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    Um quarto ao estilo oriental, eram as únicas palavras que podiam descrever aquele cenário. As paredes forradas com papéis amarelos e as máscaras de ogros penduradas passavam o ar de um verdadeiro quarto chinês do século XVIII.

    Kurone fez um rolamento pelo tatame e bateu as costas com violência na parede. Estendeu a mão para preparar um ataque com suas ínfimas chamas e materializar a espingarda de cano cerrado.

    [Não faça isso! Nosso corpo não está pronto para usar mana!]

    — A-Annie!? — Ele olhou confuso ao redor, procurando a dona da voz ecoando na cabeça, mas logo reconheceu aquele tom doce e zeloso.

    [É-é! Acho que sou eu… E-espera, isso quer dizer que nosso pacto funcionou! Consigo ver tudo pelos seus olhos.]

    — Sei que tá animada, mas não precisa gritar. 

    [Desculpe…]

    — De qualquer forma, temos um probleminha aqui — disse direcionando o olhar para a figura à sua frente.

    Era uma mulher com cabelos negros presos em um rabo de cavalo. O estilo oriental estava espalhado por todo o seu corpo, desde o kosode1 branco ocultando os seios voluptuosos ao hakama2 vermelho com abertura lateral, mostrando as laterais das coxas macias. 

    A mulher manteve-se inexpressiva, fitando o jovem com os olhos rubros afiados. Não importava como a encarasse, só conseguia pensar em uma sacerdotisa xintoísta do seu mundo, uma miko3.

    [Miko? É um tipo de raça ou algo assim?]

    “São sacerdotisas que vivem em santuários, Nie. Parando para pensar, esse quarto parece um templo pequeno. Existe alguma chance de estarmos no Japão?”

    [Se refere ao seu mundo original? É impossível… E-ei, o que foi isso?! Você me chamou de “Nie”?]

    “Droga, então…”

    [Não me ignore! Só estamos juntos há algumas horas e você já me deu um apelido sem minha permissão…]

    “E você achou ruim?”

    — Você não devia se esforçar assim, ainda está se recuperando, — a mulher interrompeu o diálogo por pensamento do jovem — seus pontos podem se abrir. — Apontou para o braço costurado.

    Quando acompanhou o dedo e averiguou seu braço, percebeu tardiamente a mudança de roupas, agora usava apenas um quimono branco de mangas curtas. Rapidamente, colocou a mão no peito e verificou a pulsação do coração.

    As memórias de ser morto por Azazel van Elsie, o seu coração na mão da demônia, o choro de Rory e, em seguida, o rosto dos Lolicon Slayers e a presença de Azrael, tudo ainda estava bem fresco em sua mente.

    [Vamos escutar o que ela tem a dizer.]

    A troca de cenários o deixou atordoado, mas a voz de Annie foi o suficiente para lhe acalmar.

    — Por favor, sente-se ali, o chá está pronto. — A mulher apontou para uma mesa no centro do quarto, sua voz mecânica era seca e o olhar de pouco brilho mantinha-se fixo no jovem.

    Ela falava como um ator que decorou suas falas, mas esqueceu da emoção a ser transmitida ao público, tornando a peça entediante.

    Em cima da mesa, a fumaça esvaía-se lentamente de dois copos com um líquido esverdeado. Não tinha boas memórias do último chá com uma mulher bonita, mas dessa vez teria mais cuidado.

    Começou a salivar ao sentir o aroma do líquido verde. Quando estava no Hangar dos Mortos, não sentia fome por estar em uma forma espiritual, mas agora seu corpo cobrava os nutrientes necessários para se manter.

    [Camélia, chá-verde medicinal. Não parece ser veneno.]

    “Como você sabe?”

    [Mais tarde te explico, melhor você tomar logo esse chá antes de desmaiar de fome.]

    Diferente do que esperava, o gosto do chá era bom. Não era nem muito doce e nem muito amargo, a temperatura também estava ideal. Kurone engoliu todo o conteúdo de uma vez sem medo, tinha o aval de Annie para isso.

    — A bebida é de agrado do meu noivo? — perguntou a mulher com sua voz indiferente, não podia dizer que tipo de sentimento ela tinha ao pronunciar aquelas palavras de maneira indiferente.

    — Ok… vamos lá, sei que é muita coisa para minha mente processar, mas me responde uma coisa, que negócio é esse de “noivo”?

    [Isso foi indelicado, como tem coragem de perguntar isso diretamente a uma mulher?]

    “Você tá do lado de quem mesmo?”

    — Gostaria de entender como palavras conseguem ter tanto peso. “Namorado”, “noivo”, “esposo”, por que os humanos precisam de tantos títulos para demarcar uma única coisa? Não compreendo — explicou a miko terminando o seu chá.

    “Falando assim, nem parece que ela é humana, né, Nie?”

    [Lou Souen Eiai, idade desconhecida, raça desconhecida… não é humana. Não consigo detectar nenhuma aura ruim vindo dela. E para de falar “Nie”, fico constrangida assim.]

    “Então não corremos risco de sermos atacados, isso é bom.”

    [Ignorada novamente.]

    — Uma pessoa me disse que algo tem valor quando não conseguimos ficar indiferente em relação a esse algo, não entendo. Não compreendo nada sobre este mundo, sobre emoções humanas ou sobre valores, — continuou a mulher, Lou Souen, chamando a atenção do jovem — por isso decidi utilizar você como um experimento.

    — Experimento? Isso não me parece coisa boa…

    — Quero descobrir mais sobre emoções, principalmente sobre a que mais me fascina, aquilo com os homens chamam de “paixão”.

