No andar mais alto de um prédio ecoa uma voz fria e misteriosa: — Você entende agora? — ele pergunta. Sendo recebido logo em seguida por uma voz mecânica de um ser escondido nas sombras da sala:

    — Lembrar é difícil…

     A noite havia apenas começado, mas desde o início do dia aquele lugar havia sido tomado por sombras. A voz de Claudio soou com indiferença ao ouvir a resposta: — Não se lembra mesmo depois de ouvir essa história? Bom, com o tempo tudo vai se encaixar.

    — Leve-me, eu desejo voltar ao mestre Ezequiel.

    Como se estivesse predestinado a cair naquele momento, raios brilharam do lado de fora do prédio fazendo um clarão prateado invadir o ambiente, revelando momentaneamente um ser preso dentro de uma das paredes da sala.

    De frente para a mesa de Cláudio, o ser estranho tinha todos seus membros e a parte inferior de seu corpo dentro da parede. Não era uma pessoa, mas uma armadura. A armadura de um ser que já deveria estar morto.

    — O que está dizendo, Kuro? — disse Cláudio com arrogância —- Se acha que pode fugir daqui, saiba que irei até o inferno novamente caso precise ressuscitar a sua alma.

    — O que deseja de mim?

    — O que eu quero? Nada,— Cláudio disse dando uma breve risada — você já perdeu sua espada, suas memórias, suas habilidades. De que me serve agora?

    — Não era para ser assim, você não deveria estar contra mim. Liberte-me. — insistiu Kuro, porém, foi recebido com outra risada de Cláudio.

    —- Te mostrarei apenas uma coisa  — Levantando-se da cadeira de onde repousava, Claudio caminhou em direção a Kuro. Passos nem tão lentos nem tão rápidos, mais precisos. Como se cada um de seus passos contassem os segundos que passavam.

    A sala tomada em escuridão de repente estremeceu com o caminhar do Mestre das Sombras, e a energia ao redor começou a se materializar fisicamente no ar. Correndo ao redor do corpo de Cláudio como chamas negras purificadoras, a energia circundante ficou sob o seu total controle. A voz de Cláudio soou: — Agora que seu “mestre” se moveu, meu sobrinho finalmente decidiu se rebelar. Minha colheita está pronta.

    Junto às mãos de Cláudio que se elevaram aos céus, a noite já escura tornou-se perpetua infinita. Era impossível enxergar algo mesmo a um palmo de distância do próprio corpo.

    Do lado de fora do predio os cidadãos levantaram seu olhar ao céu negro, muito se perguntavam o motivo daquele estranho evento. E já esperando pelo pior, vários correram para os túneis subterrâneos da cidade aos tropeços.

    Kuro que observava aquilo tudo se perguntava o que estava acontecendo, mas logo se deu conta ao ver toda aquela energia das sombras serem absorvidas pelo corpo esguio de Cláudio. As trevas infinitas do horizonte começaram ter limite, pois estavam rapidamente se aproximando da torre de onde eles estavam.

    “Como pode haver tanta energia das sombras nesse lugar?” Kuro se perguntava sem saber dar uma resposta.

    — Como será? Kuro? — Perguntou Claudio finalmente abrindo seus olhos, revelando um tom de roxo vibrante em suas íris. Ele repetiu: — Huhuhu, como será?

    — Na hierarquia você está acima de mim, meu sangue é mais fraco. Não possuo títulos ou um passado, mas não leia minha mente.

    — Por que? — Perguntou Claudio em um tom de arrogância. — Se estou acima de você, é natural que eu possa usá-lo como desejar. Vocês são idênticos, você e Ezequiel. É realmente uma pena que meu sobrinho me odeie, se ele apenas tivesse aprendido apenas um pouco mais comigo já teria tudo que desejava.

    — O que você o ensinou? Sua presença não faz bem, fique longe dele.

    — Tolo. — disse Cláudio caminhando para o sudeste da sala. Direção essa onde estava a casa de Ezequiel e os raios ainda brilhavam fortemente no céu sombrio. — Tudo seria bem mais simples se ele deixasse seu ódio de lado, me ofereci para ensiná-lo, ele apenas recusou dizendo não querer a minha ajuda. Ele é apenas uma criança tola que julga meus métodos sem ver meus resultados. Se ele aceitasse ser ensinado eu não precisaria usá-lo, nem ao menos forçá-lo.

    — Mestre, — De repente uma voz que não era a de Kuro ecoou pela sala. Apesar de ser estranho, essa voz era idêntica a de Cláudio. — … tudo está pronto para a sua partida.

