Capítulo 96: Um Sorriso Pesado
O despertador ainda não tinha tocado, mas meus olhos já estavam abertos.
O habitual brilho matinal atravessava a janela, iluminando o teto do meu quarto. Do lado de fora, os pássaros cantando preenchiam o silêncio, mas por dentro… tudo ainda estava quieto.
Meus olhos apenas encaravam o teto, sem piscar… sem ver.
A imagem dela continuava ali, presa na minha mente.
Yuki, sentada no quarto do hospital. O pé enfaixado, junto da respiração lenta. E aquele sorriso… leve demais para ser verdadeiro.
Era o tipo de sorriso que não servia pra acalmar os outros, mas pra esconder alguma coisa de si mesma.
Um sorriso… pesado.
Suspirei e fechei os olhos por um momento.
Ela sempre foi forte, nunca tive dúvidas disso. Nunca mesmo. Mas, naquele dia… parecia que ela estava tentando segurar o mundo sozinha nas costas.
E fazia isso em silêncio, como se qualquer palavra fosse um peso a mais. Estava tudo ali, no jeito como desviava o olhar. Como mantinha o sorriso mesmo quando ele já não tinha mais força. Em tudo.
Levantei da cama devagar, ainda sem certeza se estava mesmo acordado. Os meus pés tocaram o chão frio, o que me trouxe de volta pra realidade. Troquei de roupa, penteei o cabelo, e fiz tudo em silêncio, sem pressa nenhuma.
Ao descer as escadas, encontrei Hana no sofá, rindo de algo na TV. Minha mãe estava na cozinha, servindo café em duas canecas, como sempre fazia.
— Bom dia, Shin. Dormiu bem? — perguntou, sem tirar os olhos da xícara.
— Mais ou menos — murmurei, puxando a cadeira.
O cheiro do café era quente… quase reconfortante. Só quase. Peguei uma torrada, mastiguei devagar, e não conversamos muito.
Na verdade, não havia muito o que dizer.
Minha cabeça ainda estava bem longe dali… em outro quarto, outro tempo, outro local, outro sorriso.
Quando terminei, me levantei e peguei a mochila.
— Tô indo. Até mais tarde.
— Ah, leva um casaco, tá esfriando! — respondeu, como sempre.
— Sim…
Ela apenas assentiu com a cabeça, como quem entende… mesmo sem saber exatamente o que está acontecendo.
Abri a porta e fui recebido pelo ar da manhã. Aquele frio leve, típico frio de outono. Não era forte o suficiente pra incomodar, mas fazia os ombros tremerem de leve e os pensamentos se alongarem mais do que deviam.
Enfiei as mãos nos bolsos e comecei a caminhar. O chão sob meus pés parecia distante.
Na verdade, tudo parecia distante.
E óbvio, minha cabeça ainda estava presa pensando nela.
Depois de caminhar um pouco, avistei Seiji encostado em um poste na esquina. Os fones e a mochila quase caindo. Ele parecia distraído, olhando o movimento das pessoas na rua, até que me viu e acenou com aquele típico sorriso largo dele.
— Até que enfim, Shin! Achei que ia me deixar plantado aqui, congelando… — disse, ajeitando o cabelo com uma mão.
— Eu não atraso tanto assim — respondi, ainda meio sonolento. — Vocês é que acordam cedo demais… ah, o Rintarou?
— Já vem, mas, hmmm… — ele estreitou os olhos pra mim, me analisando. — Tá com uma cara horrenda. Foi um sonho ruim? Andou escrevendo… ou jogando!?
— Nenhuma dessas opções… — Sorri de canto, enfiando as mãos nos bolsos do casaco.
Seguimos lado a lado por alguns metros, até que Rintarou nos alcançou com seu passo calmo e postura ereta de sempre.
— Bom dia — ele disse, com aquele tom calmo e direto de sempre. — Dormiram bem?
— Bom dia, Rintarou — respondi, bocejando.
— Eu sim — disse Seiji, colocando os braços atrás da cabeça. — Já o Shin… acho que nem piscou essa noite.
— Passou a noite jogando de novo, Shin? Que cara é essa?
“Sério…?”
Eu bufei, tocando meu rosto de leve. Era cedo demais para eles me provocarem assim.
— Vocês dois não tem jeito mesmo… — suspirei, enquanto começávamos a andar.
Estávamos distraídos conversando quando ouvimos um barulho de passos apressados atrás de nós. Só podia ser ela.
— Esperem! Ei! Não vão sem mim!
Era Kaori, obviamente.
Ela vinha correndo com a mochila meio aberta, um pão na boca e o cabelo ainda visivelmente bagunçado. Uma cena já habitual dela.
Seiji sorriu, claramente ele esperava por isso.
— Achei que você fosse aparecer com a cara colada no travesseiro — disse, cruzando os braços. — Ainda tem baba aí, sabia?
— Hã?! — Kaori imediatamente passou a mão pela boca, e depois deu um leve soco no ombro dele. — Cala a boca, idiota! Nem tem nada!
— Tá tudo bem aí, Kaori? — perguntou Rintarou, contendo o riso.
— Mais ou menos. — ela murmurou, suspirando. — Tá tão frio hoje que eu tava difícil levantar…
— Não é? — respondi, rindo de leve.
A conversa logo começou com coisas triviais, como sempre. Foram das reclamações sobre o frio para comentários aleatórios.