    [Iiiiik!]

    “O que foi isso?! Você acabou de gemer?”

    [V-você era quem devia estar assim, ela acabou… acabou de dizer que vai se a-apaixonar por você!]

    “Sério? É isso que ela tá tentando dizer?”

    [Idiota!]

    Por um segundo, o mundo de Kurone virou de cabeça para baixou ao escutar aquele “idiota” tão tímido, tão diferente daquele usado por uma garotinha de cabelos brancos. A figura de Rory piscou em sua mente, mas ele tentou se manter firme.

     Não adiantava se lamentar pelo que aconteceu, precisava obter informações e retornar o mais rápido possível para Eragon, precisava ajudar Rory e os outros.

    — Diga, não parece que estou em Eragon, que lugar é esse? — perguntou com a voz forçada. As lembranças da loli delinquente realmente o abalaram.

    — Este lugar especificamente é a ilha de Lou Souen, uma das ilhas de Lou Xhien. Este aqui é o quarto que utilizo para meditar e refletir sobre sentimentos.

    — Ilha? Como cheguei aqui… não, como saio daqui e faço pra voltar a Eragon? Apenas aponte para a direção e eu vou para lá.

    [Sua pressão arterial está aumentando, é melhor relaxar um pouco, ela vai explicar tudo.]

    — Seu rosto é o de alguém irritado, por quê? — a mulher perguntou aproximando-se — Não lembro de ter dito algo que o ofendeu, então por que teve este sentimento?

    Decidiu ficar em silêncio. O antigo Kurone explodiria dizendo “eu acabei de acordar e tem uma mulher estranha…”, mas aquele era um novo Kurone Nakano. Por algum motivo, aquela voz doce de Annie tocava no interior do seu ser e o acalmava.

    — Você está a milhares de quilômetros da Cidade-Estado de Eragon. É inviável voltar andando, para não dizer que é uma loucura. Eragon localiza-se no Continente Ocidental e Lou Xhien no Oriental. 

    Apesar de ser uma coisa inacreditável, ele conseguia perceber o peso daquelas palavras. Tentar retornar era equivalente a viajar do Japão ao Brasil a pé, no entanto ainda não sabia como chegou ali.

    Ele olhou para uma pequena janela no canto da parede e viu a luz alaranjada do pôr do sol adentrando o quarto. Se era verdade o que ela dizia, então podia supor que estava em um lugar semelhante a um país oriental do seu mundo.

    Rapidamente, correu em direção à porta e saiu do quarto. Teve que cobrir os olhos por conta da luz laranja ofuscante, mas logo se acostumou a ela. Uma brisa forte bateu no jovem parado, levantando a franja e mostrando seu olhar surpreso.

    Árvores de folhas rosas circundavam todo o local. A única entrada para o lugar era um torii4 vermelho — o portão tinha diversos glifos negros nas extremidades.

    Teve a impressão de estar em um santuário xinto do seu mundo, porém de aparência mais selvagem, pois aparentemente fora construído em meio a uma floresta.

    Poucas lanternas começam a acender sua chama lentamente com o fim do pôr do sol e a ascensão da noite.

    [É lindo…]

    De fato, todo aquele cenário aquecia o coração, fazendo-o inspirar e expirar lenta e calmamente, sentindo o ar frio adentrando os pulmões. Isso misturado à voz de Annie era um verdadeiro paraíso, podia sentar ali, fechar os olhos e escutar a deusa cantar uma música  vagarosa em sua cabeça.

    Mas não estavam apenas eles ali. Podia sentir a aura de mais duas pessoas. Após o torii vermelho, visualizou uma escada longa levando para dentro da floresta rosa e laranja. Estava no topo, então podia ter uma visão geral da parte inferior se estivesse mais próximo do portão.

    “Tá sentindo? Tem uma pessoa naquele lado e outra ali. Será que são amigos?”

    [Não consigo identificar daqui.]

     — Você ainda não está recuperado, pode ter complicações se ficar se esforçando aqui — advertiu Lou Souen saindo do quarto.

    A construção era tão pequena quanto Kurone pensou, com as paredes finas e o telhado avermelhado ao estilo chinês.

    [Tem alguém se aproximando!]

    Com o aviso de Annie, ele virou o rosto para o torii e escutou o som de passos e sinos de ouro aproximando-se. A floresta estava silenciosa, por isso o badalado dos sinos ecoava com facilidade.

    Ele montou a pose de batalha e preparou-se para encarar quem estava chegando, porém soltou um suspiro ao deparar-se com um par de olhos laranjas em um rosto bonito.

    Seu semblante foi se tornando visível conforme subia as escadas. Primeiro a cabeça surgiu, adornado por fitas vermelhas, depois o corpo em uma roupa semelhante à de Lou Souen, porém preta e dourada, e, por fim, as pernas curvilíneas por baixo do hakama negro.

    Era uma garota de cabelos rosa-claros. Ela franziu o cenho e falou com desprezo ao avistar o garoto:

    — O que está olhando, plebeu? Ajoelhe-se!

    A última coisa que o jovem viu foi o céu noturno quando sentiu o corpo virando. Teve a impressão de ter levado um empurrão, mas não viu a garota se mover para atacar.


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    1. Vestimenta superior da roupa das mikos, antecessor do quimono
    2. vestimenta inferior da roupa das mikos, normalmente vermelho, podendo ser no formato de uma saia longa ou calça longa
    3. Donzela do santuário, sacerdotisas que cuidam dos templos xintoístas, fazendo limpeza sagradas e outra tarefas
    4. Portão normalmente vermelho que fica na entrada de santuários xintoístas

    Nota