Capítulo 268: Instintos - Astarte x Luminus

Mentiria se dissesse que não hesitou diversas vezes antes de finalmente apanhar o livro e levá-lo à mesa de madeira.
Era um volume com vontade própria. Lê-lo sem qualquer preparo não traria problemas? Não seria legal ter a cabeça explodida ao abrir uma página descuidadamente.
“O que é que você acha?”
{A Celestial não tem uma boa impressão sobre este livro, contudo Ela não acha que seja algo tão perigoso quanto você imagina.}
No fim, decidiu folhear. Abriu em uma folha aleatória e, para a sua surpresa, ela estava em branco — tanto a página seguinte quanto a anterior também.
— Não é de se espantar, na verdade, ainda tem uns vinte mil anos pela frente, ele vai precisar de muitas páginas em branco pra escrever sobre as tretas desse mundo.
Deixando escapar um longo suspiro, decidiu abrir o livro mais próximo do início. Devia ter feito isso antes, porém ficou curioso para saber se havia folhas sobressalentes ou se elas eram adicionadas conforme o livro incluía novas histórias em si.
Ao folhear mais uma vez, deu de cara com uma escrita em um formato mais antigo, contudo ainda era entendível com o seu conhecimento atual.
Estava no meio de um capítulo, então voltou algumas páginas e encontrou o título: “A Lua Vermelha”. Uma história sobre Jarnsasha?
Daria uma olhada mais tarde, no momento havia mais figuras históricas que queria encontrar.
A partir do capítulo atual, começou a voltar, olhando atentamente as palavras, buscando algo que entregasse o que o conteúdo do texto era sobre a pessoa que buscava.
Encontrou o que precisava logo nas primeiras páginas, apesar de ter passado por alguns títulos de capítulos interessantes.
“Astarte, então parece que nem toda a informação sobre você foi apagada…”
Se era assim, então isso explicava muito da personalidade de Sylford. Os membros do clã Sophiette que liam o Livro das Lendas tinham uma visão diferente do mundo, pois sabiam da verdade… e agora Kurone também saberia.

Luminus esqueceu-se de respirar por um momento.
O coração da menina disparou assim que viu uma vila à frente. A aura emanada desse lugar só podia significar uma coisa: Havia um Fragmento de Astarte ali.
Notando a maneira como a menina arregalou os olhos, a deusa loira ao seu lado pôs a mão sobre o seu ombro, no intuito de tranquilizá-la. — Tudo bem, Luminus? Você acha que consegue mesmo?
Tinha que conseguir. A garotinha jurou que controlaria o poder da entidade tentando tomar seu corpo, por isso apenas confirmou com um aceno de cabeça e seguiu em frente.
Pelo menos Cecily ficava cada vez melhor em compreender os sentimentos.
Os flocos de neve caíam com mais intensidade e a névoa no céu não permitia que discernissem o dia da noite. A vila à frente era iluminada por diversas tochas e pessoas transitavam sem parar de um lado para o outro.
Claro, o próximo ano se aproximava.
Esse evento, logo à porta, lembrava a Luminus de uma pessoa especial. O aniversário de Loright era no primeiro dia do primeiro mês — foi o dia em que ele chegou ao orfanato, a data verdadeira do seu nascimento era desconhecida.
Desde que se conheceram, Luminus e Loright sempre comemoravam essa data juntos, esse seria o primeiro aniversário que o jovem de cabelos negros não teria a companhia da sua irmã.
“Eu prometo que vou dar um jeito nas coisas para tudo voltar ao normal… irmão.”
De punhos cerrados e uma expressão confiante, a garotinha deu um longo suspiro antes de atravessar o muro e adentrar a vila. Ambas as garotas foram cumprimentadas pelos moradores e visitantes.

