Índice de Capítulo

    Engoliu em seco.

    À sua frente, uma figura conhecida o encarava com um sorriso presunçoso estampada em seu lindo rosto. 

    Kurone Nakano foi arrogante. Confiou demais em sua percepção que treinou nos últimos meses e ignorou ruídos e sons de passos leves aproximando-se. Como resultado do seu excesso de confiança em suas habilidades, foi pego.

    Foi pego por Minerva Clergyman.

    E a identidade da pessoa o deixava incomodado. Como isso era possível? A Santa exalava a sua presença como alguém acabando de voltar da aula de educação física e adentrando uma sala fechada. Era impossível não a notar, principalmente quando ambos compartilhavam uma relação incomum com a deusa Lucy.

    — Surpreso? — questionou a jovem, em tom provocador.

    Sim, estava surpreso, mas não deixaria isso transparecer. Por mais que estivesse com problemas nesse momento, tentaria minimizar os danos.

    — Que droga, fui pego bisbilhotando a biblioteca pela professora, acho que vou ficar bem encrencado agora. — Ele bagunçou um pouco os fios dourados com as mãos, fingindo um sorriso idiota.

    Mas Minerva não estava para brincadeiras, a prova disso foi o seu chute veloz buscando a ponta do queixo de Kurone. 

    O garoto aprendeu sua lição com os acontecimentos de Sophiette e não negligenciou o seu treino de artes marciais, graças a isso pôde evitar ser atingido tomando uma distância segura com um único chute com força no piso de madeira.

    Sem perder tempo, materializou a sua Boito .20 de canos serrados, direcionando-a para a cabeça da Santa.

    O pé de Minerva continuava estendido, e sobre ele havia o braço de Kurone segurando a arma e com o dedo pronto para pressionar o gatilho.

    — Pra ter se preocupado em apagar a tua presença desse jeito, devo supor que você sabe de muita coisa — enunciou o garoto, em tom frio. 

    A Santa não se acovardou. Embora não soubesse o que era uma escopeta, devia ter uma ideia que o objeto na mão do seu adversário não era algo que a deixaria escapar ilesa se fizesse um movimento brusco impensado. Ela mantinha um sorriso presunçoso, indicando que isso ainda estava dentro dos seus planos.

    — Comecei a suspeitar desde a nossa luta na capital. Garoto, você subestima pessoas como eu. Mas não tenho o objetivo de prendê-lo hoje, será que poderia baixar essa coisa? Meu pé está ficando dormente.

    Toda essa confiança deixava Kurone desconfiado. Algo aconteceu com a Santa nos últimos dias. Poderia mesmo confiar nela? E se houvesse um exército o aguardando no lado de fora? Ela seria tão imprudente a ponto de enfrentá-lo sem tomar algumas medidas de segurança?

    Relutantemente, baixou a arma. Minerva fez o mesmo com a perna estendida.

    — Não pense que estou feliz em não te prender, — disse a Santa — mas ele confiava em você.

    — “Ele”?

    — O bibliotecário. — Ela fez uma expressão séria. — Era um grande amigo meu. Estou tentando acreditar nas palavras dele, mas você não me passa muita confiança.

    — Tenho a mesma impressão de você. Sylford me disse que você é confiável uma vez… — A jovem pareceu desconfortável ao escutar o nome do Sophiette, provavelmente ela já tinha conhecimento sobre a amizade entre ele e Kurone. — O que aconteceu com o bibliotecário?

    — Morreu.

    — Disso eu já sei, e sei também que não foi por uma doença como todos suspeitam.

    Minerva caminhou para fora da sala sem nada mais dizer. Indignado pela postura da Santa, Kurone a acompanhou, sempre atento a sinais de que poderia estar sendo atraído para uma arapuca.

    Ambos desceram a escada que dava no escritório e retornaram ao primeiro andar da construção, ainda tomado pelo breu. A dupla quase não deixava os seus passos produzirem ruídos. 