Ainda assim… eu simplesmente não conseguia me concentrar.
Minha cabeça pesava com pensamentos dela.
Foi então que, naturalmente, o assunto se aproximou das férias.
— Falando nisso, vocês já sabem o que vão fazer nas férias de Natal? — Kaori perguntou, enquanto ajeitava a alça da mochila no ombro.
— Eu? Comer até explodir! — respondeu Seiji, sem pensar.
— Que novidade… — Rintarou murmurou.
— Hmmm, acho que vou visitar meus avós — disse Kaori, com o dedo no queixo. — Eles vivem perguntando de mim, preciso aparecer por lá.
— E você, Shin? — Seiji olhou pra mim.
Pensei por um instante, hesitando. A primeira coisa que me veio à mente não foi descansar nas férias, viajar ou assim… foi a revista. A minha história. Aquela que eu poderia ler na edição de Natal da Editora Kousei.
Só de pensar nisso, o estômago já começava a doer.
Ainda assim, tudo aquilo ainda parecia um sonho…
— Acho que vou ver a publicação da minha história — respondi, tentando soar casual. — E também… começar uma nova.
— Uma nova história!? — Kaori exclamou, quase pulando em cima de mim. — É de que? Qual o gênero!? Trama!? Aventura!? Romance!? Tem…
Afastei ela de leve, soltando um suspiro.
— Calma aí, Kaori. Por enquanto é só uma ideia… nada demais. Ainda… — Sorri de canto.
— Ainda… — ela repetiu, com os olhos estreitando num brilho bobo.
— Ah, isso parece incrível — comentou Seiji, enquanto se espreguiçava. — Pena que as férias ainda tão meio longe… — fez uma careta e se curvou levemente. — O Festival foi tipo… agorinha?
O grupo ficou em silêncio por alguns instantes, como se aquele simples comentário trouxesse uma lembrança compartilhada entre a gente.
— Ei, o que vocês acham que vai rolar no festival do ano que vem? — Seiji se animou de repente, quebrando o clima. — Tem que ser tão daora quanto esse! Mas, dessa vez, sem acidentes no palco… — ele piscou na minha direção com um sorriso esquisito.
Bufei, desviando o olhar enquanto empurrava as mãos mais fundo nos bolsos.
Rintarou riu de leve, e Kaori continuou andando em silêncio ao lado, os olhos baixos, mas com um leve sorriso escondido no canto dos lábios.
— Ah, falando nisso… — ela começou, coçando a cabeça de um jeito meio desajeitado, a voz um pouco mais baixa do que o normal. — Aquela história… do “beijo”. F-foi real ou… só mais um daqueles rumores exagerados…?
Congelei no mesmo instante, parando de andar.
— Q-quê!? — me atrapalhei nas palavras. — Claro que não! Quer dizer… foi só um acidente! Não teve beijo nenhum, a gente só tropeçou! — falei tudo de uma vez, rápido demais, sentindo as bochechas queimarem.
Um silêncio desconfortável pairou no ar por um segundo.
Seiji e Rintarou me olharam como se eu tivesse acabado de me afogar nas próprias palavras. Ambos mostravam um leve sorriso idiota no rosto que só me deixava com mais vergonha.
— Achava que esse assunto já tinha morrido… — suspirei, tentando disfarçar o vermelho no rosto.
Kaori me observou com atenção por um momento. Depois, seus olhos pareceram suavizar, e ela sorriu.
Um sorriso leve, sincero… mas que carregava algo difícil de entender?
— Sério!? Entendi… — disse, balançando a cabeça levemente. — Bom, vou indo na frente. As meninas vão me matar se eu me atrasar de novo!
E antes que alguém dissesse algo, ela se virou e começou a caminhar mais rápido, quase saltitando na calçada.
— …O que foi isso agora? — sussurrei, ainda tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
— Vai saber — murmurou Seiji, dando de ombros. — É a Kaori…
— Vocês dois são impossíveis — resmungou Rintarou, nos batendo levemente na cabeça.
— Ai! — dissemos ao mesmo tempo, meio rindo.
Continuamos caminhando, falando de algumas piadas e jogos, até que o portão da escola apareceu, cercado de um leve barulho de alunos se encontrando, rindo e reclamando do frio. O som típico de uma manhã de aula.
Mas no meio da multidão, algo se destacou.
Yuki.
Ela estava encostada perto do mural da entrada. Usava muletas, e o pé ainda estava enfaixado. Algumas garotas da nossa sala estavam ao redor, perguntando, fazendo caras preocupadas enquanto olhavam para o pé dela.
No entanto, ela apenas respondia gentilmente, tranquila e sorrindo.
Sorria como se tudo estivesse bem. Como se não tivesse acontecido nada. Um sorriso gentil, sereno… o tipo de sorriso que alivia quem está perto.
Mas eu sabia.
Eu sabia que, por trás daquele sorriso… havia algo silencioso. Algo que doía. Frustração. Raiva. Um tipo de tristeza que não aparece nos olhos, mas se esconde entre as palavras e as expressões dela.
Enquanto me perdia em pensamentos, nossos olhares se cruzaram. Foi rápido, mas real. Ela me viu, e, naquele instante, algo passou entre nós.
Um silêncio que dizia tudo.
E dentro de mim, uma certeza se firmava:
Eu não deixaria ela carregar aquilo sozinha.
Não dessa vez.
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