Índice de Capítulo

    As cortinas se abriram devagar, revelando o palco iluminado pela luz dos refletores. No centro, uma garota segurava uma boneca embrulhada em um pano, cantando uma canção bem baixa, enquanto uma voz começou a narrar:

    — Era uma vez uma rainha que deu à luz a uma adorável garotinha. Sua pele era tão branca quanto a neve…

    O cenário logo mudou. Alunos atravessaram o palco puxando um pano azul que representava um rio, enquanto outros organizavam o fundo com rapidez.

    E então, ela entrou.

    Yuki.

    O vestido azul e amarelo brilhava sob as luzes, e o modo como ela caminhava, leve, natural, com um sorriso tranquilo no rosto, capturou de imediato a atenção da plateia. Um silêncio carregado de admiração tomou o auditório por alguns segundos.

    Era como se o palco tivesse sido feito pra ela.

    Nos bastidores, eu observava tudo com o roteiro apertado nas mãos, os dedos amassando as bordas. Meu coração batia forte, o figurino colando desconfortável na pele. O príncipe, que deveria entrar apenas na cena final, tinha ganhado espaço antes no novo roteiro.

    Uma mudança de última hora, para criar mais impacto e dar mais sentido ao beijo, segundo a Mai.

    — Mai, por que…? — murmurei, tremendo de leve.

    Tudo o que eu sentia era o impacto no meu estômago.

    — Branca de Neve era uma garota alegre e gentil… — continuava a narradora, enquanto Yuki dançava entre as flores do cenário, girando levemente com os braços estendidos.

    — Shin! — Takeshi sussurrou, surgindo do nada ao meu lado. — Tá chegando sua hora.

    — Sim… acho que tô pronto — respondi, embora minha voz dissesse o contrário.

    A verdade era que eu queria sumir dali. Toda aquela coragem que eu tinha reunido nos bastidores estava se desfazendo rápido demais.

    Só conseguia pensar em tudo que podia dar errado.

    — Vai lá, manda ver! — disse um dos anões, ajeitando o chapéu de papelão.

    — Boa sorte, Shin! — sussurrou Aiko, com um sorriso sincero.

    Assenti, engolindo em seco. O cenário mudava mais uma vez. As luzes do palco se apagaram brevemente, e o som de madeiras sendo arrastadas encheu os bastidores. Alunos corriam, substituindo o rio por árvores de papelão cuidadosamente posicionadas.

    O momento havia chegado.

    — Valeu, pessoal — murmurei, respirando fundo antes de dar o primeiro passo em direção ao palco.

    O auditório ainda estava escuro, mas a presença da plateia era quase palpável. O leve barulho dos cochichos, o cheiro distante de comida que alguém provavelmente escondeu na mochila, e aquela pressão silenciosa de vários olhares esperando algo acontecer.

    Subi no palco. O chão rangeu sob meus pés, e por um segundo, pensei que minhas pernas iam desistir de me carregar.

    Mas… não era tão assustador quanto eu imaginava que seria.

    Talvez porque, de certo modo, já tinha encarado um palco antes.

    As luzes se acenderam. Um holofote me atingiu direto nos olhos, forte e quente. Pisquei, meio cego, e quando finalmente consegui focar, lá estava ela.

    Yuki.

    Ela me encarava com os olhos arregalados, como se eu fosse um estranho que invadiu o cenário errado, e, no fundo, era isso mesmo.

    — Ei, você! O que… tá fazendo aqui!? — soltei a fala, a voz escapando mais alta do que devia, quase um grito. 

    Logo, senti as luvas ficarem mais quentes. Tudo por causa do suor.

    “Ah, que droga!”

    A plateia respondeu com algumas risadas abafadas.

    — Hã!? Quem é você pra falar assim comigo? — ela retrucou, cruzando os braços e erguendo uma sobrancelha com um sorriso perfeito. Era Branca de Neve em carne, osso… e sarcasmo. — Esse aqui é o meu bosque!

    — Seu… bosque? — repeti, improvisando na hora. — Eu sou… um príncipe! E vim, tipo… explorar!

    Mais risadas vieram, enquanto eu me perguntava:

    “O que que eu tô falando!?”

    Yuki segurou um riso, mas seguiu firme, apontando para as árvores de papelão com todo o drama que a cena pedia.

    — Então explora pra lá, porque aqui é meu!

    Ela virou de costas com um movimento teatral que arrancou alguns aplausos da plateia.

