Capítulo 32 – Vazio
ALGUMAS HORAS ANTES:
Segurando o corpo da empregada chefe, Artéraphos ouvia Ezequiel lhe dar uma bronca.
— Se tivesse falho, como se responsabilizaria? — Ezequiel perguntou em um tom sombrio. Seu rosto nunca foi dos mais lindos, porém, sua expressão fria e raivosa o deixava ainda menos vistoso.
— Você planejou tudo desde o início, sabia o que aconteceria se eu fizesse daquela forma e mesmo assim não se importou? Você realmente a vê como alguém importante? — Sem conseguir aguentar, Artéraphos soltou o que estava em seu coração fazendo o rosto de Ezequiel se tornar ainda mais amargo.
— Está discutindo ainda?! Ela estaria morta se você errasse!
— Você queria que eu consumisse a alma dela. Planejava usar suas próprias memórias para recriá-la. Qual é a diferença disso para estar morta? — Ezequiel cerrou os dentes ao ouvir essas palavras.
— VIVI COM ELA POR MAIS TEMPO QUE QUALQUER PESSOA VIVA, EU A CONHEÇO BEM O SUFICIENTE PARA FAZÊ-LO!
— TEM CERTEZA?! — Artéraphos aumentou seu tom de voz. — Quantos anos ela tem?! Quantos você tem?! Vai resumir todos os trinta anos da vida dela em quatro anos de sua vida?! Você ao menos sabe o nome dela?!
— Nome? — Uma expressão de incógnita tomou o rosto de Ezequiel. Ele vivia com aquela mulher a bastante tempo em sua própria opinião, mas ele nem ao menos sabia seu nome.
Artéraphos continuou: — Acha que é justo chamá-la de empregada chefe? Você é o mestre mais idiota que eu já vi, como pode ser tão ingrato? Meu trabalho como Udnark é guiá-lo por um caminho de fartura e mesmo assim não me agradece por fazer um bom trabalho?
— “Fartura?” — A voz de Ezequiel soou meio baixa. O ignorando, Artéraphos continuou:
— Eu com certeza falharia em salvá-la se fosse a alguns dias atrás, mas eu a salvei no dia de hoje. Isso não é o suficiente para demonstrar minha capacidade? Não é o suficiente para me provar?
Uma risada breve sai da garganta de Ezequiel. — Você diz se provar com isso mas, contra mim, que outra opção você teria se não a de dar seu melhor para me agradar? Você se vangloria demais por ter conseguido itens tão básicos…
— Básicos?!
— Quer uma vida fácil?! — grita Ezequiel ao ser interrompido. — Tudo bem, você terá.
Como se pressentisse algo ruim, os céus vibraram com rugidos de trovões. Uma voz surge no coração de Artéraphos como trovões nos céus: “O vazio não é a solidão, nem tristeza, mas a consequência da ausência de uma parte de si”.
Enquanto olhava para baixo, Artéraphos observava uma esfera de luz sair de seu corpo. Apesar de ser feita inteiramente de energia branca, era coberta por uma aura escura cheia de pureza. “Isso não pode ser possível”, ele pensou ao ver a esfera vagar em direção a Ezequiel que sentava-se no chão de mármore gelado de costas para ele.
Um sentimento de inquietação desceu sobre seu coração o fazendo ficar sem ar. De repente foi como se toda sua vida não valesse a pena e, sendo assim, não era melhor a inexistência? Tomado por esse sentimento ele olhou para as próprias mãos que seguravam o corpo da empregada. E mesmo as olhando, as abrindo e fechando para demonstrar estarem conectadas a seu corpo, era como se não fossem reais.
“O VAZIO…” Ele pensou entendendo aquilo, algo que os humanos não conseguiam entender mesmo tendo aquilo dentro de si. Dando um passo para trás, Artéraphos imediatamente pensou em ir embora quando a voz de Ezequiel soou pelo cômodo:
— Você está livre para ir, está livre para encontrar outro mestre. Só peço que leve ela e consiga um lugar fora desse mundo onde não há deuses ou maldições para atormentá-la.
