Progenitor das Sombras

    Caderno 2 – Os dois lados

    Capítulo 8

    “Sábios são aqueles que se mantém
    ao lado do vencedor, mas não contra o rei,
    pois sabem que seu silêncio é a espada
    da sentença e, seu olhar, a lâmina.”

    PONTO DE VISTA ARTÉRAPHOS:

    Desde que havia entrado na cidade, Artéraphos havia percebido algo errado. Ele resmungava em sua própria mente:

    “Quantos anos se passaram… não tenho certeza, mas me lembro muito bem dessa sensação estranha. Não é possível, Ezequiel realmente possui essa coisa?”

    Ainda dentro da loja onde Ezequiel comprou arroz, Artéraphos observava com estranheza a resposta de seu mestre sobre o motivo do mesmo não tentar se tornar um burocrata. A resposta foi apenas uma, uma risada.

    Na cabeça de cada uma das pessoas presentes, a frase “Louco maldito” ecoava, mas ninguem alem de Artéraphos – que era uma Alta Criatura das Sombras, podia sentir a presença da vasta energia sombria que emanava do corpo daquela criança.

    A escuridão tomava os arredores no formato de um vortex e, no centro de toda aquela energia sombria estava Ezequiel, que ria de forma arrogante e desequilibrada.

    “Ele não pode controlar as sombras (energia), percebi isso no momento que o encontrei, até pensei que alguém como ele não pudesse ser minha pessoa destinada, mas, é dele que vem toda essa energia? Ele não pode controlar, mas realmente tem a capacidade de gerá-la?”

    Assim como o poder de manipular a água e o vento, moldar o fogo e a terra, também era necessário controlar a energia sombria para se dizer ter o poder das sombras. O corpo de Ezequiel rejeitava o elemento e, apesar de haver bastante energia sombria em si, não significava nada se ele não conseguisse controlá-la.

    Um frio inexplicável de repente envolveu o ambiente, Ezequiel parou de rir, mas Artéraphos sentia o perigo presente. Por um instante foi como se o tempo tivesse congelado, mas não, Ezequiel ainda se movia e ajeitava sua postura desleixada, se tornando ainda menos atrativo pelas roupas simples que usava.

    Como se soubessem onde ele estava, os olhos do menino se viraram imediatamente a Artéraphos, trazendo consigo uma sensação capaz de congelar os ossos apenas pela frieza de seu olhar. Olhos cor de âmbar, sérios como lâminas, não entrava em acordo com a presença pobre de sua postura.

    — São apenas tolos que, no fim, são bem mais miseráveis que o mestre — disse Artéraphos sem pensar, se sentindo ainda mais pressionado pelo sorrisinho dado por Ezequiel ao ouvir essas palavras.

    — Me chamar de miserável não ajuda… — ele respondeu saindo da loja, sendo incomumente julgado pelo olhar das pessoas.

    Artéraphos que, desde o início se perguntava o motivo daquelas pessoas o odiar, agora começava a entender que não era realmente culpa delas. Por ser uma Alta Criatura das Sombras e fazer trocas envolvendo almas humanas, ele tinha capacidade o suficiente para entender o sentimento em alguém apenas de olhar. Isso não funcionava com Ezequiel, provavelmente por ele estar acima de Artéraphos quando se tratava de subordinação, mas, ao olhar para qualquer outra pessoa na rua ele tinha aquele sentimento de estar olhando para apenas uma única pessoa; como se o ódio por Ezequiel de apenas uma pessoa e se espalhasse para todas as outras, como uma praga.

    Durante todo o tempo de caminhada Ezequiel se manteve em silêncio; Artéraphos com a guarda alta, até que quatro horas se passaram e eles caminharam de volta para casa com as compras. Só que antes de chegar, a voz de Ezequiel ecoou de forma árida:

    — É assim que tem que ser, não vai mudar, e se mudar, voltará a ser como era — ele disse, diminuindo seu caminhar.

    O que Artéraphos viu enquanto o acompanhava era apenas mais do mesmo, alguém que era desprezado e menosprezado por todos, não havia mudança. Ezequiel completou sua fala: — Para me tornar um nobre há apenas duas opções, contratar Vagantes, mas o preço que se deve pagar por um depende de seu status atual, o que me faria pagar 3 vezes mais, assim como aconteceu com a comida. Ou eu poderia encontrar um provedor, um burocrata. Você perguntou o motivo de eu não tentar me tornar um, é simples, burocratas são aqueles que possuem suporte de fora desse mundo, só que estou preso nesse lugar, onde o “domínio” de meu tio impede qualquer comunicação com o mundo afora. Mas você viu que não estou parado, não é?

     — Eu entendo — disse Artéraphos acenando com a cabeça de forma sutil e inútil, pois Ezequiel caminhava na frente totalmente alheio ao que ele fazia. Porém, aquilo não o interessava agora, ele estava mais focado na forma de andar e na postura daquele garoto, coisa que ele reparava desde o momento que o encontrou. Artéraphos pensou:

    “Os olhos são os espelhos das almas, refletem o que não pode ser visto na aparência de uma pessoa. Ele anda de forma estranha, como um ladrão medroso ao entrar num banco, às vezes como uma pessoa sem casa, outras um transeunte sem jornada. Mas por mais que ele consiga copiar bem essas posturas, é impossível para alguém esconder a verdade que se esconde em sua forma de olhar, pois ela representa o mundo em seu ponto de vista.”

    Pelo pensamento de Artéraphos, Ezequiel fingia aquela aparência de um jovem fraco e desamparado, apesar de não ser tão simples, pois, o ódio que todas aquelas pessoas sentiam não era mais do que o próprio ódio de Ezequiel por si mesmo sendo refletido nelas.

