — Uhum, — assim que confirmei, senti suas mãos abraçarem minhas costas. Frio, veneno malicioso que acompanhava o maldito toque da empregada. Ela me apertou, me abraçou da mesma forma que se abraça um santo que te salva. Soluços, lágrimas, felicidade e alívio por aquilo não ser um pesadelo foram expressos por todo seu corpo.

    Não era um pesadelo para ela, mas, para mim, que recebia a energia em seu corpo, era automutilação.

    — Foi minha culpa, não devia ter gritado com você. Está tudo bem agora, eu não vou te machucar — eu disse tentando acalmá-la, já havia percebido tudo que tinha acontecido…

    — É você mesmo? — ela perguntou com uma voz chorosa.

    Encaixando meu braço no pescoço da empregada, eu a confortei: — Está tudo bem, eu nunca a machucaria.

    Vagas palavras falsas, pude ouvir um pequeno sorriso de alivio sair dos lábios da mulher, e depois disso, junto ao som de um estalo, sua respiração apenas pararia. Me levantando, observei o corpo morto da empregada chefe aos poucos escorregar e cair para lá.

    A voz do ser encapuzado ecoou novamente: — Não achei que seria tão fácil para você matá-la.

    — Cale-se. — eu disse, observando o corpo da empregada aos poucos desaparecer. Uma ilusão, um corpo “falso”. Apesar daquela ser verdadeiramente a empregada chefe, possuindo até mesmo suas memórias, aquela era apenas uma parcela de sua personalidade ao extremo.

    — Não devia agradecer? Ela se tornou poderosa o suficiente para criar corpos físicos usando o Elemento. A questão é: onde está o corpo original?

    — CALE-SE! — gritei, já cansado de ouvir aquela coisa irritante. Por que tudo tinha que ser tão complicado? Eu apenas queria ensiná-la a ser forte, mas apesar de ter se tornado forte, ela está sofrendo por minha culpa.

    Indo em direção a saída, percebi que o ser encapado ainda me observava. Suas mãos pareciam inquietas, ele queria dizer algo, mas não lhe dei a oportunidade e apenas saí de lá.

    “Se uma criatura das sombras deseja algo, não é um valor que uma pessoa possa pagar”, respondi a mim mesmo enquanto caminhava pelo corredor, descendo as escadas para o primeiro andar.

    Lá havia quietude, o silêncio de uma mansão abandonada, mas não vazia. Indo em direção à cozinha, olhei para a mesa completamente bagunçada pelos talheres e, dentre eles, uma faca de desossar criaturas.

    — Mestre Ezequiel, você chegou?! — Uma voz feminina ecoou atrás de mim. Assim que me virei, a presença de uma mulher de cabelos prateados me chamou a atenção, mas ela imediatamente se assustou ao ver a faca em minha mão.

    Como eu podia fazer aquilo? Quantas vezes mais eu teria que fazer? E quando isso terminar, ela ainda vai me ver como seu herói ou como o vilão que a assassina? Eu tinha que pelo menos amenizar em sua cabeça, mas como…

    — Empregada chefe… 

    — Sim? — Ela perguntou com um sorriso gentil no rosto ao perceber quem eu realmente era. Ela facilmente me reconhecia, o que apenas tornava as coisas ainda mais difíceis para matá-la. Respirando profundamente, só pude dizer o que pensava:

    — … estamos em um sonho.

    Sentado no sofá da sala, senti minha mão direita que segurava a faca falhar. Não havia sangue na lâmina e a casa estava da mesma forma, como se nenhum alma viva passasse por lá a semanas.

    — Estou cansado, quero morrer — Praguejei em voz alta, tendo meus pensamentos interrompidos por uma risada diabólica, seguida por uma voz estridente e angustiante:

    — Hehehe, com certeza não seria engraçado se fosse outra pessoa a usar essas mesmas palavras.

    — Se você sabe sobre minha imortalidade, não é alguém que eu deva deixar respirar. Não estou com paciência, tem três segundos para se explicar. — Ouvindo minha resposta, o ser riu de forma intrigante. Ele começou a se apresentar:

    — Eu sou Arth-Roph, o Vil. Venho exclusivamente pela e para sua presença, como aquele que premeditará sua caminhada.

    — Udnark.

