Índice de Capítulo

    Eu me sentia diferente. Me sentia leve.

    Deitado ali, eu apenas encarava o teto, enquanto do outro lado, os pássaros já cantavam, ao passo de que alguns carros iam e viam pelas ruas da cidade que, lentamente, acordava.

    Meu olhar estava fixado no teto, e logo meus pensamentos começaram a girar.

    Girar para ela.

    Yuki.

    O sorriso quente dela após andarmos pelo rio. A forma como ela agarrou meu braço por causa de um quiosque de sorvete. Como… limpou meu queixo com um gesto distraído. Como me olhou, com aquela forma leve e serena, depois de tudo que ela suportou na pista. 

    Como se algo tivesse se soltado dela.

    Depois de tudo… vê-la daquela forma era quase inacreditável. Era realmente bom

    E talvez por isso, pela leveza daquele sorriso, que eu também me sentia mais leve. O peso que estava em meus ombros parecia ter desaparecido.

    A tarefa que antes me escapava, já retornava à minha mente. Clara.

    Era hora de retomar aquilo.

    Levantei lentamente, sentindo a friagem do chão tocar meus pés. Escovei os dentes e lavei a cara, com aquela água fria que me despertava no mesmo segundo.

    Um novo dia começava. E com ele, chegada era a hora.

    A hora de trabalhar na minha nova história.

    Desci as escadas em silêncio, ainda pensando na história que estava prestes a criar. Na cozinha, minha mãe já estava preparando o café da manhã, colocando copos na mesa e ajeitando as torradas com aquela calma habitual de todos os dias.

    — Bom dia, Shin. Dormiu bem? — ela começou, sem tirar os olhos da máquina de café.

    — Sim, dormi — murmurei, puxando uma cadeira e me sentando. Peguei uma torrada do prato. — E a Hana…?

    — Ainda na cama. É sábado, né? — ela respondeu, com um sorriso leve. 

    Mas havia algo estranho em seu rosto. Algo que eu não conseguia decifrar. Enchi minha xícara com café, ainda olhando de leve seu semblante. Aquele silêncio que se formava entre nós… não era comum. 

    E isso começou a me incomodar.

    — Ah, sim… — respondi, levando a xícara de café até a boca. 

    Ainda incomodado, decidi perguntar de uma vez logo:

    — …Tá tudo bem? — comecei, levantando o olhar de leve.

    Ela hesitou. Por um segundo, apenas mexeu o café com a colher, como se estivesse se a xícara pudesse dar a resposta.

    — Hm? Ah, sim. Tudo bem — Ela desviou o olhar para o calendário na parede. — É só que… eu recebi umas notícias…

    — Oh… e são boas? — ergui o olhar, surpreso.

    — Boas? …Talvez?

    Fiquei confuso no mesmo instante. Como assim “talvez”? Isso não fazia sentido.

    — Hã? Como assim “talvez”? — respondi, pousando a xícara na mesa e semicerrando os olhos. — Isso não é resposta, mãe…

    Ela apenas sorriu de leve, o que me deixava mais curioso ainda.

    — Descansa, Shin — ela desviou o olhar e começou a barrar manteiga numa fatia de pão. — Você vai descobrir em breve.

    Apenas suspirei e continuei tomando o resto de café. Talvez minha mãe apenas estivesse brincando comigo. Ou não.

    — Ah, tá… Entendi. Eu acho…

    Terminei de comer, levei a xícara até a pia e subi as escadas de volta. Era sábado, e eu tinha outra coisa em mente no momento.

    Estava na hora de começar.

    Sentei na cadeira, organizei os papéis e cadernos na escrivaninha. Abri a última conversa com Shihei.

    Ainda não sabia exatamente o que fazer, mas tinha que atingir as expectativas que a Editora Kousei tinha em mim.

    Mesmo que fosse apenas uma ideia que não pensei muito sobre, eu iria transformá-la em algo incrível.

    Respirei fundo.

    — Bem… vamos começar — murmurei, alongando os braços.

    Abri o caderno novo, e a folha branca me encarou de volta. Por alguns segundos, fiquei só observando, como se houvesse algo escondido ali, esperando para ser descoberto. Meu coração bateu mais rápido, por algum motivo que eu desconhecia.

    Eu já tinha vencido um concurso nacional, já tinha enfrentado críticas, dúvidas e muita pressão.

    E mesmo assim, o papel em branco… sempre parecia o inimigo mais difícil.

    Peguei a caneta e me concentrei.

    A primeira linha saiu com muito esforço. A segunda, com menos.

    “Hah…”

    A terceira… quase fluiu.

    Em pouco tempo, os personagens começaram a ganhar forma, mas bem lentamente. A história, ainda que só a base, começou a tomar um rumo.

    Um mundo novo, saindo da ponta da caneta. 

    Eu anotava, cortava, voltava, desenhava setas, cercava frases com círculos. Palavras viravam ideias. Ideias viravam rumo.

    E, de repente, tinha um roteiro já imaginado. Algo básico, bem cru. Mas que já estava vivo, até quase com energia própria.

    E um sorriso logo se formou no meu rosto

    — Isso…!

    Fiquei por um tempo, parado, hesitante. Mas logo reuni coragem e liguei para Shihei. 

    Precisava ouvir uma opinião real. Um direcionamento, talvez. Ou só alguém que entendesse o que significava transformar um monte de linhas soltas em uma história de verdade.

    Enquanto o celular chamava, olhei pela janela. O céu estava limpo, algumas nuvens bem grandes cruzando devagar o azul levemente azul.

    Shihei demorou alguns segundos pra atender, e isso foi tempo o bastante pra me lembrar que ele era um editor muito ocupado.

    Até que finalmente ele atendeu.

