Índice de Capítulo


    — Às vezes, eu fico pensando…

    — É só isso que você faz. Já pensou em ser um pouco mais idiota e pensar menos? Nunca ouviu falar que a ignorância é uma benção? — respondeu a psicóloga com sua expressão habitual de desinteresse pelo que o garoto falava, apesar dela, teoricamente, ser alguém que deveria ajudá-lo.

    Kurone sentava na poltrona aconchegante no centro do escritório de senhorita Kanade. A garota de cabelos negros e olhos cansados era um pouco mais velha que ele, e dependia daquele jovem para pagar suas contas, pois havia muitas psicólogas em Tóquio.

    — Mas vamos em frente, diga o que te perturba dessa vez — ela falou tirando o último cigarro da caixa e acedendo-o.

    — É que…. às vezes eu me questiono quem realmente sou… tipo, sinto que já mudei radicalmente tantas vezes que é como se eu fosse outra pessoa… Eu não sei exatamente como expressar isso… Ei! Você tá me escutando?!

    Hã? Vai chorar? — a senhorita Kanade tirou o cigarro da boca e soltou a fumaça. — Todos nós mudamos conforme crescemos, Kurone. 

    — M-mas…

    — Você acha que mudou radicalmente? Creio que ninguém te conhece melhor que as pessoas que estão próximas a você. Suas irmãs continuam te amando do mesmo jeito, acha mesmo que você mudou tanto assim? Com certeza as meninas não pensam isso, seu siscon safado.

    O jovem parou por um momento, apesar da franja cobrir seus olhos, Kanade Toshiro sabia exatamente qual era a expressão dele, afinal eram próximos há muito tempo.

    — Vê se lembra disso, sempre que se questionar quem é, lembre-se apenas que é o irmão daquelas três garotinhas adoráveis… e o amigo de Kanade Toshiro, certo? Se estas pessoas começarem a te odiar sem motivo, pare, pense e reveja seus atos.

    — Eu… não sei exatamente o que dizer… obrigado…

    — Já que eu ajudei… — a jovem aproximou-se de Kurone e o encarou com olhos suplicantes. — Será que você poderia comprar mais cigarro pra mim… por favorzinho?

    — Nem vem com essa cara de cão sem dono! 

    — Não seja mal! Você é meu amigo!

    — E sou seu paciente também! Você não tem jeito mesmo…


    — Bom dia, Iolite.

    — Bom dia, Law Zhen — ele cumprimentou passando a mão pelos cabelos negros da aventureira. Apesar de não ter percebido, aquele ato deixou a jovem bastante corada.

    O jovem nobre que estava ali perto, Eulides al Mare, olhou assombrado para aquela cena, como se visse uma assombração. Claro, era a primeira vez que ele via Kurone sorrindo, ele parecia estar bem alegre naquela manhã.

    A mudança de humor não era para menos, afinal a conversa com Annie no dia anterior o lembrou de quem realmente era. Senhorita Kanade certa vez lhe dissera a mesma coisa, como pôde esquecer facilmente?

    Enquanto estivesse ao lado de Annie, e ela gostasse dele, então estaria no caminho certo. Que bom que sempre havia garotas gentis em seu caminho.

    — Nossa, darling, você está tão sorridente hoje, e é porque nem passou a noite comigo — Inari, na forma de Rory, provocou o jovem com uma expressão presunçosa. — Espera! Será que você andou me traindo com aquela mulherzinha oriental ali?! — A deusa apontou para Law Zhen, ao que a jovem aventureira olhou confusa para ela.

    — Que bom ver que está mais feliz, senhor Cordielyte, acho que uma expressão mais suave combina realmente com seu rosto — disse Lothus. A demônia era gentil, provavelmente devia estar preocupada com o rosto sombrio de Kurone nos últimos dias.

    — Obrigado pela preocupação, eu tô realmente melhor agora.

    Apesar de a tristeza e o ódio ainda não terem desaparecidos em sua totalidade, conseguia lidar com eles. Sempre que tocava o anel dourado em seu dedo anelar, lembrava de Lou Xhien Li, mas tentava trazer à tona as boas memórias para evitar ficar muito depressivo.

    Perdeu muitas pessoas importantes, mas ficaria louco se continuasse a pensar nisso a todo momento, e sua insanidade era exatamente o que o Vassalo da Morte queria, pois Kurone percebeu que, sempre que ficava mais furioso, aquelas veias roxas espalhavam-se ainda mais rápido pelo seu corpo.