    A biblioteca seguia um padrão de organização que se repetia por toda a sua extensão. Havia um aglomerado de prateleiras na esquerda, mesas juntas que formavam um espaço para estudos e outras prateleiras na direita. Essa estrutura repetia-se pela construção. era fácil acabar perdido ali.

    Para sair do prédio, bastava seguir ao sul, nessa direção as paredes iam se estreitando até terminarem no portal que separava a vastidão de conhecimento da recepção — local, inclusive, que Kurone teve o seu primeiro encontro com Minerva.

    Sabendo dessa estrutura, o garoto desconfiou da trajetória seguida pela Santa.

    Logo, entendeu. 

    “Esses locais são cheios de passagens secretas.”

    “Ela imagina que deva ser devido à natureza humana, sempre temendo. A humanidade e o medo sempre andam lado a lado.”

    “Você tá bem poética hoje, projeto de serafim, nem parece preocupada com a minha situação.”

    “A Celestial gostaria de vê-lo em apuros, implorando pela ajuda do ‘projeto de serafim’.”

    Ela estava a cada dia mais sarcástica, e o pior era o tom robótico da sua voz. Ellohim era como uma IA irritante instalada em seu cérebro.

    Como suspeitava, se tratava de uma passagem oculta. Minerva tocou em alguns livros aleatórios, postos em uma prateleira colada na parede, e, como nos filmes de terror, o objeto moveu-se para o lado ao som de engrenagens.

    Contudo, ainda havia uma parede ali — um truque conhecido por Kurone. Era magia de ilusão, algo semelhante À parede falsa do corredor da mansão Sophiette.

    O seu dedo continuava sempre próximo do gatilho da Boito .20, tinha confiança na sua velocidade que treinou por todo esse tempo. Minerva estava muito próxima, provavelmente sem ideia de quanto estrago uma escopeta provocava de perto.

    Mantendo uma distância de pouco mais de um metro, eles desceram a escadaria da entrada oculta, utilizando apenas seus outros sentidos, já que não havia sequer uma tocha acesa ali.

    Foi logo após quatro longos minutos de caminhada que o local começou a ganhar cores. Prateleiras semelhantes às do piso superior circundavam o local, a organização desse espaço era exatamente a mesma citada há pouco.

    Duas cidadelas de prateleiras em cada lado e um espaço para estudo com mesas no centro, essa distribuição era sempre respeitada.

    Kurone pensou em fazer uma piada a respeito da organização, porém logo engoliu as palavras ao notar a presença de uma pessoa em uma das mesas.

    Era um homem, sentado, com um livro aberto sob a mão esquerda. Mesmo com a presença de Kurone e Minerva, ele não fez sequer um movimento, nem mesmo piscava. 

    — O bibliotecário… — murmurou Kurone. 

    De relance, parecia que o homem tinha apenas fingido sua morte para estudar um pouco nessa passagem secreta, mas bastava olhar por alguns instantes para perceber que não existia mais vida nesse corpo paralisado.

    — Alguns dizem que foi alguma doença desconhecida, outros apostam que foram consequências de técnicas proibidas que ele tentou usar, como Magia Abismal. É bem lógico pensar assim, mas…

    — A posição que ele morreu é estranha… — Por algum motivo, o garoto sentiu as suas pernas fraquejando. Tentou controlar ao máximo suas emoções, porém o ato de respirar ficou difícil, seus pulmões aumentaram a velocidade do trabalho e o sangue fluiu de uma vez.

    O que era isso? Mesmo tendo visto tantas mortes, mesmo após ter matado, ainda não conseguiu se acostumar a isso.

    Apenas o fato de não ficar desesperado ou chorar já mostrava que se tornou um Kurone Nakano mais forte, apesar de ainda não ser forte o suficiente.

    — Minha suposição… — Minerva continuou, sem dar a mínima para a reação dele — é que a alma deste homem foi roubada. Alguém retirou a alma dele.

    Precisou de um pouco de tempo para processar a informação. Retirar a alma de alguém não era algo que qualquer um podia fazer, era um feito semelhante ao de destruir por completo a alma, uma técnica que apenas os Espíritos Ceifadores tinham conhecimento.

    Inconscientemente, cerrou o punho e rangeu os dentes.

    — Azazel van Elsie… desgraçada… ela já chegou aqui…

    — A demônia Azazel van Elsie também foi o meu palpite. Se aquela monstruosidade está escondida por aqui, podemos considerar a Universidade Mágica acabada… — A Santa virou-se para o garoto. — O bibliotecário me disse que seria questão de tempo até que ele fosse morto.

    — Hã?! Ele já sabia que alguém ia levar a alma dele?

    — Não sei se ele tinha ciência que sua alma teria tal fim, mas uma coisa era certa: ele sabia que tinha muitos inimigos, afinal de contas, seu último projeto era ambicioso. — Ela inspirou fundo antes de continuar: — E ele me disse que eu teria que contar com alguém de confiança para proteger esse projeto.

    — Projeto, é?

    — O bibliotecário almejava a vida eterna, essa foi a pesquisa que ele veio trabalhando nos últimos anos. A princípio, ele pensou que você seria um inimigo e me pediu para vigiar cada um dos seus passos.

    Novamente, engoliu em seco. 

    Confiou cegamente no bibliotecário, jamais poderia ter imaginado que ele teria a Santa como aliado. Foi muito óbvio tentando ler livros com o mesmo tema da pesquisa daquele homem.

    — Essas investigações me deram muitas respostas — prosseguiu a jovem. — Você é a pessoa que invadiu o julgamento da capital, provocou o caos e lutou contra mim antes de fugir. Quando descobri tudo isso, já tinha um plano para acabar com você, mas… o bibliotecário mudou de ideia sobre você.

    Kurone franziu o cenho, não esperava esse desenrolar dos acontecimentos. Por qual motivo o bibliotecário teria começado a confiar nele? 

    — Não olhe para mim assim, eu também não faço ideia do motivo, mas uma coisa é certa: ele confiava em você. Por isso, você é o único aliado que disponho nesse momento. Embora eu tenha parte da pesquisa, o resto foi levado pela pessoa que retirou a alma dele.

    — E o que eu ganho te ajudando? 

    Recuperou o seu tom sério. Embora o bibliotecário fosse alguém importante, não poderia correr esse risco de enfrentar Azazel van Elsie por enquanto.

    — Posso te prender, já que tenho provas que você é delinquente que tanto procuramos.

    — Acho que não vai ser tão simples assim me prender.

    — Sei disso, por isso não vim aqui com a intenção de te levar comigo. O bibliotecário sabia que você também tem a nossa ambição: a vida eterna. Se recuperarmos a outra parte do projeto, poderemos terminá-lo.

    — Acha que só isso é suficiente para me convencer a enfrentar aquela coisa?

    — Se você almeja realmente a vida eterna, esse será o caminho mais curto, a menos que queira começar a pesquisa do zero, e ainda correr o risco de também ser atacado por Azazel van Elsie.

    Enfim, compreendeu de onde vinha toda a confiança de Minerva Clergyman. Ela sabia que Kurone não tinha muitas escolhas. A Santa foi sincera e abriu todo o jogo, mostrando que ele não tinha muito o que fazer além de seguir o roteiro.

    — Sim, eu quero ser imortal e meio que devo ao bibliotecário, então por enquanto vou jogar o teu jogo — disse após um suspiro longo.

    A jovem também não parecia contente em trabalhar com ele, mas teriam que se suportar por um tempo, principalmente por conta da sua inimiga.

    Azazel van Elsie não era um ser que seria morto facilmente. Além de Minerva, precisavam de guerreiros extraordinários, como Sylford Sophiette e Paltraint Atrex, contudo já era tarde demais para pedir reforços.

    A demônia já estava infiltrada e Kurone Nakano ainda era a pessoa responsável pelo caos na capital. 

    — Mas a Elsie foi burra em querer atacar logo um lugar cheio de Gênios, ela vai…

    Antes que Kurone pudesse terminar sua frase, um tremor violento fez a Universidade Mágica tremeluzir. A dupla no piso inferior arregalou os olhos e, sem pensar duas vezes, correram para fora do prédio.

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