    — Ótimo — respondeu Claudio indo até Kuro que estava preso na parede. — Vou deixar o resto em suas mãos. Ficarei de olho em suas ações mas não se esqueça, eu não tolero falhas. — Puxando o corpo de Kuro de dentro da parede, Claudio o arrastou enquanto caminhavam a uma porta não muito longe dali.

    A voz do falso Cláudio ecoou pela sala: — Sim. Tudo está planejado e ocorrerá como desejado pelos próximos dois anos. — Ouvindo aquilo Cláudio abriu a porta, mas ao invés de haver um cômodo do outro lado havia um deserto de areia vermelha e um sol escaldante de cor alaranjada.

    Aquele não era como os portais de Artéraphos que criava um “túnel” entre dois lugares. Era simplesmente uma conexão direta. Essa não era apenas a diferença no poder entre esses dois seres, mas também em suas capacidades de controlar as sombras. 

    Cláudio seguiu seu caminho para fora da sala sem olhar para trás. Assim que ele passou a porta se fechou, transformando-se novamente em uma passagem comum.

    — Parece que agora as coisas são comigo. — A voz do falso Claudio ecoou novamente pela sala. Sentado na cadeira do escritório com os pés em cima da mesa, Cláudio bocejou cheio de preguiça. Não era verdadeiramente Cláudio, mas um ser com a sua aparência. Ele continuou conversando consigo mesmo:

    — Dois anos em… acho que dá para fazer bastante coisa nesse meio tempo. Vocês já estão prontos para o que está por vir?

    Vinda do nada a voz de alguém ecoou pela sala: — O “Mundo Inferior” já pode ser aberto e estamos finalizando as últimas preparações para invadir o Berço de Equidna. — Era a voz de uma das “Sombras” de Cláudio, seres treinados para servi-lo. E esse era seu representante.

    — Vocês são realmente úteis — a voz do falso Claudio surgiu com felicidade, algo que o verdadeiro Cláudio nunca esboçaria. — E sobre o menino do mestre? Ele acolheu alguma das pessoas que joguei em seu caminho?

    — Não, nenhuma.

    — Nenhuma? — O falso Claudio disse com descrença — Nenhum dos cidadãos? Nem mesmo as crianças? Ele simplesmente os deixou morrer?

    Depois de um instante de silêncio, a voz do representante soou: — A verdade é que Ezequiel nem ao menos chegou a encontrá-los. Era estranho, ele se movia entre as ruas da cidade evitando todos eles.

    — Era óbvio, ele naturalmente consegue sentir a intenção de uma pessoa. Espera… — Levantando-se, o falso Cláudio seguiu para o centro da sala a passos curtos. De alguma forma seu jeito de andar realmente lembrava ao de Cláudio, como uma cópia, mas ainda lhe faltava algo que Cláudio possuía. Ele continuou: — Eu não lembro de pedir para jogar pessoas no caminho daquele menino, pessoas mentem, são gananciosas e não sabem esconder o que sentem. Filhotes humanos, foi o que eu disse. Sabe, essas coisinhas que estão andando aí pela cidade, Vocês jogaram quantas?

    O representante tentou dar uma resposta, porém, seu fôlego acabou por um instante. — Compramos dos nobres, apenas alguns poucos deles aceitaram vender seus filhos.

    — Não os nobres, não estou falando deles. — A voz do falso Cláudio se intensificou. Levando a mão aos ombros do representante, ele forçou o osso de sua clavícula como se apertasse manteiga. O representante gemeu baixo, tentava segurar sua voz mas era difícil quando sentia sua pele ardendo. — Explique-se agora, descreva exatamente o que aconteceu naquele lugar.

    Percebendo seu representante não aguentando mais a dor, uma pessoa de repente saiu de dentro das sombras. Ele começou: — Nos espalhamos em lugares estratégicos e o perseguimos. Fizemos lavagem cerebral em algumas pessoas e tentamos fazê-las se aproximar, preferimos os que tinham traços de líder. Porém, sempre que alguém tentava fazer algo acontecia um acidente.

    — Acidente como? — perguntou o falso Claudio. A resposta o surpreendeu:

    — Mortes acidentais. Esmagado por escombros, decepamento, teve um que morreu com a queda de um poste.

    — Vocês estão brincando comigo? — Incrédulo, o falso Claudio apertou ainda mais o corpo do representante. Mas antes que a morte o atingisse, seu companheiro continuou:

    — Não estamos. Antes que pudéssemos usar os “filhotes” de humanos, percebemos que falaríamos de qualquer forma. Apenas os guardamos para mais tarde. Não seria um despedicio usa-los de forma tão idiota quando nem conseguem se aproximar?