    “Nie, valeu por ontem, eu consegui dormir e tô realmente mais leve.”

    [N-não tem pelo que agradecer!]

    Hmmmm… será que a Nie ficou com vergonha do que ela falou ontem? Não precisa ficar acanhada, pode falar com o ‘Kurone da Nie’, hehe.

    [Hmpf! Pare de falar essas coisas constrangedoras!]

    Kurone riu discretamente ao escutar a voz gentil da sua deusa. Ele realmente não sabia o que seria da sua vida se não tivesse aquele pacto com ela.

    Ao olhar para o lado, viu os aventureiros mais covardes preparando suas carruagens para retornarem a Dart. Após o anúncio daquele estranho que encontrou na nevasca, eles decidiram que não continuariam pela busca da vila de Hyze.

    Com certeza, todos ali acabariam mortos se continuassem, então aquela era a melhor ideia mesmo. Quatro carruagens retornariam, e haviam quinze veículos inicialmente, excluindo a de Kurone, a de Berthran e dos aventureiros que fugiram antes, isso significava que mais metade deles eram loucos.

    Eulides al Mare, Willian Zackarias e Law Zhen insistiam em continuar. Os dois últimos tinham altas chances de permanecerem vivos, mas o primeiro era muito fraco e sua morte era certa, no entanto Kurone nada disse dessa vez, pois aquele jovem nobre já estava irritado com ele desde a última conversa, quando encontraram os corpos, sem as cabeças, de dois aventureiros. 

    — Tem certeza que vão continuar? Nós vamos ficar por mais um tempo aqui, organizando as coisas, antes de voltarmos — comentou um dos aventureiros.

    — Você está nos chamando de covardes?! — rugiu Ayshla, já preparada para sacar seu cutelo.

    “Por que todo mundo tem que pensar nisso? Nós que somos os lunáticos aqui.”

    — Sen-senhorita Ayshla! Ele está apenas sendo educado! — gritou Eulides, apesar de ele não ser a melhor pessoa para falar aquilo.

    Kurone simplesmente ignorou aquela discussão com um suspiro e voltou sua atenção à sua carruagem. Eles partiriam primeiro, antes que a nevasca ficasse mais forte. O jovem deixou uma tocha com Fogo do Inferno para aqueles que retornariam, pois eles não chegariam na cidade-fronteira em apenas um dia, certamente precisariam parar para acampar e comer, e por isso necessitavam do fogo. 

    — Já estamos prontos para partir, e vocês? — questionou o jovem Willian. O garoto arrogante e um pouco narcisista sempre se aproximava do grupo de Kurone sorrateiramente, ele parecia gostar muito de Lothus, e isso deixava Eulides incomodado.

    “Parece roteiro de light novel de romance escolar.”

    [Ah, para, eles são fofos, mas acho que a Lothus combina mais com o Eulides.]

    “No fim, você ainda é uma garota…”

    [O que você quis dizer com isso?!]

    — Nós já estamos prontos! — respondeu Kurone, ignorando as últimas palavras da deusa. — Saphyr, Ruby, vamos! — ele chamou as duas garotas pelos nomes falsos.

    Enquanto deixavam a clareira, os outros aventureiros acenavam e desejavam boa sorte a eles. Todos sabiam que seria uma jornada difícil, então pelo menos desejavam que os seus amigos, que desejaram continuar, sobrevivessem.

    — Eles eram bem legais, acho que vou mandar você levar uma lembrancinha para eles em Dart quando chegarmos em Hyze — disse Lothus acenando de volta.

    — Eles com certeza gostaram de você mesmo — Kurone respondeu com uma expressão desconcertada. Os jovens adoravam escutar as histórias da demônia e sempre estavam tentando flertar com ela, mas Lothus era inocente demais para notar que aquela gentileza deles tinha na verdade segundas intenções, mas o garoto decidiu não falar sobre isso para que aqueles aventureiros fossem pelo menos respeitados por ela.

    A maior parte daqueles que decidiram continuar eram homens e mulheres mais velhos, que tinham mais experiência em batalha e eram ambiciosos pelo tesouro que lhes aguardava na vila de Hyze, então Lothus só precisava lidar com os flertes de Eulides e Willian.