    — Ah! Shin! — a voz dele veio animada, com aquele tom que sempre parecia ter acabado de sair de uma reunião importante.— Tava esperando essa ligação, hein!

    — Oi, Shihei — respondi sorrindo, meio nervoso enquanto sentia um nó formar no estômago. — Acho que finalmente tenho algo.

    — Sério? Pode falar — ele disse direto. — Quero ouvir tudo.

    — Eu escrevi um roteiro básico — falei, já abrindo a página. — É meio rascunho ainda, mas queria saber se a ideia tá indo na direção certa.

    E comecei a contar.

    A história, os personagens principais, os conflitos centrais. Falei da ideia de contraste entre o cenário e o emocional dos personagens. Como queria explorar silêncio e dor. As coisas não ditas e isso. Como o passado de um dos protagonistas se revelaria aos poucos e o leitor teria que pegar e juntar as peças.

    Do outro lado da linha, ele ficou em silêncio. Só dava pra ouvir os cliques leves do teclado. Talvez ele estivesse anotando.

    Ou talvez só estivesse ouvindo com atenção, o que me deixava ainda mais nervoso.

    — Hmm… gostei do protagonista. Essa incerteza dele funciona… — ele disse, quando terminei. — E o cenário? Pode usar mais ele como metáforas. Você sabe fazer isso muito bem.

    — Ah, sim… — Fui anotando tudo em uma folha ao lado.

    — Sabe o que mais? — ele continuou. — Dá pra colocar um fio narrativo paralelo. Tipo um segundo ponto de vista. Um narrador oculto, talvez.

    Parei por um segundo, pousando a caneta levemente na escrivaninha.

    — Fio narrativo paralelo? 

    — É. Um observador. Pode ser alguém dentro da história. Ou de fora. Que vai revelando coisas lentamente. Faz o leitor questionar se tudo que vê é mesmo o todo.

    — Hmmm… — anotei, ainda pensando na possibilidade. — Pode ser… Acho que funciona, sim.

    Do outro lado da linha, houve um pequeno silêncio, como se Shihei tivesse se encostado na cadeira enquanto refletia comigo. 

    Era sempre assim.

    Ele dava espaço para a ideia fluir, mas ainda mantinha o pulso firme da direção. Assim como editores deveriam ser.

    — Você tem a pá, agora só precisa escavar — Ouvi alguém do outro lado da linha chamar Shihei, provavelmente para discutir algo. — Mas você está indo por um bom caminho, Shin

    Senti algo aquecer por dentro. Não era alegria ou assim. Era mais… firmeza. Um tipo de confirmação silenciosa de que eu não estava perdido, e estava trilhando o caminho certo.

    — Obrigado…

    Ele riu.

    — Agora vai lá. — Ele começou, mas logo seu tom de voz mudou. — Ah! Não tenta terminar tudo hoje! Deixa essa ideia respirar.

    — Pode deixar — ri também, voltando os olhos para o caderno. — Ainda tô só construindo o roteiro mesmo.

    — Ótimo, tenho que ir agora — ele suspirou. — Quando tiver mais ideias e quiser discutir, estarei na editora te esperando.

    — Obrigado mesmo, Shihei. De verdade.

    — De nada, é pra isso que editores servem, não? — ele falou quase rindo. Era possível quase ver o sorriso dele através da ligação. — Tô ansioso pra ver onde essa história vai dar, Shin.

    E então, a chamada terminou.

    Encostei na cadeira, respirando fundo enquanto olhava para o teto. Um silêncio confortável tomou conta do quarto enquanto mais algumas ideias surgiam na cabeça, se ligando umas com as outras.

    Mas, por um momento, deixei elas ali, soltas.

    …Sem pressa nenhuma.

    E um pensamento surgiu na minha mente:

    Como é que eu tinha chegado ali?

    Tudo ainda parecia surreal, de algum jeito.

    Lembrei de como eu comecei tudo.

    Comecei lendo um livro, e logo participei de um concurso por impulso… onde acabei em sétimo lugar.

    Foi doloroso, mas quis continuar.

    Conheci Ryuuji na biblioteca, e lá fiz uma aposta por Arata.

    Então continuei escrevendo, sem parar. 

    O Clube de Literatura. Kaori, Rintarou, Taro, Mai, Takumi. Meus amigos estavam sempre comigo, sempre me apoiando, discutindo e me ajudando. 

    E juntos… vencemos. 

    Ganhei um concurso nacional.

    Venci Ryuuji Akagi, a pessoa que sempre me desprezou, e teria minha história publicada numa revista de verdade. Uma revista de renome, com leitores de verdade. Pessoas reais.

    E então… ali estava eu.

    Começando outra história.

    Do zero.

    Sentado no meu quarto. Uma nova história.

    Era quase… inacreditável. Assustador, mas incrível também, tudo ao mesmo tempo.


    O sol ainda atravessava as janelas do quarto, criando algumas luzes pelas paredes. Lá fora, as vozes da cidade se misturavam a passos apressados e ao som distante de carros cruzando as estradas. 

    E, enquanto estava perdido em pensamentos naquele silêncio confortável, uma outra coisa me atingiu.

    As palavras da minha mãe voltaram para mim, bem claras.

    “É só que… eu recebi umas notícias…”

    “Você vai descobrir em breve.”

    Algo me incomodou, e logo um arrepio percorreu minha espinha.

    Ainda não sabia o que era, mas não parecia ser qualquer coisa. 

    Tentei voltar ao papel, que já não estava mais em branco, mas já era tarde. Aquela sensação esquisita tinha tomado conta de mim.

    De uma coisa eu tinha certeza: 

    Algo estava prestes a mudar.


    Finalmente alcançamos a marca de 100 capítulos… bastante coisa, não? Obrigado por acompanhar até aqui!!

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