Algumas pessoas lançaram olhares questionadores para elas, afinal fazia um frio infernal e tanto Cecily quanto Luminus não usavam roupas contra o frio.
As vestimentas da beldade loira eram uma armadura com um misto de azul e dourado — o metal devia fazer ainda mais frio que não usar roupa nenhuma em uma nevasca.
Quanto à Reencarnação de Astarte, seu vestido ainda era aquele simples usado nos últimos anos, um presente da irmã Daisy. A peça estava um pouco suja devido à longa jornada que tiveram nos últimos meses.
No centro do vilarejo, pessoas empilhavam uma quantidade exorbitante de lenha, era um costume dos orientais: fazer grandes fogueiras na noite de ano novo. A fumaça levada pelos ventos tinha um significado profundo que Luminus não conseguia compreender.
— Não é nenhuma das crianças que passaram por nós até agora? — Cecily perguntou de repente, em uma voz sussurrante.
A menina ao seu lado negou.
Luminus conhecia um portador de um Fragmento de Astarte apenas de encarar a pessoa, afinal o Sistema a daria o alerta. Como os Fragmentos, em teoria, só emanavam sua presença em crianças na idade em que o fluxo de mana estava desordenado, o escopo de busca era menor.
Sim, estava nervosa. A menina sabia que estaria arriscando a sua sanidade e a vida de um inocente ao fazer isso, mas não podia se acovardar para sempre.
Assim, Cecily e Luminus aproximaram-se do centro da vila e encararam as pessoas trabalhando com fervor para empilhar o máximo de madeira possível. Mesmo sem o auxílio da mana, os moradores possuíam muita força para carregar troncos tão pesados como se não fossem nada.
O tempo passou. A multidão aumentou e a hora de acender a fogueira estava próxima. Ambas as garotas em busca do Fragmento de Astarte continuaram a andar em círculos até…
Zing!
Um choque percorreu todo o corpo da menina.
A origem da sensação intensa foi um toque sem querer em uma pessoa à frente. Luminus ficou um pouco tonta devido ao número de pessoas ao redor e esbarrou em uma garota de cabelos loiros, com idade suficiente para ser uma das possíveis portadoras do Fragmento.
— Tsc, não vai pedir desculpas? — a garota, loira e de expressão arrogante, falou de repente, porém a outra parte não conseguia dar uma resposta, estava muito impressionada.
— Ela não prestou atenção, desculpe por isso — Cecily respondeu por Luminus.
— Hm? Não lembro de ter falado com você, eu estou falando com essa menina mal-educada aqui, então fica quietinha aí.
Cecily franziu o cenho para as palavras da menina, ela usava roupas nobres e possuía um cabelo loiro longo, só podia ser alguém da nobreza do ocidente que foi passar o fim de ano em um local diferente do habitual.
Vendo que a nobre causaria problemas, Luminus juntou todas as suas forças e fez a sua garganta produzir um som arranhado:
— M-me desculpe por isso, vou tomar mais cuidado na próxima vez.
— É melhor mesmo!
Após sua resposta ainda mais rude que um empurrão sem querer, a nobre virou as costas, empinou o nariz e continuou a vagar pelo local.
Luminus reuniu tanta confiança e julgou estar pronta, contudo era muito difícil para ela… A presença de alguém portando um Fragmento de Astarte trazia à tona as memórias de Mirim, a menina morta no último vilarejo visitado por ninguém menos que ela mesma.
Uma parte do seu ser tremia de medo enquanto outra desejava matar a pessoa à sua frente, eram como duas pessoas lutando por espaço. Se não tomasse cuidado, seria dominada pelos instintos de Astarte.
— É ela, Cecily.
— Então está explicado a sua reação… E agora? Vai tentar só ficar de longe? Ela não parece ser muito amigável.
A deusa loira tinha razão, não podia arriscar perder o controle. Se não conseguiu dominar seus instintos com Mirim, como poderia ter certeza que lidaria bem com uma nobre arrogante e rude?
De qualquer forma, o alvo foi encontrado… ou melhor, a portadora do Fragmento de Astarte. Só precisavam ficar de olho nela. Luminus consideraria uma vitória se o próximo ano chegasse a nobre arrogante fosse para casa sem um arranhão.
A tarefa era simples, bastava ficar calma e deixar as coisas seguirem seu próprio fluxo, no entanto uma impaciência repentina surgiu na sua mente. O que era isso? Nunca sentiu uma agonia assim antes, sempre fora calma e gentil.
Foi impossível não fazer uma expressão irritadiça.
Cecily notou a mudança no rosto da sua companheira e decidiu guiá-la a um lugar com menos movimento.
A cena de uma pessoa esbarrando em outra repetiu-se, era um acontecimento comum em locais com tanta movimentação. Dessa vez, os envolvidos foram Luminus e um homem corpulento carregando um barril no ombro.
Diferente da vez anterior, o homem não possuía um Fragmento de Astarte, bastava pedir desculpas que tudo ficaria bem. Na verdade, nem precisava disso, essa pessoa estava mais focada em levar logo o seu barril, então nem ligava para esbarrar ou não nos outros.
Tudo ficaria bem se uma voz irritada não ecoasse dizendo o seguinte:
— Ei, você não vai pedir desculpas, desgraçado?!
O que fez o homem parar nem foi a voz grave, mas sim a pequena mão segurando a sua camisa. Ele olhou para trás, baixando os olhos na direção da garotinha, e espantou-se ao ver a figura da menina de cabelos prateados e olhos avermelhados com uma expressão feia.
— Des-desculpe, senhorita…
A aura assassina emanada pela menina não intimidou somente ele, mas as pessoas ao redor também. Percebendo o que fez, Luminus imediatamente recuou alguns passos, sem entender o que fazia.
O que foi isso? O estresse tomou conta do seu ser e ela virou outra pessoa apenas por alguém esbarrar nela sem querer. Cerrou os dentes. Nem lembrava da última vez que xingou e fez isso sem pensar duas vezes.
— Luminus, respira fundo… — Cecily tentou acalmá-la com outro toque no ombro, mas a sua mão foi rejeitada por um golpe reflexivo da garotinha de cabelos prateados.
— Desculpa, Cecily…
A cabeça doeu. Sentiu que ao invés de mana, fúria pura corria por suas veias e tocava os seus meridianos.
Ela tocou a cabeça por reflexo e tentou afastar-se da multidão, tinha a impressão que as vozes aumentaram de repente. Enquanto andava um pouco tonta, esbarrou em várias pessoas e simplesmente continuou a andar, derrubando que estivesse em seu caminho.
Uma voz surgiu do fundo da sua consciência de repente e materializou-se em formato de tela de mensagem no seu campo de visão:
[O Fragmento de Astarte deve ser coletado nas próximas duas horas.]
— SAI DA MINHA CABEÇA!
O grito provavelmente foi escutado por todos. Luminus caiu de joelhos e deu socos fortes na neve forrando o chão. Sua aura espalhou-se por todo o lugar e, surpreendendo todos, o aglomerado de lenha ali perto pegou fogo de repente.
As pessoas subindo a pilha para jogar mais madeira precisaram saltar do alto antes de serem queimados.
Da fumaça emanada pela grande fogueira, algo semelhante à figura de uma mulher com um sorriso sádico surgiu, e essa pessoa formada pela fumaça encarava a garotinha ajoelhada no chão.
Astarte encarava Luminus.
[Iniciando coleta do Fragmento de Astarte.]
Com a última mensagem, a consciência da garotinha desvaneceu.
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