    Ele era um garoto amaldiçoado, mas sua maldição não era ser odiado pelas pessoas, ter seu sangue fervido quando estava com raiva ou ser envenenado pelo elemento ao ser tocado, ele era imortal. Ter todo aquele ódio direcionado a si era uma escolha, de uma que nem mesmo Ezequiel conseguia se lembrar.

    “A técnica usada por ‘aquela’ família para treinar seus descendentes, ela é capaz de alterar a memória daqueles que a usam para fazê-los acreditar em uma mentira e tornar essa mentira parte da realidade. O sangue de Ezequiel é poderoso, tanto que várias criaturas das sombras o atenderão mesmo se ele pedisse para elas matarem uma pessoa, mas tenho certeza que ele não tem o sangue daquela família. Droga, fiz de tudo para não dar de cara com essa técnica e logo meu destinado está usando-a, se eu me tornar seu servo e aqueles monstros descobrirem a técnica roubada, eles extinguirão minha alma.”

    — Te dei tempo o suficiente, você pode responder agora — disse Ezequiel sem se virar, parando de andar em espera pela resposta. Ele estava dando opção para Artéraphos ir embora, ele não o impediria, apenas continuaria a própria jornada como sempre fizera caso ele realmente desejasse o deixar. Porém, a falta de resposta de Artéraphos o incomodava. Por algum tempo ele continuou esperando, já que ele realmente queria ter aquele Udnark ao seu lado.

    Ele gostava do nome Artéraphos, achava belo com um traço antigo, apesar da aparência do ser não ser tão agradável. De qualquer forma, não importava, desde que ele aceitasse tudo estaria certo, mas depois de uma longa espera um suspiro correu pelas narinas de Ezequiel, sua voz soou cheia de amargura: —  É realmente lamentável, Udnark, “O vendedor das leis da criação acima das nove terras”. Você é realmente diferente daquele que deu nome a sua raça, não preciso que alguém como você me siga, volte para sua casa, fique seguro nas suas terras das sombras. De alguma forma encontrarei meu caminho…

    Os pés de Ezequiel seguiram adiante, fazendo uma preocupação tomar a mente de Artéraphos. O que aconteceria se um Udnark fosse rejeitado por seu predestinado? Nunca havia ocorrido tal coisa, os dois eram predestinados, nasceram um para o outro. Então, o nome de Artéraphos ecoaria por todo o mundo das sombras, “Artéraphos, o vil”, “Artéraphos, o vilão” e “Artéraphos, o abandonado”. O primeiro de sua raça a possuir três títulos, mas o único a sofrer de tal vergonha.

    — Me aceite! — gritou Artéraphos sem pensar, perdendo a força das pernas e caindo de joelhos na calçada. Ele se perguntou o que aconteceu, ainda tinha forças para se mover, foi quando ele percebeu que aquelas palavras trouxeram consigo todo o carma de suas vidas passadas.

    Uma dor agonizante tomou a cabeça de Artéraphos, vinha de uma veia atrás de sua orelha direita que, estridentemente, pulsava fazendo a dor ressoar em toda sua cabeça. Não demorou muito para ele não conseguir mais visualizar as coisas à sua volta, sua visão foi tomada por trevas, mas ainda podia enxergar o menino que caminhava em sua vinda, trazendo consigo a pressão esmagadora que o impedia de levantar o olhar.

    Artéraphos se perguntava: “Então ele realmente a tem, por que logo ele tinha que ter tal coisa infernal?”, se lembrando de outras vezes que encontrou os membros “daquela” família. Foi apenas duas, mas foi o suficiente para fazê-lo nunca mais querer os encontrar.

    Esse era o motivo de tanta relutância em sua escolha, ele sabia a dificuldade de lidar com aquela família, principalmente se tratando de seus descendentes que possuíam a habilidade de mudar a realidade conforme seu portador idealizava. Ezequiel não era poderoso, longe disso, mas no momento que Artéraphos ficou sem opção e implorou por sua ajuda, todo seu destino estava nas mãos daquela pessoa, pois era assim que Ezequiel via aqueles que imploravam.

    — Vou te dar duas semanas — Ezequiel começou: —, lembre-se dessas ervas… minérios… o sangue real de uma besta, o creme da fruta de jade e o alcatrão de veias negras. Se não consegui-los, não pense em voltar…

    — Duas semanas? Conseguir todas essas coisas em apenas duas semanas? — disse artéraphos com uma voz baixa. Apesar de ter tentado aumentar seu tom, seu corpo não respondia da forma que ele desejava.

    — Entendo, nove dias a partir de agora. Se tem forças para discutir, tem para procurar, se reclamar eu mudo para três dias.

    “Maldição, maldição!” Sem nem poder retrucar, Artéraphos observou Ezequiel ir embora. Dos ingredientes que ele pediu, Artéraphos tinha quatro, mas isso não mudava o fato dos outros serem “caros” e difíceis de pegar.

    Com o tempo a pressão que impedia o corpo de Artéraphos se mover desapareceu e, finalmente ele pode se levantar, porém, sua aura de raiva dificilmente desapareceria mesmo depois de alguns dias. Não havia o que fazer, usando as sombras das paredes ao redor, ele abriu um portal para o primeiro item dos oito que precisava encontrar. Ele pensava:

    “Nove dias, não tenho escolha senão aceitar. Aquela família não o encontrará tão facilmente, só espero que ele consiga quebrar o selo sobre suas memórias e masterizar a técnica antes deles o encontrarem, caso contrário, não apenas a dele, mas minha existência será extinguida.”


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