Capítulo 88: Vozes
Os ensaios começaram não muito tempo depois. Eu tentava sorrir. Dizer que estava tudo bem.
Mas a verdade era que não estava.
Não mesmo.
Cada vez que errava uma fala, meu peito apertava um pouco mais. Eu me odiava um pouco mais. Às vezes eu tropeçava nas palavras, outras esquecia completamente o que vinha depois.
Mas mesmo assim, ninguém gritava comigo… ninguém me olhava torto.
Por que isso acontecia?
— Tá tudo bem! — diziam. — Vamos recomeçar!
E começava tudo de novo.
Mas eu não esquecia. Eu não conseguia esquecer que fui eu quem errou, eu quem atrasava os ensaios. E cada pequeno erro me doía como se fosse um desastre.
Meus dedos tremiam. O coração, sempre rápido demais. E a vergonha… era impossível eu não sentir isso a todo momento.
Eu queria dar o meu melhor, de verdade!
Eu queria fazer algo bom. Não só por eles, mas por mim também.
Mas parecia que… nada era suficiente.
Então, sabendo que não era suficiente, comecei a treinar em casa. Eu precisava melhorar rapidamente.
Repetia falas no quarto com a porta fechada, mesmo quando ouvia minha mãe reclamar no corredor.
— Dá pra parar de falar sozinha? Tá tarde! — ela dizia, irritada. — Isso é mesmo importante?
— D-desculpa… — eu respondia, a voz quase falhando. — Só… mais um pouco.
E continuava.
Mesmo sabendo que minha voz ecoava pela casa. Mesmo ouvindo o incômodo nas paredes. Eu continuava.
Porque eu não podia decepcioná-los. Porque eles… eles falavam comigo. E se eu errasse demais, talvez parassem.
Talvez tudo voltasse a ser como antes.
Os dias passaram voando, e a cada dia, eu ficava mais ansiosa. O pátio se enchia de torres de papelão, tintas, martelos e coisas assim. Algumas turmas carregavam baldes. Outras recitavam falas em voz alta.
E eu… estava no meio disso. De alguma forma, ainda não conseguia acreditar que realmente estava participando em um Festival Escolar.
Pelo menos, por um tempo, eu estava alegre.
Foi num desses dias que Aiko apareceu. Ela veio com outras garotas do clube de costura, carregando sacolas de tecido e expectativa. Os olhos brilhavam, e tinham um grande sorriso no rosto.
— Ei! Os figurinos estão prontos! — anunciou, feliz.
E ali estava ele.
O meu.
O uniforme do príncipe.
Meu coração bateu forte. Forte demais.
Vários alunos começaram a se juntar na porta. Uns curiosos pelos figurinos, outros só tentando adivinhar quem usaria o quê. Risos baixos, cochichos empolgados, tudo parecia girar em volta daquele momento.
Fomos até uma sala reservada para nos trocarmos. Quando comecei a vestir o figurino do príncipe, peça por peça, os comentários começaram a surgir.
— Nossa, ficou perfeito!
— Esse colete combinou demais com ela!
A cada elogio, meu peito apertava mais. Eu não sabia se sorria, agradecia ou apenas fingia que não estava ouvindo.
Eu… nunca soube lidar com isso. Não comigo.
Terminamos de nos arrumar e voltamos para a sala principal, onde os ensaios aconteciam. Assim que entramos, os olhos se voltaram pra nós, primeiro para Yuki, claro, que estava deslumbrante como a Branca de Neve. O vestido, o cabelo, o jeito como ela sorria… ela parecia ter saído direto do próprio conto.
Mas então, alguns olhares… se voltaram pra mim.
E meu corpo reagiu antes da minha mente.
Abaixei a cabeça no mesmo instante, era o meu reflexo automático. Meus ombros encolheram. O velho e amigável desconforto se arrastou por dentro.
Aquela sensação… de estar sendo julgada.
Mesmo que ninguém dissesse nada ruim, meu coração insistia em ouvir o pior.
“Eles estão rindo.”
“Eles tão zombando de você.”
“Acham que tá ridícula.”
Minhas mãos começaram a suar. As costas, a esquentar. Podia sentir meu corpo ficando quente a cada segundo. O estômago virou um nó que não dava pra ser desatado.
“Olha só ela. Que vergonha!”
Mas então, algo quebrou todos aqueles pensamentos negativos
— A Sasaki… — disse uma das garotas, surpresa. — Ninguém vai dizer que é garota com esse penteado! Ela tá incrível!
— Sério! Ela tá parecendo um príncipe de verdade! — completou outra.
— Com esse figurino, vai arrasar no palco!
A voz das garotas veio como um vento fresco depois de um dia quente.
Pisquei, confusa. Por um instante, achei que tinha escutado errado. Que não era pra mim.
Mas então, eu vi.
Yuki virou o rosto na minha direção. O sorriso dela era pequeno, suave. E tinha algo ali… algo que eu não sabia nomear. Talvez carinho? Aceitação? Não sabia.
Eu não conseguia entender.
Por que diziam essas coisas?
Por que sorriam pra mim?
Não era assim que eu esperava que fosse. Eu me preparei pra rejeição. Pra olhares tortos. E em vez disso… fui recebida com elogios.
E aquilo… doía. De um jeito diferente.
Os dias seguiram. Os ensaios continuaram. Eu fui errando menos, tropeçando menos. Mas, mesmo assim, eu parecia sempre estar um ou dois passos atrás dos outros.
Enquanto eles cresciam, ganhavam confiança, improvisavam, riam entre uma cena e outra, eu mal conseguia sustentar o olhar.
Sentia como se estivesse sempre tentando alcançar algo… que nunca chegava nas pontas dos meus dedos.
— Tá tudo bem, Sasaki! Vamos repetir a cena.
Sempre diziam isso. Com um sorriso. Como se não fosse nada.
Mas, pra mim… era tudo.
Um dia, no meio do ensaio, as palavras simplesmente… sumiram.
— Então, venha para…
De novo. A frase estava ali, na ponta da língua, mas sumiu como se nunca tivesse existido.
Eu parei. O silêncio durou só um segundo, mas pra mim, durou uma eternidade.
Abaixei a cabeça.
— D-desculpa… eu esqueci — murmurei.
Esperei. Um suspiro. Um olhar cansado.
Um comentário como “de novo, não”, “essa garota de novo?”.
Mas… nada. Nada acontecia.
Ninguém reclamou. Ninguém bufou. Ninguém me olhou torto.
Era como se… tudo estivesse realmente bem.
Yuki quem quebrou o silêncio, com a voz calma de sempre:
— É normal isso acontecer, Sasaki. Não se preocupe muito com isso!
Eu quis responder. Dizer que não era só um erro. Que era o mesmo erro.
De novo. E de novo. E de novo.
Que eu estava atrasando tudo.
Mas minha garganta travou. Só consegui murmurar algo incompreensível.
A cada dia, minha mente criava cenários piores.
Eu no palco, errando todas as falas, a vergonha me consumindo, olhares e risadas de mim, decepção na cara de todos.
Meus dedos tremiam até mesmo ao segurar o roteiro.
Yuki percebeu isso, como sempre, com aquele olhar atento a tudo.
— Sasaki… tá tudo bem?
Eu hesitei. Mais uma vez, eu atrasei os ensaios.
— T-tá… só preciso tomar um ar…
Eu saí. Mas o ar não ajudou. O meu peito ainda continuava pesado.
No dia seguinte… eu não apareci lá.
Fiquei em casa, com a cortina fechada e a luz apagada. O celular vibrando em cima da cama.
Mensagens do grupo da turma e mensagens pra mim. Eu tinha sido adicionada só recentemente, por causa da peça.
Provavelmente iriam me remover ou criar outro sem mim depois que o teatro acabasse.
É, provavelmente sim.
“Tá tudo bem?”
“Você vem hoje?”
“Precisamos de você no ensaio, Sasaki.”
Mas eu não respondi, apenas visualizei e ignorei, desligando o celular.
A verdade é que… eu não queria mais.
Eu não queria mais ser o príncipe.
Eu não conseguia.
Por que eu aceitei?
A peça era importante. O festival era importante. As pessoas estavam empolgadas. Trabalhando duro.
E eu sabia que… se dependesse de mim, ia dar errado.
Mais uma vez, tudo por minha causa.
Eu me odiava.
Eu me odiava muito.
Então, o dia passou. E com ele, aquilo chegou.
O Festival Escolar.
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