O som de trovões ecoaram pelos céus sombrios. O banheiro quase completamente fechado não recebeu a luz dos raios, mas as runas que cobriam o ambiente com um alaranjado manso começaram a se apagar.
O cheiro de queimado chegou a Artéraphos. Procurando de onde vinha o cheiro ele percebeu o filhote de cão infernal no corredor atrás dele, passando por ele e correndo em direção a Ezequiel. A criatura deixava uma marca de queimado onde pisava, pelo menos até o momento em que saiu do corredor e passeou no piso de mármore do banheiro.
Colocando o filhote em seu colo, Ezequiel parecia fazer carinho em sua cabeça. — O que acha da “melhor” mansão da cidade? — ele perguntou para o filhote. — Você deve ter gostado daqui, mas pelo visto vamos precisar de uma casa melhor ou todos morreremos queimados. Essa cidade não tem espaço o suficiente, preciso de um lugar maior mas, por enquanto vai ter que ser aqui mesmo.
Levantando o filhote para um pouco acima de sua cabeça, Ezequiel o aproximou de seu rosto. Artéraphos achava estranho e apenas observava, ele também queria levar a criatura e queria ver o que o menino faria. Pelo menos até o momento em que o grito de dor do filhote ressoou pelo lugar.
Avançando contra a cabeça do menino, o filhote começou a mordê-lo desesperadamente. Sua língua era capaz de queimar qualquer coisa e parecia estar o machucando, mas não houve resposta por parte de Ezequiel que continuava o que fazia longe dos olhos de Artéraphos.
No momento em que foi colocado novamente no chão, a pobre criatura correu para longe de Ezequiel com dificuldade. Sua pata já machucada antes por causa de Artéraphos escorria sangue novamente. Um sangue fervente, que criava caminhos mesmo no mármore abaixo de seus pés.
O sangramento rapidamente parou, era uma característica dessas criaturas para não morrerem por hemorragia. E compadecendo pela criatura, Artéraphos tentou se aproximar e guardá-la em seu manto quando algo incomum aconteceu.
Algo na ferida do filhote começou a se mover, ferida essa que agora ia até a base de sua perna. O sangue coagulado na ponta do machucado se expandiu fazendo algo raro, que não deveria acontecer com aquele tipo de criatura. Regeneração.
Um olhar de estranheza tomou o semblante oculto de Artéraphos. Seu rosto não demonstrava nada por estar escondido, mas seu corpo instintivamente se afastou do filhote, suas mãos tremeram. Não por causa do filhote e sua nova pata, membro esse que parecia nunca ter saído do lugar. Mas sim pela presença que havia tomado o lugar.
As runas que aos poucos se desvaneceram se moveram dentro das paredes como vermes dentro da pele de um corpo. Estavam se ajustando, formando novas runas ao redor do corpo de Ezequiel.
Chamas escuras tomaram os chãos e rapidamente subiram pelo corpo do menino. Não pareciam queimar ele, não completamente. Inicialmente apenas suas roupas se foram revelando suas costas maltratadas, mas logo marcas negras tomaram o lado esquerdo de sua pele formando padrões indescritíveis.
Artéraphos não sabia o que eram aquelas marcas, e apenas algum tempo depois de observar o corpo do filhote se restaurar, ele percebeu que o corpo de Ezequiel morria.
O filhote se levantou depois de ter sua pata recuperada, correndo para fora do banheiro ainda por medo de Ezequiel. A marca nas costas do menino haviam se fixado, e sua voz soou:
— Um braço por um braço, uma perna por uma perna, todo trabalho tem sua recompensa. Ele bebeu meu sangue e eu o dele, ele se machucou por mim e eu por ele. Está acabado, já que o escolheu como seguidor, leve-o contigo. A partir de agora suas escolhas estão em suas próprias mãos.
As runas pararam de se mover, grande parte delas circulavam o chão ao redor do corpo de Ezequiel formando um círculo maior. O resto formavam pequenos círculos em torno do círculo maior. No total haviam vinte e nove círculos menores com espaços vazios em seus centros, espaços esses que pareciam incompletos sem algo dentro.
Uma luz prateada tomou as runas iluminando um pouco a sala. A mão esquerda de Ezequiel se moveu para o chão, tocando-o e quebrando-o com seu toque. Transformando o mármore em milhares de fios de agulhas que penetravam seus dedos.
Sua mão e seu braço aos poucos foram engolidos pela passagem que aos poucos se cobria com uma energia escura. Sombras. Era a passagem onde Ezequiel guardava seus itens especiais, assim como o manto de Artéraphos que também podia guardar coisas.
— Eu realmente não imaginei que usaria isso tão cedo — a voz de Ezequiel soou pelo lugar, e apesar de remeter um sentimento de completude, não havia um pingo sequer em suas palavras. — Você me ajudou muito Artéraphos. Graças ao sangue dessa criatura vou poder terminar o que comecei a tanto tempo.
Saindo de dentro da passagem, o braço de Ezequiel se dirigiu a um dos círculos menores de runas. Sua mão carregava algo pequeno, mesmo Artéraphos com sua visão aguçada não conseguia ver. E assim que o menino soltou o item no círculo uma forte luz prateada tomou o ambiente.
Um dente. Não um pequeno como o de um humano, mas um tão afiado quanto lâminas e tão amarelo quanto o âmbar. Era o canino de uma criatura. Porém, diferente de outras criaturas, Udnark’s conheciam bem o valor das coisas. Eles podiam ver a origem de algo apenas de olhar, saber seu valor e se aquilo faria alguma diferença em seu próprio destino.
Ao olhar para aquele mísero dente a única coisa que Artéraphos via era nada mais que energia. Vermelha e vibrante, apenas uma pura e infinita energia. Uma existência capaz de fazer os chãos tremerem. Como era possível, ele não conseguia ver a história daquilo ou qual criatura? Ele havia perdido seu contrato com Ezequiel, mas ainda era um Udnark. Então…
“O Gaiser, aquela criatura que procurava pelo filhote…” Percebendo que a energia vermelha vinda do dente era a materialização do valor daquele item, Artéraphos percebeu algo que nem ao menos havia passado por sua cabeça ao encontrar aquele filhote. “Se esse dente tem uma energia tão densa quanto a daquela criatura, e aquela criatura era o protetor do filhote, então… que tipo de filhote era esse que eu trouxe para Ezequiel?”
Havia muito mais que ele não sabia, na verdade, várias outras coisas que mesmo seus próprios olhos não podiam acreditar.
Um seguido por outro itens foram retirados da passagem junto à mão de Ezequiel. As runas que já brilharam em sua força total depois de receberem o primeiro item não mudaram de cor pois era impossível, apenas se mantiveram em um tom de platina incandescente.
Vinte e nove espaços, vinte e nove itens. Todos itens desconhecidos e sem origem mesmo para os olhos afiados de Artéraphos. Agora ele entendia por que seu antigo mestre havia lhe dito “favor”. Em frente a todas essas coisas, o que eram aqueles míseros itens que ele havia procurado?
“Era um teste para mim, mas mesmo meu melhor não foi o suficiente? Ele tinha que fazer algo assim comigo?”
— Tinha… — A voz de Ezequiel surgiu dando uma resposta a Artéraphos que imaginava estar conversando consigo mesmo, mas falava em voz alta. — Eu tinha que fazer isso, precisava mesmo saber se estaria disposto a fazer isso por mim, se não fugiria.
— Por que? — Ele perguntou cheio de agonia. A voz de Ezequiel não surgiu imediatamente, ele pensou, não, ele parecia se recusar a dizer aquilo em voz alta. Porém, pela primeira vez ele deu uma resposta sincera:
— Porque nascemos destinados. Você é como eu Artéraphos, você é igual a mim. Se somos iguais, quando as coisas começarem a ficar difíceis e você ver a primeira oportunidade, você vai fugir… — parando um instante para respirar, a voz de Ezequiel se tornou ainda mais baixa e arrastada — …. como eu quero fugir cada vez que sinto meu mundo desabar. Você entende, é insuportável não é? Você ficar preso e estar a mercê do plano de alguém, servir de alimento e ser usado como um objeto. E quando você pensa que tudo acabou, quando repousa, sente ser abraçado pela calmaria e ora para que tudo não passe de um sonho. Você é jogado de boca no chão da realidade. Eu estou cansado, desse mundo, de tudo, e essa vai ser a última vez que permitirei me usarem.
Raios prateados tomaram o ambiente junto a um clarão de luz. Sem conseguir enxergar o que acontecia, Artéraphos apenas percebeu quando os vinte e nove itens viraram poeira no ar. As runas se apagaram e um estranho líquido parecido com petróleo puro se espalhou rapidamente pelo chão do cômodo.
Uma inquietação atingiu o peito de Artéraphos ao ver o líquido vir em sua direção. Andando para trás ele tentou se afastar o máximo que pode mas, não importava o quanto tentava, aquilo continuava a se espalhar.
Saindo do banheiro, ele caminhou pelo corredor em direção a escadaria para o primeiro andar. Por um instante ele olhou para trás e observou que Ezequiel se afundava no estranho líquido escuro, mais da metade de seu corpo estava dentro do chão.
Descendo as escadas, ele correu para fora da casa que aos poucos era consumida pelas sombras.
O filhote de cão infernal já estava lá fora há algum tempo. Com medo dele acabar sendo pego pelo líquido estranho, Artéraphos usou sua perna de apoio para o corpo da mulher e se ajoelhou, pegou o filhote e o pôs em seu manto. Ali ele estaria seguro.
Partes da casa começaram a desmoronar em cima do líquido, e logo a desaparecer daquele mundo.
“Ele está certo”, pensou Artéraphos. “Durante quatorze anos somos proibidos de encontrar nossos mestres, ordem essa feita pelo nosso próprio criador para que os Mestres consigam crescer e amadurecer por si só. Mas nunca fui necessário para Ezequiel. Como ele conseguiu aquelas coisas? Como? O que ele teve que passar para conseguir aquilo?”
Apesar de conhecer a origem de Ezequiel, Artéraphos, assim como o próprio menino, não sabia de várias coisas sobre a história dele.
“Ha… eu devia ter percebido quando o Gaiser apareceu. Ele era apenas um guardião e liberava a materialização de seu valor. Já esse filhote, ele não libera nada. Isso significa que, na verdade, eu não era forte o suficiente para sentir sua energia. Droga! Depois de tanto esforço para me tornar o melhor Udnark, depois de abdicar de meu tempo de vida…”
Um pensamento de repente apareceu na mente de Artéraphos, como se tivesse sido induzido a ela. O que Ezequiel estava fazendo era uma transmutação, ele já tinha imaginado isso, mas todos os itens que foram usados eram partes de corpos de criaturas. Vinte e nove criaturas diferentes, são trinta se contar o pedaço da perna do filhote que Ezequiel provavelmente tinha engolido.
“Seu corpo vai se fortalecer mas, ele vai perder sua forma humana.” A verdade era que um humano não aguentaria algo assim mesmo se usasse itens comuns. Ezequiel estava usando coisas que mesmo o próprio Artéraphos não tinha conhecimento. Ezequiel não era humano? Sem se dar conta disso, Artéraphos começou a busca por uma solução.
Ele colocou a empregada chefe no chão e tirou seu manto. As faixas que cobriam seu corpo agora cobriam também seu rosto e até seus olhos. Ele não tiraria seu manto facilmente já que ele escondia sua aparência, mas desde que não houvesse ninguém vendo, por que ele precisaria tapar o próprio rosto?
Itens começaram a ser jogados para fora do manto, tantos itens raros como lixo. Foram anos juntando todas aquelas bugigangas que ele mal se lembrava mais. Sua esperança era apenas uma:
“Algo, qualquer coisa que eu peguei, coisas desconhecidas. Desde que impeçam sua humanidade de acabar, qualquer coisa serve. Só precisa estar no nível de um daqueles itens.”
Durante sua jornada Artéraphos passou milhares de anos juntando coisas que nem ao menos tinha poder para saber o que era. Algum deles talvez seria útil naquele momento, mas como achar uma agulha no palheiro? Havia tantos itens que a maioria não passava de lixo de baixo nível.
Raios prateados quebraram os céus, rugindo e destruindo o resto da casa que ainda estava de pé. O estranho líquido parecido com petróleo a muito parou de se mover. Ainda estava sendo expelido mas, sempre que chegava a certa distância da casa, começava a evaporar em uma névoa sombria. Já tinha começado e estava prestes a acabar. Artéraphos se desesperou pois se realmente terminasse assim, ele nem fazia ideia de que criatura Ezequiel se tornaria.
— Eu posso voltar ao mundo das sombras, pedir algo ao pai. Não, não daria tempo. Mas eu voltei no tempo antes… como eu faço?! — Uma dor angustiante tomou o peito de Artéraphos, tão insuportável que mesmo ele gemeu de dor. Era um aviso, algo que até agora não tinha acontecido com ele, sua existência estava em perigo. Sua voz soou cheia de rancor: — Eu buscarei incansavelmente, se necessário invadirei as quatro áreas proibidas do mundo das sombras contra a vontade de meu pai. E no futuro, me entregarei no dia de hoje esse item. Essa é a promessa de um Udnark. Então venha até mim!
O ar na frente de Artéraphos queimou rasgando o próprio espaço, e das chamas uma esfera transparente com listras azuis e vermelhas começou a tomar forma. A solução, ele tinha que ser rápido. Sua mão se estendeu para pegar o item quando uma dor o atingiu em sua costela.
“Maldição! Que porra é essa?!!” Ele pensou sem conseguir se mover. Sentindo algo em seu corpo, ele desceu seu olhar para onde sentia a dor.
Preso a seu corpo um ser magro, quase nos ossos, e de pele como carvão, segurava um graveto afiado em sua costela. O ser o abraçava, grudado em seu corpo como um demônio buscando pela alma de uma criatura. Não haviam olhos ou boca, já que o segundo parecia ter sido costurado por dentro. O demônio o observou com seus olhos vazios ao perceber ser visto, mas não emanava som algum.
Rasgando tanto seu corpo quanto as faixas presas a ele, o demônio terminou o que havia começado a fazer. Sua mão não se movia rapidamente, mas lento, queria fazê-lo sofrer o máximo que pudesse para ele se lembrar dessa dor.
Um dos braços da criatura subiu ainda mais nas costas de Artéraphos e ele começou a escrever algo novamente. E como se nunca tivesse existido, desapareceu sem deixar rastros.
Dando uma olhada rápida nas palavras, Artéraphos percebeu que estava na língua de sua raça das sombras. Uma escrita por símbolos. Mas sem tempo para decifrar ele pegou a esfera transparente e correu para dentro da casa em ruínas.
Seus pés tocaram o líquido de petróleo e, como se pisasse em goma, o líquido começou a grudar em seu pé o puxando para dentro dele. Não adiantaria ser engolido por aquela coisa agora, ele tinha que subir para o segundo andar e entrar pelo mesmo lugar onde Ezequiel tinha entrado.