    Saí de cena logo em seguida, a capa arrastando atrás de mim enquanto eu quase tropeçava num cabo mal colocado. Nos bastidores, alguns colegas riam tanto e Takeshi precisou se segurar na parede.

    — Cara, você tá indo bem demais! — sussurrou ele, me dando um tapa no ombro. — Já conquistou o público!

    — Sim, sim… — murmurei, sentindo o rosto quente. 

    — Melhor ainda! — disse Mai, surgindo ao lado com seu bloco de anotações. — O público tá adorando esse príncipe perdido. Tá funcionando!

    Aiko apareceu logo atrás, ajeitando o chapéu de anão torto na cabeça.

    — Só não tropeça de verdade, tá? Aí vai deixar de ser atuação…

    Revirei os olhos, mas um sorriso escapou mesmo assim. Não era tão ruim quanto eu pensava.

    No palco, a cena mudou novamente.

    A narradora voltou com um tom mais sério, enquanto o cenário se transformava no castelo da Rainha Má. Painéis se moveram, cortinas escuras desceram, e o clima ficou mais sombrio.

    — Mas a rainha, consumida pela inveja, consultava seu espelho mágico… — anunciou a narradora, com uma pausa dramática.

    A Rainha Má entrou em cena, o véu preto arrastando pelo chão enquanto caminhava até um espelho feito de papelão brilhante. O garoto responsável pelo papel do espelho se inclinou, exagerando no tom, assim como no roteiro:

    — Majestade… esse penteado tá um desastre! — disse ele, apontando teatralmente para ela.

    A plateia explodiu em risadas. Risadas ecoaram de todos os lados, e nos bastidores, parte da turma ficou entusiasmada. A reação foi imediata.

    — Essas piadas foram um acerto mesmo — comentou Mai, sorrindo com orgulho.

    — Tenho certeza que a gente vai levar o primeiro lugar! — disse Takeshi, socando o ar como se já tivesse o troféu na mão.

    Eu ri junto, mas logo voltei os olhos pro roteiro. A peça estava fluindo, mais leve do que esperávamos. Mas a próxima parte…

    A maçã.

    E depois… o beijo.

    Meu estômago deu um pulo. A mesma cena se repetia na minha cabeça, como se quisesse me lembrar o tempo todo do que me esperava.

    No palco, a Rainha Má já tinha se disfarçado, uma capa com alguns furos, uma peruca grisalha meio torta, e um capuz cobrindo o rosto. Yuki, no centro da cena, colhia flores de papel com uma delicadeza quase real.

    A velhinha se aproximou, curvada, a voz rouca e teatral:

    — Ei, menina bonita… — disse ela, estendendo uma maçã vermelha que brilhava sob o foco da luz. — Essa velhinha trouxe um presentinho pra você!

    Yuki hesitou, como mandava o roteiro, então abriu um sorriso gentil e pegou a maçã nas mãos.

    — Nossa, que maçã linda! — comentou, a girando com cuidado. — Parece muito boa…

    — É docinha, minha querida… — respondeu a velha, com um tom meio sinistro que arrancou mais algumas risadinhas do público. — Vai, experimenta!

    Nos bastidores, eu folheava o roteiro rapidamente. A cena do envenenamento estava prestes a acontecer. Yuki ia cair em sono profundo, os anões iriam cercá-la chorando… e então, era a minha vez.

    Minha entrada. Meu momento.

    O beijo.

    Mesmo sabendo que tudo tinha sido planejado, só uma aproximação, com as luzes apagando no instante certo, meu coração batia forte, acelerado.

    Como se não soubesse que era tudo parte da peça.

    Como se fosse real.

    Apertei o roteiro, as páginas tremendo nas minhas mãos.

    — Relaxa, Shin — disse Takeshi, pousando a mão no meu ombro. — Tá indo bem. Melhor do que você imagina.

    — Não acho que eu esteja… — murmurei, os olhos presos no roteiro.

    — Bom… pelo menos agora vem a parte fácil… ou difícil. — Ele deu um sorriso torto, e aquilo não ajudou em nada.

    Mai apareceu logo em seguida, com uma expressão séria e os braços cruzados.

    — Takeshi, você recolheu tudo do palco antes da última troca de cena?

    — Claro! — respondeu ele, coçando a nuca com um riso nervoso. — Não deixei nada pra trás. Juro.