    Ahhh… eu vou sentir muita falta da Lothuszinha! — falou um aventureiro com uma expressão triste. 

    — Eu também! — respondeu outro.

    Eles começaram a deixar a clareira trinta minutos após o grupo de Kurone sair. Os mais jovens sentiam-se derrotados e irritados por saberem que Willian teria a chance de paquerar Lothus, por decidir continuar a jornada.

    — Será que vocês vão ficar falando daquela garota a viagem toda?! — rugiu uma jovem no interior da carruagem, ela parecia incomodada com o tópico da conversa dos rapazes.

    — Não precisa ficar com tantos ciúmes assim, Kelly. Reconheça que Lothus era realmente gentil, diferente de você, que é uma brutamontes.

    — Se eu me levantar daqui, vou te mostrar quem é a brutamontes!

    — Viu só, Luan!

    — Você tem razão, mano. Ela é metida a machona mesmo. Ei, ei, não leve tão a sério, você não sabe brincar!?

    A viagem deles prosseguia calma até aquele momento, porém aquela carruagem barulhenta com os três aventureiros chamou a atenção dos outros. A garota estava prestes a levantar e dar um tapa na cabeça do seu companheiro, porém…

    Pam! Aquela cabeça que estava prestes a receber o tapa delicado da garota não existia mais. O membro tornou-se nada mais que pedaços de carne que se espalharam pela carruagem.

    Ahhhhhhh! — Kelly olhou horrorizada para aquela cena, recusava-se a acreditar que aquilo era realidade. A cabeça do seu amigo que a instantes estava ali foi simplesmente desintegrada.

    — Kell… — O outro companheiro, ao lado, tentou segurar o corpo sem cabeça do seu amigo, mas teve o mesmo fim que ele após outro “pam!” violento.

    — Não… não… não… — Apesar de se preocupar com os seus companheiros, o instinto humano da garota a obrigou a sair dali, ela sabia que morreria se continuasse lá dentro, por isso fugiu pela janela da carruagem.

    A neve fria tocou seu corpo trêmulo. Ela estava desamparada, não fazia a menor ideia do que fazer ou para onde ir. O campo de visão tornava-se turvo devido às lágrimas escapando pelas extremidades dos seus olhos. Talvez pudesse buscar ajudar nas outras três carruagens? Não! Pois aquele som horripilante e estrondoso lentamente dizimava todos.

    Houve os que tentaram lutar, porém quem quer que atirasse contra eles estava escondido nas sombras, em uma vantagem territorial, ninguém conseguia vê-lo.

    Kelly olhou assombrada para o cenário, mas desistiu após constatar que não conseguiria mais correr, suas pernas se recusavam a obedecer. Lágrimas desciam pelos seus olhos, os corpos dos seus dois amigos que há poucos minutos discutiam sobre a garota Lothus estavam logo ali a frente, sem cabeça.

    — Por quê?… 

    Todos aqueles que os acompanharam naquela jornada estavam mortos, sendo que decidiram retornar para não morrerem, por que a vida tinha que ser tão injusta?

    Ao escutar o som de passos, Kelly direcionou seus olhos repletos de lágrimas para a origem e arregalou os olhos. Era um homem.

    O homem repousava uma arma estranha atrás do pescoço. Ele usava um terno com um sobretudo que se arrastava pela neve, o rosto era oculto por um chapéu negro.

    — Ei, mocinha, — o homem começou com uma voz grave, não havia sinal de remorso em seu tom, mesmo ele tendo matado tantos jovens de maneira tão cruel — por acaso um daqueles jovens se chamava Loright al Mare ou Iolite Cordielyte?

    Kelly estava aterrorizada, ela devia atacar, mas seu corpo não se movia, então apenas forçou a cabeça e a balançou dizendo que não.

    Hmm… que bom, muito bom, não matei ele sem querer. Então, agora posso continuar minha caçada — ele disse afastando-se da garota, seria aquilo um dos monstros que habitavam o interior da floresta de Hyze? 

    As lágrimas no rosto de Kelly aumentaram e ela chorou alto, pois foi a única a sobreviver, pelo menos assim pensava.

    Ah, diga ao diabo que foi Clay Alysson, o Psicopata Reencarnado, que lhe mandou — o homem anunciou antes de puxar o gatilho e explodir a cabeça da aventureira.


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