    Parando para raciocinar por um instante, o falso Claudio concordou com a cabeça. — Sim, é… faz sentido… — Soltando o ombro do homem, ele ajeitou sua postura antes de perguntar. — E como vai usá-los?

    Sem pensar duas vezes, a pessoa respondeu: — É desnecessário usá-los imediatamente, Ezequiel já se encontrou e criou laços com dois garotos, Kain e Gael. Ele não apenas os encontrou como também ajudou Kain a completar o Batismo.

    -– Ele despertou no Batismo?! Que atributo esse Kain usa? Água? Fogo?! — Já com um sorriso de felicidade no rosto, o falso Claudio imaginou como poderia usar aquilo a seu favor.

    — Não sabemos, talvez seja um atributo especial. Mas desde aquele dia o garoto tem se trancado no quarto e não quer ver ninguém. Já o irmão mais novo, Gael, tem buscado incessantemente Ezequiel. Estávamos esperando o momento de reportar para decidirmos se o guiaremos ou não.

    — Ótimo! Vocês são realmente úteis! Faça ele encontrar o garoto e, se possível, faça-os se ajudarem. Algo mais? 

    — Durante o tempo em que esteve ajudando Kain, Ezequiel também ajudou uma criatura da sua espécie.

    — Um goblin? — o falso Cláudio perguntou com dúvida. — Ele o ajudou? Por que?

    — Não temos certeza ainda, mas ele tinha acabado de se apossar do corpo de uma nobre. Como sabe, assim que as memórias da pessoa fluem para a cabeça do goblin sua personalidade se perde por um instante. A mulher estava enlouquecida pela morte do filho no momento que teve sua cabeça tomada, então o goblin também se enfureceu.

    — Havia mais goblins por lá?

    — Poucos naquela área, Ezequiel também matou um que não tinha se tornado humano.

    — Estranho… eu não entendo,. Por que um ele ajudaria e mataria o outro?… — apesar do falso Cláudio estar conversando consigo mesmo, aquele ser sabia que ele desejava uma resposta. Sem pestanejar ele respondeu:

    — Pelo que parece, além de conhecimento, Ezequiel tem buscado algo desde que chegou aqui. Ele chama isso de “paz”. Devido a seu passado turbulento ele provavelmente se sentiu tocado pelo goblin que apenas queria ter uma vida humana e o fez voltar a si. 

    — Faz sentido! — gritou o falso Claudio perdendo completamente a postura. — Imagina se ele também decide me ajudar, não seria perfeito?! O Mestre com certeza me veria com ainda mais carinho. Vocês podem se retirar. — Fazendo como ordenado a pessoa que conversava com o falso Claudio ajudou seu representante ainda no chão a se levantar. E sumindo do nada, eles entraram nas sombras.

    Por algum tempo o falso Claudio continuaria ali, conversando sozinho. Sem esperar o ressentimento daqueles que se escondiam nas sombras.

    A ferida era feia, toda a carne em volta de onde os dedos do falso Claudio entraram estava morta. Percebendo isso, o representante falou: — Eu não quero mais fazer isso. Sei que pulei no abismo e aceitei me tornar servo do Mestre Cláudio, mas não quero ter que fazer essas coisas. — Haviam cinco pessoas, todas estavam no meio do nada entre a escuridão e o vazio.

    Seus passos deixavam marcas onduladas como se caminhassem pela água, mas o chão não era pegajoso ou afundava. Além disso, não havia som, com exceção das vozes deles conversando.

    — Não precisa se preocupar tanto com isso por agora. A verdade é que foi muito burro para dar uma resposta incerta a um tirano, se eu soubesse que isso ia acontecer, teria me oferecido em seu lugar para ajuda-lo — disse aquele que tinha intervindo para salvar a vida do representate.

    — Como não me preocupar? — a voz do representante soa cheia de desgosto. — Se continuarmos com isso, vamos ter que matar todas aquelas…

    — Eu já disse, não se preocupe tanto com isso. Vamos libertar eles.

    A voz das outras quatro pessoas surgiu com descrença: — COMO?!

    — Vocês querem fazer isso? — a pessoa que salvou o representante disse com voz firme. — Eu vi as pessoas compradas e não foram apenas filhos das famílias nobres, ele deu preferência a pessoas sem condições nenhuma. Vocês sabem muito bem que desde que ofereça um pouco de comida, diga palavras bonitas como: “Seu filho estará seguro em minhas mãos”. E tenha o rosto de Cláudio, ninguém o recusaria.