    — Ainda bem… — disse ela, soltando um suspiro e revirando os olhos. — Bom, a iluminação tá pronta para a cena final. Vamos destacar você e a Yuki. Deve ser bem dramático!

    — Entendi… — respondi, mas minha voz saiu baixa demais. 

    No palco, Yuki mordia a maçã. Em câmera lenta, o corpo dela cedeu, caindo levemente. O vestido se espalhou ao redor e os anões correram até ela, exagerando no desespero de um jeito que arrancou algumas risadas da plateia.

    A narradora voltou, a voz mais calma, preenchendo o teatro:

    — Enganada pela velha bondosa, ela foi envenenada ao comer a maçã. Branca de Neve caiu num sono profundo…

    As luzes baixaram levemente, enquanto alunos movimentavam os painéis, puxando os panos do bosque para revelar uma cama improvisada, enfeitada com flores falsas ao redor e pedaços de tecido colorido.

    Yuki estava ali, no centro, com as mãos cruzadas sobre o peito, os olhos fechados. Havia algo de tão calmo na expressão dela que por um momento eu acreditei que estivesse mesmo dormindo. Os anões a cercavam, soluçando alto, um choro que arrancava tanto emoção quanto sorrisos.

    E então, minha deixa.

    Respirei fundo. Subi no palco.

    O holofote veio de imediato, quente, me cegando por um instante, novamente. O silêncio caiu sobre o auditório. Nenhum ruído, só apenas o som da minha própria respiração acelerada.

    — Ó Branca de Neve… — comecei, a voz tremendo levemente. — Como isso foi acontecer?

    Me ajoelhei ao lado dela, a capa deslizou sobre meus ombros. 

    Yuki parecia intocável. Os olhos fechados, o rosto sereno, o cabelo espalhado em volta da cama. O vestido captava a luz de um jeito quase irreal, fazendo a cena parecer saída de um sonho. Meu peito apertou, e não era só por causa do roteiro.

    — Não acredito que você… morreu! — continuei, tentando parecer dramático.

    Um murmúrio percorreu a plateia, alguns riram, outros cochicharam, mas ignorei. Meu coração batia alto demais, tinha até certeza que as pessoas na plateia conseguiam ouvir também. 

    Era a cena.

    O beijo.

    Estendi a mão, devagar, os dedos hesitantes. A capa escorregou mais pelo ombro, criando uma sombra que cobria parte do palco. Me inclinei, o rosto a centímetros do dela. A luz mudou, suavizando, nos envolvendo. Atrás de nós, nossas sombras se projetavam nas cortinas.

    O contorno do príncipe e da princesa, suspensos naquele momento de quase.

    Faltava pouco… só mais um passo.

    Então, aconteceu.

    Yuki abriu os olhos, lentamente, e sorriu. Aquele sorriso que parecia acender alguma coisa dentro de mim.

    — Meu príncipe… — disse ela, com a voz baixa, doce.

    A plateia soltou um suspiro coletivo, alguns aplausos baixos ecoaram.

    Eu ainda estava paralisado, tentando lembrar minha próxima fala, quando ela continuou:

    — Príncipe… seu bafo fede — disse ela, levantando uma sobrancelha e com um sorriso brincalhão no rosto.

    — O-o quê!? Não fede não! — rebati num sussurro alto, quase automático.

    A plateia caiu na risada. Era uma das ideias cômicas da Mai e do Taro, e parecia estar funcionando perfeitamente. Yuki sentou na cama, apontando pra mim com um sorriso torto.

    — E me diz… por que exatamente você me beijou enquanto eu estava dormindo? — provocou, erguendo uma sobrancelha. — Isso não é meio… esquisito?

    Mais risadas. Eu tentei me manter dentro do roteiro, mesmo tropeçando um pouco nas palavras.

    — Eu… eu não beijei! — falei, erguendo as mãos. — Foi só… parte do feitiço! Eu precisava te salvar!

    — Sei… — disse ela, cruzando os braços. — Mas quebrou o feitiço, então… obrigado, eu suponho.

    Outro riso coletivo. E dessa vez, até eu sorri de verdade, completamente aliviado.

    Tudo estava funcionando, e quase acabando.

    Estendi a mão para Yuki, respirando fundo, como o roteiro pedia.

    — Vem, Branca de Neve — falei, com um pouco mais de firmeza, tentando soar nobre que nem o príncipe. — Vamos para o meu reino!

    Ela pegou minha mão, ainda sorrindo, e começou a se levantar.