Uma passagem difícil, mas nem por um instante ele parou de caminhar até chegar no banheiro da casa. Ezequiel já não estava mais lá, e assim que ele entrou no lugar um raio prateado desceu dos céus e penetrou o líquido escuro. Artéraphos se aproximou, mas logo três raios desceram dos céus e se tornaram um, acertando no mesmo lugar que o outro.
Ele não podia ficar parado pois seria engolido pelo líquido e aquele raio deveria ser o que estava refinando o corpo de Ezequiel, logo, não deveria ser acertado por ele ou iria atrapalhar o processo. Atrapalhar o processo era o de menos, o que aconteceria se ele entrasse naquele lugar e fosse acertado por algo capaz de refinar itens tão poderosos quanto o próprio Artéraphos?
Mas sem pensar nisso ele ficou parado o mais próximo que pode do lugar onde estava Ezequiel, se permitindo ser engolido pelo líquido escuro.
Artéraphos submergiu nas águas sombrias em busca de Ezequiel. A sensação da quietude, de querer ficar parado e deixar o tempo passar. Era como no momento em que conseguiu fugir daquele mundo infernal e foi jogado naquele mar estrelado infinito. Mas diferente de lá, que era brilhante, aqui era vazio. E no fundo de tudo, um menino afundava na escuridão daquele mar.
Nadando o máximo que pôde para baixo, Artéraphos tenta alcançar seu antigo mestre. Impossível, não importava como ele parecia não sair do lugar enquanto o menino apenas afundava mais.
“Eu não posso ir lá, não sei como é verdadeiramente o ‘vazio’ de alguém que conseguiu aqueles itens. Eu não teria capacidade para conseguir sozinho, ele conseguiu. Um imortal, uma criança. E o pai dele, um rei frio e metódico. A única pessoa que o acolheu sofreu por causa dele. Que merda de vida… eu quero ajudá-lo. Pelo menos para que não seja mais visto como um monstro…”
Os perigos do vazio que tomam tudo que se deixa levar. Um ser nascido para servir, um Udnark, mas agora sem objetivo pois teve o contrato de seu mestre quebrado. Artéraphos afundou.
Sua mão se esticou em direção a Ezequiel, mas outro raio desceu sobre o corpo do menino. Ele apenas tinha que entregar-lhe a pílula, pílula essa vinda de sua promessa consigo mesmo de um futuro distante. Algum dia ele teria que buscá-la, mas não hoje, pois o resto da vida daquele garoto estava em jogo.
Se aproximando entre o tempo em que não caiam raios, ele empurrou a pílula contra a boca de Ezequiel que dormia durante o processo e, assim que tocou seus lábios, a imagem de um bebê tomou o interior transparente da esfera. Talvez fosse o próprio Ezequiel ainda pequeno, talvez não, talvez o bebê apenas representasse a parte pura de uma pessoa. Como era um item vindo de sua promessa consigo mesmo, Artéraphos sabia que não machucaria Ezequiel, então o deu.
Imediatamente um raio atravessou as águas sombrias acertando em cheio o corpo do menino. Artéraphos apagou. No mesmo momento que seu dedo tocou na boca de Ezequiel, o raio havia o atingido.
Seu corpo foi arrastado para baixo mais rápido que o do próprio menino. Ele via Ezequiel, estava longe, achava estranho o fato de eles estarem ali pois era diferente de onde estavam antes.
Numa vívida floresta, Ezequiel dormia sobre as sombras de uma grande árvore de folhas escuras. Paz, tranquilidade, se prestasse atenção era possível ouvir o som das folhas crescerem.
Mesmo quando foi jogado naquele céu estrelado, Artéraphos não sentiu tanta calmaria assim, era vazio. Não havia pessoas, cães ou qualquer tipo de criatura viva naquele lugar. Mas era um vazio preenchido de vida e de felicidade.
“O vazio de um coração puro.”
O descanso final de Ezequiel.
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