    — Isso é certo — disse o representante. Sua voz se tornou ríspida: — Só pelo fato dele ter oferecido dinheiro para as famílias venderem seus filhos é…Ugh… mas e quanto aos pais? O que faremos?

    — Ouvi dos outros que perdeu sua filha antes de vir para cá. Sabe que muitos daqueles pais devem se sentir da mesma forma e apenas não têm como sobreviver e alimentar os outros filhos com a miséria que ganham dessa cidade.

    Alguém das outras três pessoas entrou no diálogo: — Se eu tivesse a oportunidade de melhorar a condição de um dos meus filhos e ajudar os que estariam comigo ao mesmo tempo, não teria motivo para rejeitar a oferta. Eu sou humano ainda. Posso ter me tornado escravo do Mestre Cláudio por vontade própria, mas eu não quero ser mal, eu não perdi minha humanidade.

    A pessoa que salvou o representante interferiu: — É isso que somos, escravos. Mas como não perceberam que somos devotos a Cláudio? Não precisamos seguir as ordens daquele que possui sua aparência, ele não é nosso mestre. Estão entendendo onde quero chegar?

    — Espera… — a voz do representante soou novamente: — isso está certo. Nosso objetivo original era apenas perseguir Ezequiel e reportar, esse falso Claudio quem tentou interferir e aceitamos. Por que fizemos isso? Não foi por sua aparência.

    Um a um eles começaram a concordar com o representante e logo quem o salvou começou a falar novamente: — Nunca pensaram ser estranho a nossa existência? Vou dar um exemplo simples: Cláudio é o governante, mas antes de seu cargo como dono dessa cidade ele possui um título de Mestre. Atualmente o mundo está sobre a maldição da Noite Eterna e tudo repousa nas sombras, tornando Cláudio o dono desse mundo. Se ele é o dono desse mundo e tudo nele pode ser observado por Cláudio, por que precisamos reportar se ele sabe de tudo?

    — Ué, e isso é verdade. — A voz de um dos presentes soou surpresa, outro riu pela confusão na cabeça.

    O representante interviu: — Eu não sei de mais nada, mas assim como ele disse (o companheiro), não sou mal. Estive preso no segundo andar da prisão subterrânea por roubo, não queria prejudicar ninguém, minha família estava morrendo. Minha prisão daria a eles algum dinheiro para se sustentarem, mas alguns dias depois de ser preso recebi de minha esposa a notícia que minha filha havia morrido. O que estou dizendo? Hah… foi mal desabafar com vocês.

    A voz de uma das sombras soou: — Quando o Guardião Prateado te enfrentou e te jogou entre os corpos daquelas pessoas mortas, eu consegui sentir sua dor enquanto dizia estar seguindo ordens. Me sinto orgulhoso de ter salvo aquele bebê sob seu comando. Só nunca imaginei que Ezequiel o perceberia e também o protegeria.

    — Se for para continuar assim… — parando de falar por um instante o representante parecia matutar algo em sua mente. Uma decisão difícil. — Podemos ir contra esse falso Cláudio, mas eu não posso ser o representante de vocês. O representante fala por todos e é o primeiro a morrer quando algo acontece. Quero que decidam entre vocês quem será o representante.

    Apesar de estar dizendo para decidirem entre si, todos imediatamente olharam para a pessoa que salvou o represente. Dando de ombros, a pessoa disse com uma risada: — Ainda tenho muito a aprender por ter chegado recentemente, só que tem como eu rejeitar uma promoção dessa forma? — O representante tirou algo de dentro de sua roupa e o entregou à pessoa que o salvou.

    Puxando sua “máscara” o salvador do representante aproximou o item de seu olho esquerdo que, bruscamente, teve a esclera enegrecida. Foi apenas momentaneamente e logo voltou ao normal. Porém, uma onda de poder atingiu o corpo do novo representante.

    “Esse então é o poder de Cláudio?” Ele pensou, percebendo que o antigo representante havia se tornado um pouco mais fraco.

    — Com a força desse emblema eu me torno o representante de vocês. O mal existe nesse mundo, ele é forte, poderoso como ninguém imagina pois se esconde nas sombras e junta suas forças silenciosamente. Ele derruba o Rei tomando seus peões aos poucos. Não somos existências ruins, esse não foi o objetivo que Cláudio nos deu. A partir de agora apenas seguiremos as ordens de Cláudio.

    Os outros gritaram em comunhão: — SIM!

    — E por primeiro, apenas seguiremos observando o Mestre Ezequiel.

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