    — Sim! — A voz do ser vibrou com minha resposta. Eu não o conhecia diretamente, mas sabia que tipo de coisa, ou criatura, ele era. Ele continuou: — Desde os tempos primórdios, os reis…

    — Tá bom, já chega, não quero ouvir uma história que conheço. — Nos últimos quatro anos dediquei minha vida a ler todos os livros desse lugar, fossem eles histórias, poemas, crônicas e até mesmo livros científicos que nunca conseguiria entender. Como poderia não ter ouvido sobre essa também? Na verdade, essa era uma das histórias que eu mais conhecia. Expliquei: — Você é o que chamam de Mediador de mundos, Procurador ou, Negociador.

    O ser parecia prestes a dizer algo, mas eu continuei: — Há algo que me incomoda nessa história. Um Udnark deve encontrar seu contratante no décimo quarto ano lunar de seu nascimento, você está duas semanas atrasado.

    — Eu vim procurá-lo…

    — Além disso, seu nome não é Arth-Roph, eu não sinto sua origem nessas palavras.

    Por um instante o lugar se tornou silencioso, até o momento em que o ser caiu em gargalhada. Ele continuou: — Parece que não posso esconder desses olhos que tudo veem. Você foi o escolhido, então não tardarei minha apresentação. — O ser levou uma das pernas para trás, abaixando seu corpo enquanto abria um dos lados de seu manto. Ervas, joias, metais e mesmo sementes me tiraram a atenção de seu corpo enfaixado, faixas escuras, que pareciam segurar não um corpo de carne e osso, mas terra e carvão.

    Percebendo que chamou minha atenção, ele finalizou sua apresentação: — Àquele em que seu nascimento foi dado com Vil, me apresento ao contratante. Artéraphos, o Vilão. Seja o que for ou seja de quem seja, qualquer item que o contratante deseja, estará em suas mãos.

    “Vil e Vilão? Ele não tem só um, mas dois títulos? E isso de qualquer coisa, e se for algo que esteja com um deus ou demônio?”

    Como se lesse meus pensamentos, o ser retornou sua fala, mas senti sua voz se alterar como se antecipasse o futuro com aquelas palavras: — Qualquer coisa que desejar, não importa de quem seja ou quem o proteja. Eu, Artéraphos, o conseguirá. É claro, tudo no mundo tem seu valor, e como um Negociador, mais do que ninguém eu irei cobrar.

    Eu sabia sobre os negociadores, havia coisas que eu queria mas não podia pegar por estar preso neste lugar, e esperava pelos meus quatorze em busca de formar um contrato com uma dessas criaturas. Mas…

    “Era perfeito, até eu descobrir o real significado de ‘valor’.”

    Me levantando, observei o lado de fora de casa. O sol batia quente, não imaginava que passaria a noite toda apenas matando os fragmentos remanescentes do poder da empregada. Isso era problemático.

    Seguindo em direção a escadaria para o segundo andar, percebi que apenas com um movimento de caminhar, os passos do negociador começaram a ecoar à minha direita. Era como se ele desaparecesse e aparecesse sempre ao meu lado, independente do tamanho do passo por ele dado.

    “Ele não está caminhando nas sombras, parece ser isso, mas ele ainda tá nesse mundo. Como ele não entrou no mundo preto e branco?”, pensei, tendo meu pensamento interrompido pela criatura:

    — Normalmente os contratantes não sabem o que pedir para a primeira oferta, não precisa se preocupar sobre o valor, como se trata de minha primeira oferta, seguirei a lei do Negociador.

    — Eu sei que lei é essa, e não é necessário, não quero suas ofertas — respondi, ouvindo o piso de madeira do segundo andar ranger de forma escandalosa. Estava indo para o quarto da empregada no fim do corredor, mas com uma voz de pressa, ele ser continuou, com toda sua teimosia enquanto gesticulava na tentativa de me explicar:

    — Deve saber que a primeira oferta de um Negociador significa muito para nós, é quando mostramos estar dispostos a ter perdas pelo bem do contrato. Quando os contratantes não sabem o que pedir, sempre trazemos a “chave” para um ponto de virada de sua vida.

    — E daí? — Perguntei, segurando a maçaneta do quarto da empregada. Mesmo que fosse a primeira oferta, os Negociadores não gostavam de sair por fora. Ele provavelmente tentaria me enganar ou… 

    — Um baixo custo, apenas a alma daquela escrava… — O som da maçaneta se quebrando calou a boca da criatura. Mesmo depois de ver tudo aquilo, ele ainda não tinha entendido? O ignorando, abri a porta do quarto, de onde uma mistura de mofo e poeira se espalhou pelo ar.

    Estava escuro, as janelas estavam fechadas e o quarto completamente sem vida. Com exceção da cama, onde um corpo magro repousava. Não importa se fosse uma pessoa humana ou uma criatura, só havia uma frase para descrever aquela cena: “Ela está morta”


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