A sensação de estar no frio às cinco da manhã debaixo de um céu ainda escurecido. O vento fresco carrega o sereno da noite, deixando gotículas de água em sua pele congelada. Ruas vazias. Passos lentos, melancólicos. Direita, esquerda, caminhos sem ida e volta. 

    Um gemido baixo ecoa pelo ar gélido tirando sua mente dos pensamentos. Olhar para o lado era o suficiente para revelar a presença de pessoas, a rua não estava tão vazia assim, apenas silenciosa.

    Alguns vivos, muitos mortos, todos embrulhados em cobertores em um canto remoto dos becos. E o que gemia sentia dor em seu estômago pela falta de comida.

    Nunca havia sido fácil viver, principalmente para aqueles que não gostavam de viajar e eram forçados a sair de sua casa. Sem comida, dinheiro, moradia, e sem a possibilidade de pedir ajuda, pois não conhecia a língua dos habitantes desse mundo. 

    De qualquer forma, que ajuda eles poderiam oferecer? A cidade a muito tempo havia caído. Os que restavam apenas ficaram por não conseguirem se levantar. Era ali onde os procurados se escondiam e os fugitivos se refugiavam. Se estavam naquele lugar era apenas porque desistiram de tentar.

    Talvez pensar ser diferente deles fosse a melhor opção. Mas ao colocar a mão na barriga é perceptível como a fome o cerca. Não dói, nem parece que realmente há fome, só que ela está lá, correndo todo o pouco dentro de si antes de começar a corroer a si mesma.

    Indo aleatoriamente para um canto, entras em um beco escurecido. Se sentando no chão meio úmido e gelado.

    Sua respiração fugiu ríspida, cansada, o fazendo perceber também um queimor frio na garganta seca. Não apenas fome, agora também há sede. Se lambesse o asfalto gelado talvez conseguisse umas gotas de água, mas seria o suficiente para matar aquilo que o matava?

    Um sorriso se abre em seu rosto ao pensar em como esse mundo era irônico. Tinha fugido para conquistar uma vida melhor, mas apenas conseguiu chegar a esse lugar. Seu corpo tinha forças, podia se levantar usando a força física. Porém, sua mente já tinha o suficiente desse mundo de merda. Sim, mundo de merda. E mesmo sem querer fazer parte daquele lugar, dava para sentir não ter mais volta.

    — Dyah, verte? — Uma voz estranha de repente ecoa no meio da escuridão. Qual era o significado daquelas palavras? Nem conseguia ver direito quem dizia.

    Quanto tempo se passou desde o momento que adormeceu? Um minuto? Um segundo? Pareciam ser dias. Mas isso importava? Faria alguma diferença?

    Algo quente o toca, não é sol, ainda é noite; e parece que sempre será noite nesse lugar. Seu corpo mole e cansado de repente é puxado, fazendo seu rosto congelado tocar algo macio. Pele? Se pergunta.

    Apesar de ser caloroso era impossível ser uma pessoa, não existia humanidade o suficiente nesse mundo para tamanha bondade.

    Forçando seu olhar para cima, tenta ver se algo humano o acolhia. Estalos de gelo se rachando soam de forma abafada quando seu pescoço se levanta. Estava frio, tanto que seu corpo estava quase completamente coberto por cascas de gelo.

    Como se dissesse para não se preocupar, o calor que toca seu rosto de repente se espalha por seu corpo. A pergunta de quem o segura se torna mais forte. Talvez fosse um demônio da tentação o enganando para fazê-lo repousar em seus braços, tomando assim sua alma antes de sua morte.

    Mas ao finalmente olhar para cima é perceptível olhos claros brilhantes como joias junto a um sorriso errado, incerto. Como se sorrisse apenas para não assustá-lo.

    “Um sorriso humano…” E junto àquele sorriso cabelos prateados brilhavam de uma forma incomum o lembrando de alguém de seu passado. Foram poucas as vezes em que ele havia se aproximado de alguém ao ponto de sentir o calor de seu corpo, mas apenas uma vez o tocaram de forma tão carinhosa. Apenas uma, porém, o suficiente para fazê-lo se lembrar do que era essa estranha aproximação:

    “Um abraço…” ele pensou ao perceber o que aquela pessoa estava fazendo.