    Mas então… senti algo estranho de baixo da bota. Não era o chão do palco.

    Era… macio?

    Não era suposto ser assim…

    Olhei pra baixo, mas era tarde demais. Um pano solto, largado bem ao lado da cama de papelão, esquecido por alguém.

    Na mesma hora, a conversa entre Mai e Takeshi passou pela minha cabeça. Algo sobre… verificar o palco ou algo do gênero?

    O mundo desacelerou.

    Meu corpo reagiu antes da minha mente. Tentei recuar, mas puxei a mão da Yuki junto, e ela tropeçou comigo.

    A queda foi inevitável.

    Caímos.

    Eu por cima, a capa deslizou sobre meu ombro e cobriu parte do meu rosto, e o dela também. Nossos rostos pararam a centímetros um do outro, olhos arregalados, respiração presa.

    Lábios… quase juntos…

    Por um segundo, nem o tempo se mexia.

    O silêncio no auditório foi total. Denso… inquebrável…

    — E-ei! Vocês estão bem?! — gritou um dos anões, correndo na nossa direção.

    — Tô… tô bem — murmurei, me levantando apressado, com o rosto queimando.

    Yuki se ergueu logo em seguida, ajeitando o vestido com as mãos trêmulas. Os olhos dela estavam tão arregalados quanto os meus.

    Mas o caos já tinha começado na plateia.

    — Cara, eles se beijaram!?

    — Não beijaram nada, foi só a capa.

    — Eu juro que vi um beijo!

    — Eu também!

    Murmúrios explodiram, se espalhando entre todos. As vozes se sobrepunham, algumas rindo, outras chocadas. E o holofote ainda estava sobre nós.

    A luz direta e a capa caindo no ângulo errado… deixavam margem demais para uma interpretação errada.

    Para quem estava na plateia, parecia que algo entre mim e a Yuki tinha acontecido naquela queda…

    Fiquei congelado. Meu estômago afundou e meu peito parecia querer sair pela boca.

    Que merda!

    Ponto de Vista de Kaori

    O auditório tava quente, abafado, como se o ar não existisse ali. As vozes ao meu redor explodiram assim que ele e a Yuki caíram no palco.

    — Você viu aquilo!? Eles se beijaram mesmo! — Kimiko gritou ao meu lado.

    — Não, foi só a capa! — Kei retrucou, rindo alto. — Mas, tipo, parecia, né?

    — Não dá! Tenho certeza que eles se beijaram!

    Fiquei parada, sem reação, o olhar grudado no palco e a minha boca aberta como se eu quisesse dizer algo. 

    A luz do holofote ainda iluminava eles, que se levantavam desajeitados. 

    Meu peito… doía.

    Uma pontada estranha, como se algo tivesse apertado lá dentro.

    Minha cabeça baixou devagar, os olhos presos no chão.

    — Kaori, tá tudo bem? — perguntou uma das meninas, cutucando meu ombro.

    — Hã!? Ah, sim! Tô bem! — falei, forçando um sorriso que não convencia ninguém.

    O calor tava insuportável. As vozes, os risos, os murmúrios.

    Tudo parecia alto demais, confuso demais, frustrante demais.

    — Vou… tomar um ar — falei, coçando a nuca enquanto me levantava rápido. — Tá muito quente aqui, não acham?

    — Ah… sim…

    Saí pelo corredor, ignorando os olhares curiosos. O barulho da plateia ficou pra trás, abafado.

    Mas a dor não ia embora.

    Eu não entendia. 

    Não.

    Eu entendia.

    Entendia muito bem.

    Mas não queria aceitar isso.

    Não gostava disso.

    E, enquanto caminhava pro lado de fora, a imagem do Shin e da Yuki, tão próximos, não saía da minha cabeça.

    Por quê?

    Ponto de Vista de Shin

    Aquilo não fazia parte do roteiro.

    As cortinas começaram a fechar devagar, e o apresentador logo subiu apressado, o microfone chiando alto antes de sua voz surgir:

    — Pessoal, pedimos desculpas! — disse ele, com um riso nervoso. — A peça vai ser interrompida por alguns instantes. Um… problema técnico.

    E eu ali, parado no palco, senti uma vontade desesperada de sumir dali. Qualquer outra coisa que não envolvesse continuar sob aquele holofote.

    Nada tinha saído como o planejado.

    E, de alguma forma, tudo estava apenas começando.

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