    No entanto, a descrença tomava sua mente. Ele desejava estar certo sobre ser um demônio e não um humano, ao mesmo tempo que queria estar errado. Além disso, tinha que sair dali agora, outros não deviam se aproximar de um viajante como ele, ninguém deveria. Foi assim que ele pensou até sentir o assobio frio do vento tocar sua pele, arrepiando os pelos  não congelados de seu corpo.

    Um humano? Um demônio em forma feminina? E daí? Mesmo que esse ser desejasse tomar sua alma, se assim fosse, assim seria. Aquele era um calor que ele a muito não tinha, esquentando seu corpo e coração naquela cidade gélida.

    E, sem perceber, um sorriso se abria em seu rosto. Ele já havia aceitado aquele destino de forma alegre.

    — Mamãe…

    Onde naquele mundo ele encontraria tanto conforto se não ali? Era macio, agradável e também aconchegante. Não como uma cama, seria mais parecido com o amor de alguém que te segura como uma criança. Um amor que nem todos recebiam, muitos perderam e vários não poderiam ter.

    Com ele não era exceção.

    Essa era apenas a segunda vez que ele havia recebido um abraço. A primeira também foi a última, e a segunda era com alguém parecido com a primeira.

    E mais tarde ele acordaria percebendo que nunca foi um sonho, nem um demônio, apenas uma pessoa tão perdida quanto ele naquele mundo fadado ao desastre. Uma mulher sem nome.

    — Ezequiel… — ela repetia, tantas e tantas vezes que era impossível não saber ser um nome. E ele… ele sentia seus ouvidos esquentarem com a voz que saia, sentindo também o calor de algumas lágrimas que derretia o gelo em sua pele.

    O pensamento de que esse nome era amaldiçoado surgiu em sua mente, mas também o de que era um nome bonito. E que se esse fosse seu nome, ele não a faria chorar com o dono original desse nome.

    Nem eu ou meu sobrinho tínhamos ideia naquela época, mas fomos enganados. Ele foi enganado por mim, e eu mesmo me enganei ao achar que o ajudaria. Porém, como eu deveria reagir diante de tal coisa?

    Eu o observei chegar a esse lugar sendo jogado para fora de sua casa. O observei ser rejeitado pelas criaturas humanas e inumanas. O observei solitário naquele beco por dias, impossibilitado da morte, da benção que ele silenciosamente desejava. Ele não reclamou, ao contrário, se conformou em viver daquela forma até que aquilo acabasse algum dia. Vivendo sozinho, no silêncio.

    E eu também observava no momento em que a mulher em seus braços perdia a respiração, a consciência, e a vida. Tendo seu corpo caloroso transformado em gelo numa das várias noites de frio extremo.

    Você pode não saber, mas eu sei, eu estava lá. Aquele auto intitulado Ezequiel, meu sobrinho. Tanto ele quanto eu fomos enganados. Acreditamos na bondade humana e recebemos seu afeto para, no fim, sermos deixados de forma incompreensível mesmo para outros de nossa espécie. E assim como eu, ele também ficou imovel, paralizado de pavor por não saber o que fazer.

    Uma mente cheia consegue se ocupar sozinha, mas nós não tínhamos nada. Nem em nossos corpos ou em nossas barrigas. Muito menos em nossos pensamentos.

    Não conseguimos chorar, e isso foi o que mais doeu em mim. Mas diferente de mim, que não pude ao menos sepultar o corpo das minhas garotas. Ezequiel ficou ali, dia após dia sem saber o que fazer. Observando um corpo que nunca apodreceria.

    Nenhuma noite foi tão fria nos últimos cem anos quanto aquelas. E era a primeira vez em mil anos que nevava.

    Ezequiel tinha apenas dez anos quando chegou à cidade.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota